quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Carta aos meus filhos #17

Meninos,

O gato ainda não voltou a casa. Ontem, à luz do aeroporto de Fiumicino, na fila para embarcar para Bari, a mãe sentiu que a sua pele era translúcida. Se súbito, teve vergonha da rede de veias e articulações que lhe cruzam a pele. Sentiu-se embaraçada por causa das olheiras, da brancura excessiva da pele, que em certas luminosidades foge para verde, azul, roxo. A mãe sentiu que, se olhassem para mim, se alguém se voltasse ou olhasse sobre o ombro, ver-me-ia como eu sou.
O guia turístico que nos tem levado a calcorrear as ruas de Lucera tem uma luz especial. É a pessoa diferente; a mãe encanta-se sempre pela pessoa mais normal do mundo, mas no contexto errado. Os italianos falam alto e usam muito as mãos, riem e dizem piadas de olhos cintilantes. Este italiano fala um inglês cuidado e usa vocabulário específico que a mãe reconhece mas não está certa de que conseguiria reproduzir com tanta fluência. Por sabê-lo tão metódico, por o ver tão direito de pasta na mão enquanto, a seu lado, a guia local explica tudo em italiano risonho e gesticulado, e por lhe registar o timbre pacífico e as piadas que profere sem que se lhe altere a expressão do rosto, a mãe tem dificuldade em desviar os olhos dele.
Quando ele repete as explicações da italiana, que a mãe entendeu, acrescenta sempre qualquer pormenor interessante. Quando está perto de mim a explicar, não consigo impedir os cantos da boca de se curvarem num sorriso. Oiço na sua voz que também lhe nasce um sorriso nos lábios, que é rapidamente controlado.
Quando a mãe chegou, apresentou-se-lhe como um furacão: chegara há uma hora e já conseguira perder a mala com o computador, o telemóvel e o BI. Ele fez tudo para os recuperar.
Se isto fosse Portugal, a mãe diria que poderia ter encontrado o vosso pai. Não é que tenha o coração completamente desocupado, mas acabou de encontrar lá um espaço. Não foi o italiano que abriu esse espaço; o espaço estava lá, a mãe não sabia e ele foi lá meter-se. E isto não importa para coisa alguma, porque daqui a cinco dias, quando nos separarmos, a mãe sabe que não voltará a dedicar-lhe um pensamento.

Mas é bom saber que não morri, embora aceder a essas portas me cause uma náusea imediata, um mal-estar semelhante ao que um animal deve sentir quando os grilhões de uma armadilha se lhe espetam na carne. É bom descobrir que, passado o cataclismo, o meu coração começou a regenerar e se eleva, por fim, das cinzas.

sábado, 12 de outubro de 2013

Carta aos meus filhos #16

Um dia...


Um dia, vocês vão pedir-me se podem ter um cãozinho ou um gatinho. Perdoem-me, queridos, mas a mãe é capaz de vos vir a negar isso. Na altura vocês não vão entender. A mãe dirá que já perdeu alguns animais e que se sofre muito, e vocês dirão que as alegrias que esse animal trouxer vão atenuar as dores causadas pela perda dos anteriores.

Ainda assim; não.
Espero muito estar enganada, mas ontem, quando a mãe foi à porta chamar o Napoleão e ele não veio, caiu qualquer coisa cá dentro. A mãe é uma mulher de sextos sentidos. Por vezes erra, mas alguma coisa me impediu de dormir esta noite em paz. Hoje o Napoleão desapareceu (sem que o soubesse, porque estive o dia todo fora ontem, já não era visto desde a manhã anterior).

Chamei-o e ele não veio. Os "amigos" dele, aqui da zona, procuram-no. Chegaram ao ponto de me entrar em casa, de se aproximarem da minha cama. De me assustar. Não, ele não está por casa. Se estivesse pela área, quando abri a porta do quintal há pouco e o chamei, não haveria um gato sentado no nosso pombal.

Um gato preto, de costas para mim. Vejo-lhe as orelhas recortadas na noite. Pelo sim pelo não, chamo-o. Não se volta. É tão tarde, e a mãe sofreu tanto hoje, que volta a chamar; és tu, Napoleão? O outro gato está imóvel, de costas para mim. Faço toda a espécie de ruídos e nada. Então começo a pensar que estou a imaginar coisas, empurro a porta e saio para as escadas. Finalmente se digna a olhar-me: não é o Plião.

Reparo nas estrelas, tão luminosas, e distingo a forma de um papagaio. A mãe sente os olhos encherem-se-lhe de lágrimas e diz-lhes que só quem tem animais sabe o sufoco que é, a maldade que há por aí para com os gatos, sobretudo. Pede-lhes que mo tragam de volta, um pedacinho do meu coração escaqueado tem-lhe amor. É-me vital experienciar um bocadinho de amor. E então, enquanto admiro as estrelas de coração nas mãos, uma ave enorme - só podia ser uma coruja ou uma espécie de falcão, abre as asas e sobrevoa o espaço entre o prédio em frente e o meu telhado. É tão grande - e prenuncia algo de tão mau -, que sei que o universo está a mandar-me mensagens de consolo.

O que aconteceu? Onde está o meu gatinho?
A mãe tem muitas dúvidas nesta vida que gostaria de ver respondidas. Mas a verdade é que, se apenas pudesse colocar uma questão ao universo, perguntaria precisamente:
Onde está o meu Napoleão?

Corri todas as ruas da zona, a pé, de carro. Perguntei a todos os vizinhos com que me cruzei, ouvi histórias horríveis sobre cães e gatos que assassinam gatos, sobre pessoas más e sobre animais que regressaram a casa ao final de meses, outros que caíram em recantos e nunca regressam. Calcorreei o seminário e esgotei a voz com o nome dele. Não o encontrei, não consegui dormir. Era eu encolhida num canto e a tia Cláudia encolhida noutro.

A mamã só consegue dizer à vida que já entendeu, a existência é sofrimento, bláblá, tem de estar preparado, sofre-se muito, perde-se quem se ama, nada é garantido. Sim, a mãe sabe que o mundo é um sítio perigoso. Pare de me dar lições, eu já sei - já senti - isso tudo. Agora poderia, por favor, mostrar-me o lado que não conheço? Felicidade? Paz? Conforto? Amor, talvez? Ou então deixe estar isso tudo e traga-me só o meu gato, para que eu possa chorar as infelicidades todas no lombinho dele.

Por isso, à vossa pergunta se podem ter um animal, a mãe responde, a partir deste outono em que está a sofrer horrores pelo desaparecimento do Napoleão:
- Não, poupem-se. Poupem-me.

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Lettera ai miei figli #15

Bambini,

Dove è il babbo?
Mamma ha questa voglia di fare l'amore con lui... Non ho mai fatto l'amore con nessuno fino ai 23 anni.
Oggi mi ho messo ad imaginarlo; me ed il vostro babbo saltiamo fra le onde, e c'è questa luna piena, bianca. Mi spoglio del vestito e lui mi guarda. E lo guardo anch'io, ed i miei seni sono anche bianchi sulla luna, ed lui sorride, ed io sorrido. Il mio sguardo cerca le sue mani, mi metto sulle sue mani. E l'amo. Voglio dirlì che l'amo, che l'ho amato sempre, da tantíssimo tempo...
Saltiamo fra le onde, le mani interlacciate, i corpi nudi, le anime ancora piccole, belle, giovanne. Gli chiedo di dirmelo solo una volta, voglio sentirlo almeno una volta.
Ti voglio bene, com'io gli ho sempre voluto bene.
E poi urlo, come dal film che ho guardato ieri:
- Voglio qualcuno che me sorprenda.
Ed il vosto babbino me sorprende e dice:
- Facciamo l'amore sulla sabbia?
E forse facciamo l'amore con la schiena sulla sabbia e la luna negli occhi.
Fa freddo, fa veramente freddo. Ma lui m'abbracia, ed io l'abbracio. Ed, all'interno dei suoi bracci, l'estate è qualcosa d'eterno.

Sono stata io chi l’ha disegnato quella bocca. Quella bocca scelta, con assoluta libertà, fra tutte le bocche.  Ed adesso parliamo di Julio Cortázar; Cortázar diceva che, quando Horacio bacciava Maga, la sentiva tremare contra lui, come una luna sull’acqua. Anch’io voglio tremare contra il vostro babbo, di freddo, d'amore, d'antecipo, di stanchezza, di adorazione, proprio come la luna sul mare.

sábado, 5 de outubro de 2013

Carta aos meus filhos #14

Hoje a mãe tentou ir trabalhar n’Os Pássaros para a biblioteca municipal. Acontece que não havia internet e, como resultado, não pode fazer nada do planeado. O ficheiro estava suspenso entre o meu e-mail e a dropbox. E fiquei assim, com um computador sem internet à minha frente. A certeza da nulidade de quase tudo sem acesso a ela…
Então peguei em dois livros a respeito das revoltas liberais do séc. XIX e pus-me a pesquisar para o meu novo livro. O mesmo que comecei no Alentejo e que tive de largar entretanto porque me voltou a incapacidade de escrevê-lo.
Em seguida fui sentar-me sozinha no MacDonald’s. Adorable light. Bláblá...A seguir vim para casa, e foi então que sucedeu o “acontecimento do dia”. Já a subir a Avenida do Cristo Rei, tive de me espremer entre um carro e uma velhinha de canadiana. Passei pela senhora de olhos postos no saco dela. Volumoso, mas o conteúdo parecia verde. Podia ser uma couve ou assim. Ainda assim tive de olhar para trás e, como ela me olhou, perguntei-lhe se precisava de ajudar com o saco. Não é nada que a minha avó não faça a toda a hora aqui pela vizinhança, por isso não me fica mal fazê-lo também.
A senhora confiou-me o saco, bastante pesado, porque vinha cheio de maçãs ou pêras, e pôs-se a falar comigo durante os metros que caminhamos ao ritmo da sua perna doente.
Tem oitenta e seis anos, uma reforma miserável. Vive com um filho que “só quer é passear, não me ajuda em nada”. Um filho que poderia aspirar a casa por ela e poupar-lhe esse incómodo. A senhora tem uns olhos castanhos enormes e bondosos, o cabelo liso, completamente branco, pelos ombros, e diz que vive ainda uma vida de trabalho. Pior, é obrigada a aceitar esmolas. Diz que lhe têm oferecido comida. Não tem dinheiro para suportar a ditadura dos trinta dias. Hoje deram-lhe fruta. Às tantas o meu coração aperta, e ela conta que já preparou a roupa para quando morrer. “Já me vesti para a morte”, diz, e a expressão é-me tão inédita que me volto para trás para lhe estudar as feições quando o diz; naturalidade, resignação. “Sim, sim. Já disse ao meu filho; quando morrer está aqui pendurada a roupa e os sapatos que quero levar”. E chegamos ao cruzamento que dita a separação.
Antes de me dizer adeus, ainda insiste para que eu traga alguma fruta comigo. Penso que, de todos os meus males, falta de alimento não é um deles. Quis dizer-lhe que só tinha cinco euros na carteira mas podia ficar com eles – ou acabaria o filho dela a beber bicas com eles?, quis dizer-lhe que, se precisasse, podia bater à minha porta num dia de maior precisão que não iria dormir sem comer qualquer coisa. Quis dar-lhe o meu número e pedir que me ligasse se estivesse aflita. Mas a garganta fechou-se e não disse coisa alguma. Não lhe ofereci ajuda, limitei-me a estender-lhe o saco e a recusar a fruta que me oferecia, antes que me pusesse a verter lágrimas perante a pobre mulher.
Saber que há pessoas que eu, também pobre, poderia ajudar com pequenos gestos. Saber que o Estado está incapacitado de ajudar estas pessoas – sabe-se lá em que circunstâncias caíram nesta mesma miséria. Saber que os filhos – como o dessa senhora – estão desempregados e a mãe de oitenta e seis anos é que vai batendo às portas para pedir comida para os dois. E disse-me “tinha mais precisão de dinheiro do que da fruta”, e eu penso que as suas contas estejam por pagar. Leva-me a ponderar sobre o quão privilegiada sou.
Estou muito de longe de ser rica e, todos os meses, o meu dinheiro chega à conta para as aventuras em que embarco. Desde que comecei a trabalhar, em 2007, dificilmente recebi 1,00€ que fosse da minha família para o que quer que seja – e acho muito bem que assim seja, porque um jovem com braços para se sustentar tem mais é que pô-los a mexer. Mas ainda assim tenho alguns luxos, se calhar até acima do meu nível de vida. Como comprar diariamente uma torrada no café (22,00€ ao final do mês), ou depilação a laser (40,00€ por mês), ou livros (150,00€ no mês da feira do livro), ou uma “actualização da roupa do armário para a estação” (150,00€ antes de ir para Hamburgo), ou tónicos faciais, champôs que prometem milagres no cabelo, incontáveis vernizes que secam no frasco antes que os use, uma televisão (que na realidade nem vejo), um terceiro computador (que ligo uma vez por semana antes de dormir durante dez minutos), um telemóvel longe da febre dos iphones, mas que havia com as mesmas funcionalidades a metade do preço, um quarto ou quinto par de botas, um terceiro ou quarto par de ténis, um décimo casaco, etc. E há as viagens – pelo menos uma boa viagem anual. Na realidade, tenho de considerar que sou mais do que privilegiada. Sou uma sortuda por ter trabalho e por conseguir manter um estilo de vida – que no entanto não me permite fugir desta casa, ou não me permitiu ainda, por má gestão – onde posso incluir viagens. As viagens são aquilo onde o meu dinheiro é melhor aplicado.
Desde o verão de 2012, andei pela Costa Vicentina e refugiei-me numa cabaninha amorosa no Cercal, subi por campos de girassóis no Baixo Alentejo, dividi o protagonismo das fotos com vacas alentejanas e esgotei as pernas no castelo de Beja. Depois percorri o litoral Algarvio e subi até casa via Guadiana, naquele que deve ser o troço de percurso que mais amo em Portugal; as bungavílias em Alcoutim, Espanha logo ali, Mértola encantada e a inacessibilidade do Pulo do Lobo. Fomos ainda a tempo de jantar numa pizzaria na velha e boa Beja. Fui à Irlanda – subimos a castelos, sentámo-nos em muros a admirar as cruzes celtas, furámos um pneu, visitámos inúmeras igrejas anglicanas, vimos até uma parada zombie em Galway e feri os olhos no verde intenso desse país. De volta a casa passeei pelo Minho, Gerês e Trás-os-Montes, almocei na Galiza, subi ao Bom Jesus de Braga e caminhei nas ruas antigas da cidade dos bispos. Fui ao Museu Grão Vasco em Viseu, fotografei o Outono em Ferreirós do Dão, fui a Coimbra e admirei a Sé Velha e os bairros estudantis debruçados sobre o Mondego. Sofri um quase primeiro acidente na estrada e fui pagar as promessas de velas a Fátima dez minutos depois – e sentámo-nos nas escadas do santuário a fumar um merecido cigarro perante um recinto quase vazio numa noite de Dezembro. Arranquei com os meus irmãos para três dias no Porto – aí sim, pude inspeccionar bem a Invicta onde nasceu a minha avó materna. Voei até à Madeira, maravilhei-me com as cores do mercado do Funchal e regressei ao continente para voltar a pisar o Covão d’Ametade e quase partir um osso na neve/gelo da Serra da Estrela. Comi cupcakes na Guarda e sentei-me num telhado de chapa a admirar o pôr-do-sol em Belmonte. Rumei à região Oeste sob uma promessa de chocolate e finalmente admirei as Capelas Imperfeitas da Batalha, voltei a emocionar-me com os túmulos góticos de D. Pedro e D. Inês de Castro em Alcobaça e perfiz a muralha de Óbidos a pé. Fui espreitar Monserrate, embrenhado em Sintra, e nesse mesmo ano voei para a Bell’Itália. Foram dias de sonho, esses passados entre spaghetti allo scoglio, os melhores gelados do mundo, as obras de Rafael e a Última Ceia do Da Vinci, a graça bucólica da Toscana e Maria Callas a sussurrar-me ao ouvido sobre a Ponte Vecchio. E então parti de novo para a minha adorada Beja, para um fim-de-semana com as manas. Depois fui para o Centro – as praias fluviais, o xisto, os rostos. Janeiro de Baixo, Fundão (pela segunda vez neste ano), Fraga da Pena, Piódão. Quase tive o segundo acidente do ano e voltei a Almada. Embarquei numa aventura improvável que me levou à cidade mais verde da Europa, e de Hamburgo não resisti a espreitar Bremen e Berlin. Volto a casa uma vez mais, apenas para descobrir que fui suficientemente abençoada para, ainda este mês, ir pisar uma bonita região italiana chamada Puglia (desta feita em trabalho, tal como a Madeira!). Por isso, quando me virem mal disposta, basta atirarem um destes locais para a conversa e arranjarei forma de recuperar a minha humildade e a minha gratidão à vida.
Com isto em mente, lembro-me da dona Florinda, de quem muito gostei, e que faleceu de cancro dos ossos. Ela dizia-me sempre:
- Célia, quando a tua desgraça te parecer grande, lembra-te que há maiores.

E hoje confrontei-me com uma dessas maiores e silenciosas, que toma não só essa minha vizinha da rua de trás, como muitos outros idosos que por aí circulam em silêncio. Por isso filhos, saibam que a mãe não tem muita razão de queixa. Mesmo que vos diga “ai eu sofri muito quando era nova, e vocês agora são uns despreocupados?”, “ai eu lutei muito quando era nova, e vocês agora só querem ficar sentados no sofá?”. Não me levem demasiado a sério. Houve sempre alguém pior.


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