segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Carta aos meus filhos #13

Queridos,


A vida complica-se diariamente. A mãe acha-se sempre muito crescida e muito sabida das coisas, mas a verdade é que, a cada dia que passa, se descobre mais ignorante. Uma coisa é certa; quando as pessoas estão dispostas a entender-se, há pouca coisa que as separe. Quando estão apostadas em não se dar, qualquer coisa é motivo de desentendimento. E a mãe tem-se esforçado por pertencer ao primeiro grupo.

Tantas vezes na vida o caminho desemboca numa bifurcação - two roads diverging on a yellow wood -, e eu, sendo apenas uma viajante, sou obrigada a escolher. Há uma tendência geral para as minhas escolhas - o fraco em prol do forte, o necessitado em prol do abonado, o injustiçado em prol de quem causa a injustiça. E tudo isto é simples quando é absoluto. Mas a mãe diz-vos que, aos vinte e três, já entendeu que pouca coisa na vida é absoluta. Tudo sofre influências da lei da relatividade. A mãe é injusta. A mãe magoa. A mãe esquece quem mais precisa que ela dele se recorde. A mãe põe para debaixo do tapete, porque também a mãe, que se acha tão íntegra, é incapaz de lidar com as coisas incómodas. Uma coisa são as coisas difíceis, outra são as coisinhas pequeninas, e a mãe odeia-as acima de todas as coisas. Cada dia é uma lição. Uma lição de perseverança e de resistência. Talvez uma hora difícil anteceda sempre uma hora mais fácil. E a mãe não rodopia no centro do furacão, mas sente-se tão fraca, tão vulnerável, tão em baixo por uma vez. A mãe sabe que, no seu âmago, não precisa realmente de ninguém que olhe por ela. Sempre fez um óptimo trabalho nesse campo. Contudo, por ora, queria que a levassem no colo e lhe contassem histórias. Que a entretivessem sem que ela tivesse de o pedir, que lhe mostrassem coisas bonitas a partir do conforto de um assento de carro. A mãe não tem forças para descer nesta paragem, ou em nenhuma outra. As cartas voltaram a chamar-me. A mãe obrigou-se a acreditar. A mãe tem receio do que as cartas querem dizer. Não consultá-las será sinónimo de força e fé ou de receio de enfrentar as suas suspeitas? Não, a mãe acredita. Porque ser-se positivo torna o dia mais luminoso.

A mãe não consegue dormir. Está rodeada de pessoas com problemas a sério, pessoas sem tempo, pessoas a precisar realmente de tempo, pessoas afastadas de casa, pessoas cujos entes queridos partem, pessoas que planeiam a sua vida, pessoas que casam e essas mesmas vidas mudam, pessoas com filhos, crianças que, sem compreender, são levadas pela mão para longe daqueles que amam. Mas a mãe é que não consegue dormir. Crianças que são levadas pela mão pela rua, ao cair da noite, e que olham para trás, os olhinhos tristes sob a aba do boné, e acenam uma vez mais adeus àqueles que o abandonam. Abraçada a si própria, à porta de casa, a mãe fica até que a esquina nos separe. A mãe já não chora. Em tempos choraria, agora convenceu-se de que nada muda. Tudo piora. O que não piorar, melhor; acomoda-se dentro de nós e ergue paredes de granito. Abraçada a si própria à porta, no primeiro dia deste Outono, a mãe pensa; tenho de escrever a história da minha vida. É-me essencial não esquecer. A vida da mãe - penso "a vida da mãe", e não "a minha vida" - foi sempre mais ou menos isto. Uma criança pela mão a ser arrastada para longe daqueles que mais ama. Uma criança que olha para trás e acena, esperançosa. Talvez da próxima fique. Talvez da próxima possa ficar. Talvez da próxima me deixem ficar. Uma criança triste a acenar um adeus àqueles que a abandonam. Por vezes a mãe foi a criança triste. Outras vezes, foi a mulher que se abraça à porta e que sorri à criança triste. A vida da mãe resume-se a isso; uma vida é quanto mais vida quanto mais se insere nas tempestades e nos dias solarengos de uma família. E a família da mãe é isso. Uma criança triste...

A mãe sonhou com um emigrante. Um emigrante desconhecido que vinha atirar-lhe pedras à janela durante a noite. Queria um lenço, um lenço vermelho. A mãe já o tinha escorraçado quando um transeunte se abeirava da janela e me dizia: minha senhora - será que ele me chamava senhora? Às vezes já me chamam senhora - aquele senhor é um emigrante. Aquele senhor tem saudades da sua terra. Na sua terra bebe-se qualquer coisa de tradicional sobre um lenço vermelho dobrado. Antes de você morar nessa janela, morava aí uma senhora que, fosse à hora que fosse que ele viesse pedir-lhe ajuda, lhe emprestava um lenço vermelho. E a mãe procurava discernir o vulto do emigrante na rua deserta. Ele fora-se. Fora-se - gordo, baixo, corado, quase careca, num pranto. Fora-se em prantos, pois. Tenho lenços doutras cores, quis gritar-lhe. E ele fora-se. E a mãe engole as lágrimas. Antes de ouvir o que o pobre homem tinha a dizer, disse-lhe que desaparecesse, que a ela só lhe interessava dormir em paz.

A mãe não dorme, já vos disse? A mãe acorda muitas vezes durante a noite e tem sonhos ora muito bons, ora estranhamente perturbadores. Não maus, nunca maus. Não voltou a ter sonhos maus. Mas tem sonhos que a intrigam como contos sul-americanos. Hoje a tia Cláudia disse que eu ressono. Deve ser do cansaço, quero pensar. Nunca ressonei. Diz-me que faço um ruído estranho, como se "comesse" os meus dentes. Já mo tinham dito antes. O dentista não deu por nada no esmalte desses mesmos dentes massacrados durante a noite. A tia Cláudia ainda disse:
- Esta noite levantaste-te, foste à cozinha e comeste uma clara de ovo cru. Deixaste a gema.
A mãe recorda-se de ter acordado durante a noite e de ter ido beber água. Estas coisas que a tia diz são loucura. A mãe não é louca. Parecem histórias de bruxas. A mãe não comeu clara nenhuma. A mãe bebeu água e chamou o gato da janela - o gato não veio. A mãe voltou para a cama e adormeceu. Que estranha esta sensação de que a vida da mãe se está a tornar no enredo de um livro de surrealismo sul-americano...





A mãe não está triste nem magoada em local algum do seu ser. A mãe só está exausta, estranhamente incompleta. A meio gás. E não sabe porquê.


Quadro: Katherine Fraser

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Carta aos meus filhos #12

Hey,

A mãe não consegue parar de pensar em vocês. Desde pequena que sempre falei de filhos, de ser mãe. Ocasionalmente tenho vagas mais intensas desse instinto. Neste momento berro-lhe várias vezes ao dia para que se cale. «Cala-te, relógio biológico!», digo-lhe. Estás bêbedo, já viste a idade do corpo pelo qual andas a soar alarmes? Vinte e três. A mãe tem vinte e três anos e ontem acompanhou uma amiga grávida a duas lojas de bebés. E foi a perdição: só não me dobrei e saí arrastada e em lágrimas, como na feira do livro de Lisboa, porque estava entre colegas de trabalho e há que fingir ser-se uma pessoa normal. Peguei num fatinho de bebé, creme às riscas (porque de súbito não me importa o género da criança nem o nome), e imaginei um bebezinho lá dentro. Sabem, quando estão tão gordinhos e encolhidos que, quando se pega na criança, as pernas esticam e a barriguinha e a fralda parece que fazem o fatinho encolher? E os ruídos de sono? As mãozinhas fechadas? As unhas minúsculas? Os olhos, que na realidade ainda mal vêem? E o cheiro do cocuruto, a calda de açúcar? E os pezinhos? E os banhos felizes? E quando, por desígnios incompreensíveis, um bebé sorri e o nosso coração dá piruetas de tão enternecido? E depois, tudo o resto? A mãe sente a vossa falta.
A mãe sempre soube, a par que o seu grande sonho é ser mãe, que é maluca. Talvez o grande sonho da mãe só seja ser mãe porque sabe que seria incapaz de vos chamar a um mundo tão vasto e tão obscuro sem garantias. A mãe sabe que, se for mãe, significa  que encontrou alguém especial, que tem um lar seguro, que protege e que é protegida. E o amanhã, nessas condições, não seria algo incerto. A mãe sabe que, para ser mãe, a sua vida tem de ser uma bênção de pequenas alegrias e circunstâncias felizes. E talvez vocês sejam só a pedra-chave desse arranjo harmonioso. Túlipas amarelas num jardim em construção.
A mãe está descansada. Receia sempre que se trate de uma calmaria antes de nova tempestade, mas está feliz e em paz. As cartas nem sequer me chamam; não há nada que queira saber ou que me inquiete. Os meus desejos repousam na Fontana di Trevi, numa moeda de libra, numa estrela cadente na Fonte da Telha - antes de ir para a Alemanha, a mãe sentou-se num telhado, junto à chaminé da vizinha, com a tia Cláudia. Vimos muitas estrelas cadentes nessa noite (afinal, era a noite delas!), mas a mãe disse-lhes que o seu desejo é um só e o mesmo de sempre, tendo já dado decerto entrada nos seus arquivos há muito tempo -, e por último foi colocado junto a nossa excelência, o Burro de bronze em Bremen. Acariciei-lhe o nariz e segurei-lhe as pernas junto aos cascos, como vi os outros fazerem. A mãe também se sentou em igrejas irlandesas, portuguesas, italianas e germânicas a expôr o mesmo pedido. Ultimamente, descobriu até que é mais cristã do que se julgava. Acreditar é uma virtude, e a mãe saiu da obscuridade da descrença para a aurora da compreensão e da fé.
Entretanto espero-vos aqui, numa Almada onde, em dias como hoje, o sol do entardecer incide sobre as pedras da calçada e causa uma cegueira e um banho de ouro dignos de um desvio de rota para serem admirados.


Hoje tive outro sonho estranho. A mãe e uma “amiga” desconhecida viviam numa casinha junto à praia. A mãe não gostava da “amiga” nem do pai dela, e sentia-se meio prisioneira deles. O que estranho é que era apaixonada pelo marido da amiga. Este rosto era conhecido, mas o contexto é inesperado. Quando ele cedia aos avanços da mãe, éramos surpreendidos numa situação menos própria. Digamos que nenhum de nós tinha muita roupa vestida. A “amiga” - a mãe não faz ideia de quem seja esta figura na sua vida - ia fazer queixa ao pai da minha traição. O marido sussurrava-me que deviamos fugir dali o quanto antes. Eu fazia a mala à pressa, ansiosa por fugir com ele e deixar tudo para trás. O pai dela vinha ter comigo e perguntava-me se era verdade que traíra a filha e a confiança dele sob aquele mesmo tecto. Eu dizia-lhe, sem hesitar, que eram coisas da cabeça da filha. Precisava era de ganhar tempo até fugir.

E é isto, acordei. O que me incomoda? A traição não me incomodava. Não tinha vergonha nem lamentava ter causado sofrimento. Muito bem, é um sonho, mas a mãe estava tão cega que se abandonava a uma coisa errada e nem pensava duas vezes. Ainda mentia na cara do pobre velhote que, como a filha era paranóica e a mãe muito mais confiável, acreditava, posicionando-se do meu lado. A mãe tem que ir descobrir que raio significa isto.



sábado, 14 de setembro de 2013

Carta aos meus filhos #11

Hoje foi um dia estranho (e triste),

A mãe tinha posto o despertador para as 06:00 da manhã, mas o mostrador vermelho que foi sempre consultando durante o sono – já de si agitado – fez-me saltar dos lençóis às 05:58. Enquanto tomava banho dei-me conta de que o alarme do telemóvel não tocou e já eram 06:20. Isso porque estava pré-programado para só tocar durante a semana e hoje era sábado. Ou seja, deu-se o primeiro acaso do dia: se não tivesse tanto medo de dormir sozinha nesta casa, e se dormisse um sono profundo e descansado, não teria visto as horas, o despertador não teria tocado e eu teria perdido o autocarro das 08:30 para Berlim.
Que fui eu fazer a Berlim? Ora bem, estando a 280 km da capital, a três horas de autocarro ou duas de comboio, considerei um desperdício não visitar o outrora coração do Reich III. A viagem foi longa, não podia cruzar as pernas que a circulação parava de imediato nem dormir confortavelmente. A somar a isso, assim que meti um pé no metro em Richtweg, entendi que me tinha esquecido dos phones em casa. E, nessa mesma manhã, sem vontade nenhuma de sair da cama para ir visitar Berlim, convenci-me que não podia morrer sem ouvir a Wind of Change junto a um pedaço do muro. Assim sendo, palpitou-me que o dia ia correr mal.
Não depus nenhuma expectativa em Berlim, guiava-me apenas uma certa suspeita de que não gostaria da cidade. Por isso, a capital estava livre para me impressionar pela positiva. Aconteceu o exacto oposto, e vi-a sob um sol de torreira que me queimou a cara e me fez arrotar 2,00€ por uma garrafinha de 0,5L de água e quase o mesmo valor por um muffin.
O autocarro deixou-me em Kaisercamm. Gravei o nome dessa estação de metro no braço e no inverso do bilhete de metro (2,60€, válido por duas horas). Desci em Potsdamer Platz e era suposto mudar de linha, mas aparentemente o dito cujo Brandenburg’s gate era logo ali. Caminhei ao longo de uma vasta avenida (tudo é grande, em Berlim), e passei por uma qualquer comemoração de uma comunidade italiana. Os italianos foram os meus amigos aqui da Alemanha, sem dúvida. Quando eu perguntava “fala inglês” e eles, tristes, respondiam “no, italiano”, eu deitava os braços ao céu e dizia “grazie a Dio”. Quando vislumbrei a tal porta da cidade – o símbolo de Berlim – fiquei decepcionada com o seu tamanho reduzido. Imaginava algo em grande, mas à luz das dimensões monumentais de Roma, pareceu-me tacanho. O facto de estar a haver um evento político – com direito a discursos em alemão e uma grande multidão apinhada – não ajudou a bloquear a minha mente para os acontecimentos da II Guerra Mundial. Imaginava o terceiro Reich a propor-se a conquistar a Europa a partir daquela pequena praça. Também a águia alemã – um símbolo retro muito à século XX, me perseguiu nalgumas esquinas.
Comprei um cachorro quente – sem batata palha, estes tipos nem sabem fazem cachorro quente! – e uma cerveja, para não repetir a inexperiência quanto à Guinness, que nunca cheguei a provar enquanto estivemos na Irlanda. O cachorro foi cinquenta cêntimos mais barato que a cerveja, e o destino desta última foi, após o primeiro golo, uma queda livre para a vala mais próxima sob o testemunho do Brandenburg’s gate. Pedi a um estranho que me tirasse lá uma foto – para vos mostrar, um dia, que a mãe era muito emancipada aos vinte e três anos – e prossegui viagem. A Catedral de Berlim não aparecia em canto algum e comecei a olhar ansiosa para as horas, isto porque tinha cinco horas para fazer o  city break mais stressante de sempre. Quando a Catedral finalmente apareceu, junto à ilha dos museus, pensei: ora finalmente cheguei à parte mais bonita da cidade, talvez ainda vá a tempo de redimir-se. Qual quê. Procurei ângulos para uma fotografia decente dos museus – nada, são enormes, mas de bonito pouco têm. Mega estruturas de inspiração neo-clássica que me parece até tosca quando comparadas com as italianas. Nem entrei na catedral, subi as escadas ao som do bramidos de uma cigana romena contra o filho (que estava de birra, como também me apetecia estar) e voltei a descê-las após espreitar para o interior.
Next stop, Alexanderplatz. Supostamente um dos hot spots da cidade. Estive nela sem poder acreditar que aquilo fosse a famada Alexander Platz. Cheirava a subúrbio, falta de sentido estético e sobrevalorização aguda. Uma coisa tão banal (mas grande, e eles classificam os monumentos como “a maior praça da Alemanha”), que já tinha prosseguido o meu caminho quando me obriguei a voltar atrás. Ninguém acreditaria em mim quando dissesse que a Alexanderplatz é um embuste. O que resta a Berlim se tudo me pareceu medíocre? Voltei atrás para tirar algumas fotografias que justificassem o meu exaspero. Nem tive de me esforçar por encontrar um mau ângulo – ângulos bons, não os há. A Canon gemia de frustração. Três horas de viagem prometiam qualquer coisa de grande.
Desisti do centro de Berlim e pensei que ainda me faltava ir à parte que realmente me interessava, o último ponto da viagem, a East Side Gallery. Quando desci da estação dei por mim num ermo facilmente comparável a um Fogueteiro, só que com uma mega estação no meio. Ao menos é feio mas é em grande. Já me tinham avisado que não se trata da zona mais bonita da cidade, mas depois de ter desgostado de tudo o resto, julguei que poria o pé fora do comboio, espreitaria para o exterior e apanharia o primeiro U-bahn back to Kaisercamm.
Como a sinaléctica é inexistente, quase me perdia durante mais um bocado até lá chegar. Não há quaisquer indicações em inglês, não há qualquer direcionamento para o turista. A língua não é propriamente fácil e não há assim tantos cidadãos a dominarem o inglês. A cada vez que uma palavra em germânico pautava as suas indicações, a receita para mais deambulações sem rumo estava encaminhada.
O muro tem um significado que teria gostado de percepcionar a ouvir a tal música dos Scorpions que mencionei. Contudo resumiu-se a uma longa caminhada junto a uma parede colorida com bonitas mensagens e ilustrações, lado a lado com uma cidade que mal podia esperar para deixar para trás e para fazer “check” na lista dos locais a conhecer. A Alexanderplatz surgia lá ao fundo (aquela torre que nem tive tempo de investigar a que se deve, posto que decidi numa tarde ir a Berlin e planear o que ver/fazer). Caminhei até ela. Penso que o percurso tenha durado de tinta a quarenta e cinco minutos. Isto porque não se conhece realmente uma cidade sem lhe termos impresso parte da sola de uns sapatos. Quando finalmente passei por um Photoautomaten, uma daquelas cabines de fotografia de rua que te devolve vários rostos e ângulos de ti próprio a preto e branco (o prometido), julguei que a cidade queria redirmir-se. Ia entrar e desembolsar 2,00€ de boa vontade quando reparei que… bem, como é que posso coloca-lo sem utilizar a asneira que me vem à mente? Já sei, utilizando a asneira. Merda. Merda humana a repousar comodamente no assento, rodeada dos insectos que a adoram e a afastar-me de vez de Berlim a sete pés.
Voltei para casa noutro inferno de três horas em que nem podia cruzar as pernas a perguntar-me se terá valido a pena. O dinheiro certamente valeu, porque paguei pouco mais de trinta euros por uma ida a Berlim, mas e o resto? O calor, os preços inflaccionados, a fealdade geral? 
Cheguei a Richtweg às 22:00. Sabia que me esperava outra noite de receios. A mãe nunca foi medricas mas, ultimamente, tem medo do escuro. Medo do escuro e doutras coisas que não sabe nomear. Aquela casa fazia barulho. Todas as casas fazem mas, num bloco vertical com quatro pisos e lanços de escadas em madeira, nem o alcatifado garantia silêncio absoluto. Primeiro houve a situação das tais vozes, tipo televisão ligada, que escolhi assumir que foi mesmo a televisão do vizinho a causar tal susto. Em seguida, à noite, mantinha-me estranhamente alerta, e eu até tenho facilidade em me abstrair. Há duas noites, quando estava mesmo, mesmo a cair no sono, mesmo com os dois pés a escorregar para o outro lado, ouvi um ruído na madeira das escadas. Suficiente alto para me acordar, relampejou-me na ideia a impressão de que um corpo transferia o peso dum último degrau de madeira para a alcatifa cá de cima. Por muito que precisasse de dormir, porque ia acordar cedíssimo, quem me convenceria a adormecer sob tais condições? Mantive a minha vigília enquanto pude. Não me lembro de adormecer. Além disto parece que a casa… respirava. Isto é, às vezes parece que estranhas massas de ar reequilibravam as energias no seu interior. Punha-me a olhar para um sítio fixo sem que daí adviesse nada, mas a minha percepção e a minha visão pareciam desencontradas. Ontem à noite a torneira da cozinha lembrou-se de pingar. Desci as escadas com à vontade, a fim de fechá-la melhor. A parede das escadas dá directamente para uma sala cheia de carpetes e mantas onde nunca cheguei a sentar-me. Tive de parar abruptamente porque me pareceu que algo se estava a mexer na sala ao lado. Algo respirava e ouvia-lhe, com o mexer dos lábios, o revoltear da saliva. Não estou louca, pensei. Todos os meus sentidos gritavam que estava ali alguém. Tinha de estar ali alguém. Sabem quando sentem alguém se aproximar das vossas costas? Olham sobre o ombro e é um amigo. Os meus sentidos diziam-me que estava lá alguém. Mas nada. Subi e encolhi-me num canto, já esquecida da torneira. Pouco depois reuni coragem suficiente para ir lá abaixo, com uma pequena faca em punho, inspeccionar. Atrás do cortinado parecia que havia um volume. Eu não me lembrava de como tinha deixado os enormes cortinados opacos que vão do tecto à alcatifa quando, nessa mesma tarde, me tinha ajoelhado nela para fazer as malas. Tive de suster a respiração e afastar os cortinados. Como dormiria eu se não verificasse? Nada. Mas aquele canto tinha ficado como que preso ao chão, então voltei a puxar os cortinados. Nada. Continuava a haver um volume estranho na forma como os mesmos se rearranjavam, e puxei uma terceira vez. Nada. Por último, sem puxar, olhei simplesmente lá para trás. Nada. E o receio eclipsou-se por um momento. Mas não por demasiado. A cada vez que a madeira das escadas estalava ficava em pânico. Desliguei o computador à pressa a fim de me fechar no quarto e tentar dormir um pouco. Duas das vizinhas ainda tinham as luzes acesas e isso passava-me algum conforto.
A mãe, como disse, nunca teve medo de coisa alguma. Só da solidão e da incompreensão. E agora tem medo do escuro e doutras coisas mais. Na realidade, nas últimas semanas sentiu por mais de uma vez que passou ao lado de uma grande desgraça. Na auto-estrada quase sentiu um anjo negro de asas distendidas a passar ao lado do carro. Ficou desconfortável e, uma vez mais, estranhamente alerta. Depois sucedeu qualquer coisa de mal. Em seguida uma senhora com intenções duvidosas ofereceu-se para cuidar da mãe em Hamburgo. Estava tão farta de procurar casa que aceitei as suas ajudas e quase me meti na boca do lobo. Depois em Berlim, senti-me constantemente ameaçada e pensava que uma viagem só termina bem quando pomos o pé em casa. A prudência foi como um manto sobre os meus ombros, a tal ponto me achei sortuda por não me ver desgraçada que já pensava que, se me levassem só a Canon, era justo.
E assim concluí que sou uma mulher muito abençoada, e senti-me religiosa. Tenho sido muito protegida, ultimamente mais do que nunca, por uma estrela anónima. Ainda assim, sinto qualquer coisa de negro a rondar, como uma sombra que me tolda os movimentos e me mantém constantemente em vigília.
E antes de me deitar ainda recebi uma notícia má que me pôs a pensar na vida, nas partidas, no que está para lá disso e na sorte tremenda que tenho tido. O destino continua a lançar os seus dados – e eu continuo no sítio aonde tenho que estar – porque marquei a viagem para casa a tempo de ir reencontrar a minha vida e abraçar quem precisa.
Para concluir Berlim e me deixar de assuntos que só suscitam dúvidas retóricas:
A experiência não foi das melhores, em parte porque também viajar sozinho é desafiante, mas não tão gratificante quanto julguei que fosse. Considerei a capital da Alemanha a cidade mais feia que visitei até hoje, e olhem que estive em Milão (cinzenta, superficial, sem espírito artístico), Dublin (industrial e plain) e Hamburgo (pouco homogénea, a mistura do antigo com o moderno não funciona bem). Bremen, em contrapartida, tem o encanto de uma fábula – e a mesma se insinua a cada esquina. Foi este pequeno cantinho que salvou, perante os meus olhos de curiosa, a Alemanha.
O Italiano da Sicília dizia, enquanto me prepara um spaghetti ai funghi, que os países do Norte têm dinheiro – as senhoras passeiam-se com saquinhos da Dior e malinhas da Louis Vuitton – mas não fazem ideia do que é a beleza e a alegria. A beleza não pode ser planeada, ou sai gorada. A beleza não pode ser aleatoriamente plantada no centro de uma praça, porque não depende apenas de uma fonte destaca-la. A Fontana di Trevi bem no meio da Alexanderplatz morreria. A Piazza Navona por entre a solidez obtusa daqueles monumentos sufocaria. A beleza está no espaço, mas o espaço é algo de amplo. A beleza está na musicalidade de uma língua, na compleição dos rostos que a cantam, nos gestos das gentes e nos modos das crianças.
A Berlim falta o senso estético da beleza. Da beleza que jorra em cada esquina de Lisboa, algo de tão complexo que é mais do que mera obra humana; é um conjunto de circunstâncias felizes. Aquele senhor, por acaso, decidiu construir uma casa naquela esquina que, por acaso, dá para nascente, e à sua disposição só tinha aquela pedra, que, por acaso, capta essa mesma luz de modo especial. A mulher estendeu nessa manhã, por caso, os lençóis coloridos da cama do filho de ambos e o padrão dos mesmos sobressai no amarelo da fachada. Sendo por acaso primavera, as sardinheiras acabaram de florir na varanda. Por acaso ao lado da sua casa ergue-se uma pequena igreja, por acaso o sino está a tocar quando vamos a passar. Por acaso há outras casas por entre as ruas casualmente sinuosas desse pequeno bairro e, quando por lá circulamos, têm as janelas todas abertas e toca uma voz melodiosa que fala dessa palavra tão portuguesa – a saudade. Por acaso mais adiante prepara-se o fogareiro para assar a sardinha e, logo além, as crianças gritam e pulam e enxotam os gatos vadios. Por sorte lá em cima há um miradouro e, depois de uma refeição inesquecível (e barata), onde não faltou um bom vinho, afastamo-nos do eléctrico para aceder à balaustrada e debruçamo-nos. E de lá vemos as andorinhas esvoaçar sobre a superfície espelhada do Tejo, mesmo porque entretanto é quase verão, e ao longe o cacilheiro. Os jacarandás explodem em lilás por toda a parte e a cantiga da cidade despede-se sem deixar de nos desejar um boa viagem, volte sempre.

E é por isso que a mãe voltou para o sítio ao qual pertence.

No fundo, sempre soube que o vosso pai não seria alemão.

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Carta aos meus filhos #10

Queridos,

Hoje a mãe perdeu-se por meia hora algures entre uma estação cujo nome não sabe dizer e outra à qual deveria chegar mas cujo nome também não sabe dizer. Pesando os acontecimentos do dia e dos últimos tempos, sentiu essa desorientação como uma suprema liberdade. Perdermo-nos significa não sabermos onde temos os pés. Para onde vamos? Como retornar ao nosso caminho? E a mãe saiu do metro, perdeu o autocarro que devia apanhar e, num ímpeto de fé, meteu-se no primeiro que apareceu. Pensou “com sorte, leva-me aonde quero ir”. E, sentada de frente para as janelas que passavam os arredores como um filme em tela verde e cinzenta, golpeado por rasgos do final do dia, sofreu os altos e baixos do desconhecido e do vagamente familiar. Hoje deu por si a pensar sobre felicidade, casa, religião, o sentido da vida. Desde que chegou que tem procurado os sinais. Sabem, quando estão num sítio e não entendem ao certo como foram lá parar mas, de repente, uma rádio próxima toca a vossa música favorita e vos reconcilia com o universo? A paz transmitida é de quem sabe que está onde deve estar. E, embora vivendo na casinha nº5 – e o 5 significa muito para a mãe, porque somos cinco irmãos – a mãe não voltou a receber sinais sobre estar no sítio certo. Ou, até hoje, não tinha voltado a receber. E o que aconteceu hoje para me reconciliar com a minha vida e para me passar a confiança necessária para entrar num autocarro desconhecido sem saber onde iria aportar?
Bremen é uma cidade lindíssima. Fiquei encantada e envergonhada com a minha ignorância quanto à arte e à História germânicas. A Catedral inebriou-me e a história dos músicos enterneceu-me. Mas a certeza de que hoje estive onde o destino quis que estivesse foi o que aconteceu quando a hora de voltar ao comboio se aproximou. A mãe conseguiu voltar – apenas guiada pelo se sentido de orientação – quem diria que tenho um? – para Bremen Hbf (estação central). Depois de percorrer todas as montras com os olhos, meteu-se numa espécie de self-service de bolos e bebidas quentes mesmo em frente à estação. (Porquê ali e não noutra das dezenas de montras que inspecionei?) Faltava uma hora e meia para o meu comboio e, por isso, comprei uma berliner e um café (uma aguadilha, na realidade) e sentei-me à janela. Um senhor alemão veio apoiar os cotovelos na minha mesa (alta) e começou a debitar coisas conhecidas em Espanhol e contou-me que viveu 8 anos em Alicante. Sentei-me a comer enquanto o funcionário me dizia que os espanhóis não gostam de estrangeiros e lhe pareceram rudes. Entretanto outro senhor, de barba comprida e um estranho chapéu preto na cabeça (que pareceu careca sob as malhas), vem sentar-se ao meu lado em silêncio e ouve discretamente a nossa conversa. Às tantas os dois começam a falar da América em alemão e sou excluída. Oiço o alemão dizer: mas você não bebe álcool, e o outro senhor anui. Pouco depois o alemão desaparece e fico sozinha, a comer a berliner com recheio de doce de amora ou framboesa e a conversar com o senhor que não bebe álcool. Fala mal Inglês, diz-me, porque não aprendeu na escola. Eu acho o seu discurso claro e os seus olhos pacíficos, a escola da vida é infalível. E assim passei ali a hora e meia que faltava para o meu comboio a pensar: olhem para mim, com um metro e cinquenta, sozinha na Alemanha e a conversar tranquilamente com um muçulmano – o bicho papão mundial, segundo a comunicação social. Jovenzinhas, fujam!
O senhor contou-me que é muçulmano, da Argélia e, com um tom conciliador, perguntou-me o que acho dos muçulmanos, o que ouvi dizer deles? Então explicou-me que tem que se sentir os outros com o coração. Que, o que quer que seja que uma religião ou um governo professem, sabemos sempre dentro de nós o que é certo e o que é errado. Respeitam os animais, não comem cão nem gato, adiantou, não são como os chineses. Nem comem animais como o porco ou a cobra, nem bebem o seu sangue. Elucidou-me, por exemplo, no que diz respeito à poligamia. Os homens da sua religião não o fazem por luxúria. Fazem-no por generosidade. Porque um homem, quando tem posses, deve ajudar uma mulher. A primeira mulher tem outro estatuto, mas a segunda pode ser uma viúva com filhos. Ou alguém que, por algum motivo, não casou quando era esperado. Alguém que precisa de apoio e ele estende-lhe esse braço. Porque não ajudá-la se tem meios para o fazer? Se não tiver meios de a sustentar é até imoral acolhê-la como sua mulher. Pus-me a pensar que tantas vezes o homem ocidental leva da mulher ocidental (por acordo mútuo) o mesmo que o homem islâmico leva da mulher islâmica, e sem lhe dar nada em retorno. Tantas vezes nem um telefonema nem um post-it, quanto mais uma casa e alimento. Talvez seja por me sentir desamparada, mas achei que tudo aquilo faz imenso sentido. Ninguém é perfeito, afinal de contas, e muito menos uma cultura, sociedade ou sequer civilização são perfeitas.
Fez notar que o importante é não julgar, respeitar, e sobretudo tentar compreender. Informar-se, não ouvir falar, mas procurar saber. Aprofunda o discurso dizendo-me que um pai tem sempre um filho favorito perante o seu coração. Também o marido muçulmano não sente o mesmo por todas as esposas, mas não lhe é permitido trata-las diferencialmente, assim como também não o fará perante um filho. Diz-me que acha que tudo seria mais complicado só com uma mulher – quase como se dissesse que no amor entre duas pessoas, uma passa a ser o mundo da outra e, se a relação deles desmoronar (se um morrer, digamos), o mundo desmorona também. Acrescenta que o argumento de que as mulheres, então, também deveriam ter vários maridos, não faz sentido. Não faz sentido porque a mulher é receptáculo de protecção e não fonte dela, é gerente de receitas e não geradora das mesmas. Quando essa mulher tivesse um filho – pois que seria um útero para várias sementes – quem seria o pai? Por muito patriarcal que seja esta visão, eu entendi. Chama-se tradição, e também a tourada é respeitada e é abominável. Porque não abrir um pouco mais a mente? Serão essas mulheres escoltadas por uma arma até ao “altar”?
Adianta que a imagem de violência, terrorismo, maus-tratos para com mulheres, não é ilustrativa de grande parte do islão. São sim o retrato de situações que nem o Deus deles aprova, mas que alguns indivíduos praticam. Mas em cada religião há elementos bons e maus, e Deus (Alá) criou o mundo e não se deve criticar as coisas como ele as fez, ou critica-se a obra superior. Não se deve rir dos outros nem falar nas suas costas, ou gozamos com a obra de Deus (que eu traduzo por – com a ordem das coisas – nada nem ninguém é perfeito e todos temos telhados de vidro).
Fala-me de gratidão – tem saúde, tem trabalho, vive há vinte e dois anos na Alemanha e acha que é como viver noutro sítio qualquer - porque o importante é ser-se feliz e casa é onde nos sentimos bem –, não está desfigurado e tem forças para ir agradecendo pelo que lhe foi oferecido.
Profere tudo isto com humildade, um brilho nos olhos e uma mão no peito. E diz-me; não é minha missão tentar converter-te, mas quando chegares a casa e tiveres dois minutos, podes tentar ler sobre o islão. Depois acrescenta que imagina que eu receie as pessoas da sua religião pelo que se ouve em todo o lado, e eu contei-lhe a minha aventura com um iraniano em Roma. Saliento que me perdi e apenas fui jantar com o rapaz, nada aconteceu nem nenhum romantismo se insinuou. Ele ouve com atenção e no final diz-me, pacientemente: foi um erro, Deus pode desculpar-te uma, duas, três imprudências, mas chegará a vez em que algo de mal te acontecerá. Podia ser agora, aqui neste café, podia ser eu o mau.
E di-lo com tanta bondade no olhar que é como um pai a falar com um filho, e não uma ameaça dissimulada. Ainda não foi dessa vez que tentei a sorte e ela me atirou ao chão. Digo-lhe que sei reconhecer uma boa pessoa quando a vejo. Ele diz-me o mesmo.
Quando me despedi dele, estendi-lhe a mão. Eu tinha meia hora até ao comboio e ele meia hora até à próxima oração. Pediu-me perdão por não poder apertar-me a mão e explicou-me uma última coisa: um muçulmano pode apertar a mão (ou beijar o rosto) de mulheres da sua família com quem não possa casar-se. Uma irmã, tia, cunhada, mãe. Mas não pode fazê-lo a nenhuma mulher com quem possa casar-se. Por isso pede-me perdão pela recusa, diz que lhe seria mais fácil apertar-me a mão do que debitar-me uma explicação. Acrescenta que não é porque tenha nojo de mim ou me ache feia ou indigna, mas o Deus dele pede-lhe que não o faça e ele prefere respeitá-lo. E eu fui-me embora com a certeza de que aquela conversa estava à espera de vir ter comigo.
No autocarro para local desconhecido, perguntei-me se seria agora que a sorte me fugiria de debaixo dos pés. Estava a anoitecer, encaminhava-me para onde, mesmo? Não sabia. Contudo sabia que preciso de beleza na minha vida. E a beleza é algo de relativo que causa comoção. E aqui tudo o que me comove é por uma beleza discreta que não guarda nada de familiar para me mostrar. E casa é onde somos felizes. E a felicidade é quando estamos aonde sabemos que devemos estar. E a mãe não sabia para onde estava a ir, mas sabia que voltava ao caminho certo, mesmo não sabendo onde o autocarro a levava.
E, com a decisão que acabara de tomar, já fazia sentido estar na Alemanha, dormir na casa número cinco e ir a Bremen.
Quando o autocarro finalmente parou, o mercado de flores já tinha fechado. A mãe atravessou a estrada já familiar e desceu para o metro que tinha de apanhar.

Nunca duvidei realmente de que a vida me trouxesse aonde preciso de estar. É só ter fé e acreditar.

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Carta aos meus filhos #8

No meu primeiro dia de trabalho em Hamburgo,

Descobri que coragem é mesmo coragem. Não é só assumir o pódio de uma atitude ousada. É mantê-la e velar pelas nossas escolhas.
Tendo acordado às 06:00, descobri que as coisas realmente demoram mais quando nos sentamos por dois minutos a tomar o pequeno-almoço, lavamos a loiça, limpamos as migalhas da mesa, apagamos as luzes de presença que acendemos à noite, escolhemos a roupa à pressa, pintamos o rosto e o desodorizante mancha a camisola. Em seguida os sapatos escolhidos não condizem com a chuvada lá fora. Entretanto o pijama ficou dobrado debaixo da almofada da cama feita. Só me atrasei em dez minutos, por isso experienciei o rush das sete e dez dos subúrbios para Hamburgo. Com entra-e-sai do metro (que está em obras e por isso demora uma hora a chegar ao centro com um troço do caminho sendo feito por um autocarro), todos apanhámos chuva. Todos cheirávamos, debaixo do Hugo Boss e do Amor Amor, a cachorro molhado, como dizem os brasileiros. Para não falar na minha rua que cheira a estrume. Verdadeiramente, por entre os arbustos de lilases e hortências, com a chuva todos os jardins cheiram a estrume.
Nas finanças fui atendida em dois minutos e descobri que não era ali que devia estar. No Consulado português sentei-me por uma hora a ver a RTP1 e a ouvir os transmontanos a falar no ouro que o Salazar amealhou e no subsídio que recebem da tropa – 18,00€/mês equivalentes a uma carga de trabalhos e toneladas de papelada. Não fui atendida porque, nessa hora em que lá estive, esteve sempre a mesma pessoa sentada perante a única pessoa que estava a atender. Senti-me em Portugal. 
Refugiei-me no Starbucks e dei por mim a perguntar-me se essa cadeia têm alguma coisa que a valha além dos copos bonitos que ficam bem nas fotos do instagram. Pior expresso que jamais bebi. E por 1,90€.
Depois Neuer Wall – onde trabalho, é o paraíso das primas donnas. Cartier, Bvlgari, Louis Vuitton, Gucci, Tiffany & Co, etc. E o pesadelo de quem trabalha com mercado brasileiro e sai às tantas do escritório por causa do fuso-horário. Na Praça do Parlamento já está tudo fechado quando saio, e nem saio assim tão tarde. Nem é possível comprar-se pão, já.

Acabo o dia a encaminhar-me, noutro metro a cheirar a cachorro molhado, para uma casa vazia e em silêncio onde não posso esquecer-me de acender as luzes do exterior – por causa dos passantes ou de possíveis assaltos? – e de fechar as cinquenta mil portas. Espera-me aquilo que tentei que fosse uma canja mas que, na realidade, é só sopa de arroz e cenoura. 
Amanhã, desconfio, será igual.