segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Carta aos meus filhos #23


Alguns dias custam mesmo a passar. Conjugam-se vários factores; inverno, proximidade do Natal, período, dia chuvoso, segunda-feira. Tudo somado traz-nos à beira das lágrimas.
Mas a mãe não se sente apenas sensível, hoje. Não se sente às portas de outro Natal disfuncional, descolorido. A mãe sente que perdeu um filho. Lembram-se do tal gatinho sobre o qual vos falo volta e meia? A mãe sente falta dele. Uma falta de protector para com o protegido. De mãe para com os filhos. Ainda não vos tenho, quem sabe esta comparação seja totalmente absurda. O certo é que ele desapareceu há dois meses e meio e eu continuo a ver-lhe os vultos cá por casa. Qualquer sombra de viés me parece ganhar-lhe as formas, ser ele, naturalmente sentado sobre o baú dos lençóis da bisavó Norvinda. Continuo à espera de um milagre. Mas é assim mesmo que vivi a vida até aos 24. A ler os sinais, a procurar milagres e a espreitar possíveis futuros nas cartas. As cartas ora trazem conforto ora me deitam por terra. Falam do Ermita, da Torre, da Morte, do Louco. Tudo junto é um panorama um pouco assustador. Mas a mãe também tem promessas de felicidade com dia marcado. É a impaciência que faz de mim meio louca.
A mãe esteve a ler, por alto, alguns poemas da Florbela Espanca. Em seguida deparou-se no facebook com uma partilha a respeito das cartas de amor trocadas entre dois amantes, Anäis Nin e o um tanto ou quanto perverso Henry Miller, que parece um menino a viver um amor prenhe de obscuridades. Partilhar a mulher amada não pode ser fácil. Interpor um oceano entre ambos também não pode ser fácil. Principalmente numa altura em que uma mensagem não podia ser respondida em trinta segundos. Em que, se algo se afigurasse importante proferir, atingiria as mãos do leitor tanto tempo depois que poderia já nem fazer sentido. Mas os amores duravam, não duravam? Pesquisando por imagens dos dois amantes atormentados, descobri fotografias de ambos velhos a sorrir um ao outro. Como se o outro fosse o prémio da lotaria tão cobiçado. Como se lhe fosse a recompensa da vida por todas as agruras, por todos os momentos em que apetece largar tudo, abrir as asas e desaparecer. E a Wallis Simpson e o Rei Edward VIII? Ele largou tudo por ela; abdicou do trono, do país, da proximidade à sua família e do poder por uma americana divorciada por duas vezes. É amor e fé que, a falhar, teriam sido apelidados de loucura. Qual a linha que separa a loucura do amor? Qual a linha a partir da qual a insanidade amorosa é uma coisa boa? Qual é o momento certo para se começar a fazer sacrifícios por quem se imiscua em todos os nossos pensamentos e, aos poucos, se vai tornando fonte de consolo e de carinho?
A distância fere, mas há uma falta de crença, de capacidade de sacrifício hoje em dia, bem como uma noção de que devemos recolher do mundo tudo o que ele nos possa dar, e o quanto antes, antes de nos sentarmos a ser felizes. Adiamos o melhor da vida para mais tarde, arriscando-nos a uma má gestão do tempo real de que dispomos – e que é quanto, afinal? Passamos os melhores anos a desconfiar, a pisar, a saquear, a construir em alicerces de areia, a beber até cair, a fumar, a perder noites de sono com divagações sem nexo, a lamentar a perda da infância, o atraso da riqueza que almejamos, a tirar curso atrás de curso porque é o esperado de nós, para um dia mais tarde… Mais tarde, quando os anos de ouro já passaram, é que vem aquilo que deveria ter sido o mais importante desde sempre. Porque não um caminho comum? Um assumir de objectivos e de responsabilidades (e de loucuras) comum? Porquê a necessidade de “fazermos primeiro por nós”, primeiro para nós?
A mãe está a pensar nos grandes amores, nos trágicos e nos que envelheceram. O que é que no mundo poderia ser mais admirável do que uma Anäis velha a contemplar um Henry Miller caquéctico? Aqueles dois corpos arderam um dia pelo outro. Aquilo que foi fogo unificador, morreu. Mas as almas permanecem entrelaçadas e a ternura está lá, presente no olhar, presente no bem-estar que só a proximidade com o outro corpo velho consegue transmitir. E tantos outros amores como estes envelhecem.
Julio Cortazar foi casado durante cerca de 14 anos com Aurora Bernárdez. Eram ambos tradutores de Inglês-Espanhol e ele teve alguns relacionamento com outras mulheres depois de se separarem. Quando a sua última mulher faleceu, o meu querido argentino entrou numa depressão que pode ter conduzido à leucemia que se seguiu. Morreu dois anos depois da mulher, com a sua esposa da juventude, Aurora, a seu lado. A mesma Aurora que assistiu ao sepultar no seu corpo num repouso eterno ao lado da última mulher. A mãe tem dificuldade em ver grande beleza ou honra no gesto da Aurora. Não seria ela mais louca do que apaixonada? Desperdiçar assim uma vida por um homem que, ainda que lhe fosse amigo, se encantou sucessivamente por outras mulheres? O amor altruísta da Aurora é louvado pela sua essência ou desdenhado pelo seu factor “desperdício”?
Quando passo o olhar pelas fotografias de ambos, e o vejo tão jovem a seu lado, e depois tão velho e fragilizado, e lhe reconheço o mesmo olhar de menino curioso, meio desorientado... Sim, ela foi sua protectora. Quem sabe fosse um amor maior e apenas o quisesse ver feliz. Talvez lhe tenha perdoado tudo em nome de sabê-lo feliz, e ninguém pode ser feliz se contraria a própria natureza. Ele morreu e ela já viveu quase trinta anos depois da sua morte. Terão sido esses trinta anos um total eco dos tempos idos? Uma caixa de recordações a respeito de alguém que lhe foi tão querido e que se perdeu antes do previsto? É este o destino último das mulheres? Manterem-se, quais cães fiéis - as que o são -, ao lado do mesmo homem e serem-lhe mãe, amante, transportadoras da sua semente, porta de saída do seu fruto, da sua continuidade, para o mundo, e também amigas, confidentes, amas-secas? Perdoarem-lhes tudo e ainda lhes desejarem felicidade nas incursões extra-maritais? Ainda lhes prometer que, se nos rasgarem o peito, voltaremos a abraçá-los e a reconfortá-los quando estiverem em baixo? Agora dou-me conta do perfil que tive para Aurora Bernárdez.
A mãe está a aprender. A aprender a ficar longe, a respeitar, a confiar. Encaminha-se para um amor maior, está preparada para recuar ao primeiro sinal de fumo, nas não consegue evitar dar-se. A mãe tem agora algumas horas que viveu eleitas entre os momentos mais belos da sua vida. Momentos em que não havia espaço para tristeza alguma. Instantes em que tive um vislumbre do que é olhar-se juntos na mesma direcção. Cruzando os dedos, a mãe pede a Deus – sim, ao gestor do universo, ao Universo em si – que a ajude a abrir as portas que conduzem à felicidade. A mãe consegue vislumbrá-la com alguma nitidez. Está longe – como tudo o que é bom, impõe uma espera. Está duplamente longe – demasiados quilómetros interpostos entre a mãe e a porta final dessa felicidade.
A mãe aprende, dia a dia, a valorizar a cimentação de algo que demora a ser erigido. É um exercício de pôr os medos de lado, de enfrentar as circunstâncias, de acreditar. Sobretudo, é um exercício sobre dar espaço, esperar, gostar sem sufocar, nem perseguir, nem bajular, nem se perder no tempo e no espaço impostos.
A mãe quer ser uma Anäis Nin a contemplar o velho Henry Miller. Não somos tão famosos assim, mas temos uma história tão bonita…
Se é verdade que cada mulher vive a história de amor que quer, é esta que escolho para os meus trilhos.
Só não quero ser a Mariana Alcoforado, fechada num convento, visitada pelo amor, levada a amar e, depois, abandonada por esse amor para sempre. Tudo o que desse amor sobrou foram as Cartas de uma religiosa portuguesa e uma janela de onde, tão jovem, contemplou toda uma vida de ausências e vazio por viver.
A mãe quer é ser feliz.



domingo, 22 de dezembro de 2013

Carta aos meus filhos #22


A mãe mal se reconhece. Parece que a vida atingiu níveis de complexidade tão inalcançáveis que tudo o que me apetece é estar estendida na cama. Às vezes caem-me algumas lágrimas pelo lado do rosto que fica junto ao lençol. Em boa verdade, não sei se é da posição, das alergias ou dalguma tristeza inconfessada.
A mãe acredita nas coisas eternas e imutáveis, mas a mãe é um fogo mutável. Mudar faz parte de aprender, de crescer, de assimilarmos novas ideias e de analisamos a vida em perspectiva. Não podemos permanecer no mesmo estágio de desenvolvimento para sempre. Contudo, atingi um ponto em que mal me reconheço, como referi, no círculo onde me insiro. No cantinho do mundo onde me exercito e onde repouso, sinto-me pouco mais do que nada. E por muito que esteja satisfeita com aquilo que tenho conquistado, há sempre um vazio em falta. Uma espécie de bloqueio de horizontes que me impede de ver além do hoje. A mãe começa a cansar-se da incerteza que é o amanhã. Não se sente segura em momento algum e em parte alguma.
As pessoas que me rodeiam são tão ou mais complicadas que eu. Começamos a perder o rasto umas das outras. A mãe nem sabe o que quer. Nem sabe o que sente. Só sabe que lhe apetece permanecer numa imobilidade absoluta. Só sabe que o conforto vem dum achado inesperado que, além de me ilustrar mundos novos, me anima, me dá forças e me permite sonhar um bocadinho. Não demasiado alto, mas um planar seguro que não causa pernas partidas se desabar.
A mãe não lê um livro por inteiro desde 16 de Outubro. 16 de Outubro é o dia em que a mãe aterrou em Bari. Acabei de ler o livro no voo de chegada. Significa que, para quem sorvia pelo menos quatro a cinco livros por mês, tenho estado mais submergida na minha vida do que nas vidas de personagens. Não me tem interessado a vida de ninguém. Apenas a minha, e isto dura há uma longa reflexão.
A mãe sente-se só. É algo estranho, tendo em conta que solidão física não é sintoma. É mais uma espécie de um alheamento e incompreensão. Só com o tempo, e só eu mesma, conseguirei estabilizar esta dispersão.
2014 prometeu-me o Mundo. Um último olhar ao futuro anuncia uma reviravolta que pode significar uma Morte física ou uma mudança de 180º. Seja como for, a mãe continua com medo.
No fecho de 2013, posso dizer que foi o ano em que mais medo tive. Da repetição do passado, do impasse do presente e da falta de chão do futuro. Veremos o que construo nestes alicerces de areia.
A mãe sente-se exausta de procurar por coisas que, se calhar, nem existem.

Ó a fé, a fé é coisa de cegos. E por muito que a mãe se queira obrigar a abrir os olhos, continua com eles cerrados.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Carta aos meus filho #21

Meus queridos,



Hoje quero falar-vos de uma coisa importante.

Durante muito tempo – demasiado tempo -, julguei que, para fazer sentido, tinha de doer. Para provares a ti mesmo e a todos que amavas realmente, teria de doer até fazer ferida. Terias de ver essa ferida fechar e, adiante, permitir que reabrisse. Só aí, temperado com muitas lágrimas, muita espera, muito sofrimento, poderia um amor ser considerado grande e verdadeiro. 

Nos últimos tempos, a mãe descobriu algumas coisas curiosas a esse respeito. Primeiro, temos que considerar que somos mais do que um mero instrumento de afeição a outrem. O plano do mundo para vocês não foi, decerto, tornar-vos objectos de adoração, de louvor a uma imagem que não vos pode retribuir esse ardor. Neste ponto é importante que acreditem no vosso valor. É, sobretudo, essencial que tenham coragem de vos colocar as perguntas certas. Cá dentro, bem fundo em nós, temos à nossa disposição todas as respostas. Valerá a pena? Terá pernas com que andar? Que espero do término desta estrada?

A mãe foi teimosa durante muito tempo. Quis guardar nela um amor maior do que a vida, e guardou-o. E esse amor ia-me destruindo tantas vezes… E eu, incapaz de desaloja-lo de mim, porque achava que era a única coisa de minha, a única que me engrandecia e que um dia me poderia trazer felicidade, deixei-o ficar. Abraçava-o, adormecia-o com canções de embalar e depois, quando me sentia com forças ou quando me perdia noutro acesso de desespero, acordava-o aos solavancos e gritava-lhe. Exigia que me dissesse para onde íamos – eu e essa coisa solitária -, que seria de mim se não funcionasse? E tudo o que adivinhava no meu futuro era solidão e tristeza. 

A mãe vive de histórias, e essa história estava tão feia… A mãe mal se reconhecia nela. Mal se reconhecia na mulher que vagueava pelas ruas de lágrimas a pender no queixo, na mulher para a qual, durante longas fases, tudo parecia cinzas e negrume. A mãe mal se reconhecia, em certas alturas, na criatura que se ajoelhava para beijar o chão de igrejas, que atirava moedas em fontes, afagava patas de leões e pedia desejos às estrelas cadentes. Durante tantos anos, não quis mais nada. Depositei todo o meu futuro – toda a luz que pudesse lá haver – na aceitação de outra pessoa. No amor de outra pessoa. Se isso nunca viesse, a mãe teria aceitado, de bom grado, uma vida de insatisfação. Teria vivido abraçada à esperança e aos momentos bonitos e, quando chegasse àquela altura da vida em que as pessoas já não vivem de expectativas para o futuro, mas sim das lembranças do passado, provavelmente desistiria de andar para a frente.
A mãe quer dizer-vos que, se doer demasiado, se for difícil, se for evidente que não há nada para vocês no átrio da casa que é a outra pessoa, por favor retirem-se. Acreditem que é possível ser-se feliz doutro modo, sozinhos ou com outro alguém. Essa luz toda, essa felicidade suprema, seria perfeita mas não é o único caminho. E, vivendo a mãe de histórias, perguntem-se se essa versão carente de vós próprios, essa versão que escrevia cartas de amor para as quais nunca obteve respostas, é mesmo quem querem ser. Pensem nos maus momentos. Não na bela cegueira que vos tomou, não no vosso sonho bonito, mas naquilo que tem sido a vossa realidade. Perguntem-se se essa pessoa que vos torturou com a ausência imposta de quem ainda tem de viver, de alguém que tem de continuar e de quem o faz sem que o ar lhe falte ainda que longe de vós, é merecedora do melhor de vocês. Se somarem tudo, quanto deram de vós até ao momento em que viraram, por fim e em definitivo, as costas? Poderia o outro pagar-vos essa devoção em tempo de vida útil?
Se for difícil – um difícil crónico e sufocante que vos prende num ciclo vicioso -, por favor, dêem-se valor. Li há alguns minutos que a “alma gémea” é a pessoa mais importante da nossa vida. É um excerto de um livro ao qual não atribuo muita credibilidade, mas ao menos isso me parece ser agora verdade. A alma gémea é alguém que segura um espelho e o aponta a ti. Alguém que te obriga a veres quem és e a reflectir sobre quem queres ser. Alguém que te causa tamanha comoção, dor e desespero, que te vês obrigado a correr, a esconderes-te, a ganhar coragem e a regressar, a lutar, a melhorares, a elevares-te, a mudares a tua vida. Seria uma dor constante viver com esse espelho apontado a ti. Quando estarias satisfeito contigo mesmo? Quando estaria ele satisfeito contigo? Nunca poderias ser, sem que de ti exigissem mais. 
E, digo-o por experiência, às vezes estariam mesmo cansados, mesmo em baixo, mesmo a precisar de dez minutos de retiro do mundo e das armas, e esse espelho estaria apontado a vocês. E, por muito que a voz por detrás dele gritasse: põe-te de pé, tu consegues! Tudo o que contaria seria a imagem no espelho. Tu, estendido no chão, exausto de tantas batalhas e a precisar de te desligares. Tu, um mero corpo inerte, de rosto na laje do chão, de uma escada talvez, e sem forças para subir os últimos degraus.
A verdade é que a mãe se orgulha de saber que é capaz de amar assim. Mas orgulha-se ainda mais de se ter tornado objecto da afeição de alguém. E o que a faz realmente feliz é que tenha sido tudo tão instantâneo, tão fácil, tão simples. Como só as coisas certas são. 
Por isso, se algum dia virem a imagem errada de vocês no espelho, se algum dia acordarem e se derem conta de que desperdiçaram o vosso tempo e a vossa juventude por algo que nunca poderá compensar-vos, façam-se amar. Entendam o vosso corpo como um templo e o vosso espírito como o vosso factor único. Saiam, por cinco minutos, desse ciclo vicioso onde se deixaram aprisionar, respirem fundo, olhem ao redor e…
Tudo de bom pode acontecer.