quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Carta aos meus filhos #26


A mãe viveu hoje aquele que, decerto, estará entre os dias mais complexos da sua vida. Não bastando ter acordado às quatro da manhã para um voo às sete e vinte, apanhou o metro e depois o barco para Lisboa. O metro comeu-lhe um euro e não emitiu o bilhete. Nesse momento permiti-me sorrir, “quero lá saber”, pensei. Um euro na altura não era muito – era menos do que o bilhete do metro, era o equivalente a uma barrinha de chocolate individual. Mal sabia que era o primeiro duma série de azares.
Chegada a Cacilhas, observo a corrente do Tejo. Sim, tendo trabalhado onze meses em Lisboa e tirado uma Licenciatura de três anos no Estoril que implicou várias travessias de cacilheiro no rio, a mãe nunca tinha visto o rio com corrente. Não era uma breve agitação, era um apressar-se para a foz. O Tejo, o enorme Tejo a correr.
Levantei dinheiro suficiente no terminal para me safar, contidamente, nos dois dias que vou permanecer na capital da República da Irlanda, onde estive pela primeira vez em Setembro de 2012. Pedacinho de sorte número um – e crucial.
Em Lisboa apanhou um táxi no Cais até ao aeroporto, sempre preocupada com o horário do voo, isto porque às cinco da manhã estava a receber e-mails da Lufthansa a respeito de alterações no dito cujo. A mãe tinha vindo na noite anterior de Madrid (mas sobre isso falarei noutra altura, porque foi a antítese perfeita desta experiência inolvidável), por esse motivo não sabia que havia uma tempestade por estas bandas a fazer das suas. Ventos fortes, chuvadas e objectos a voar. Não chegou a ter tempo de ficar preocupada com o voo, mesmo porque sempre gozou de grande sorte, custava-lhe a crer que esta pudesse acabar assim de repente. E, olhando em retrospectiva para o decorrer deste doze do dois de dois mil e catorze, tive muita sorte em vários troços do percurso.
Com o voo atrasado trinta minutos, observo a chuva pela janela do avião e pergunto-me que mais me aguardaria nesta quarta-feira. Mal eu sabia.
A travessia até Frankfurt decorreu sem qualquer sobressalto, dormi o caminho todo e, tirando a omelete embebida em natas e óleo que me serviram, nada me embrulhou o estômago durante a viagem. À parte de uma criancinha que não chorava – uivava -, nada causou qualquer incómodo nas cerca de três horas que durou a viagem.
Quando Frankfurt surgiu sob as nuvens, revelou-se um centro industrial à beira de um pequeno rio e bastante próximo do aeroporto onde aterrámos. Havia algumas nuvens, mas estava sol. Pensei que, se a Alemanha estava abonada de tão bom tempo, então até Dublin haveria de correr tudo bem.
Aterrámos com uma hora de atraso e os passageiros que iam embarcar para Washington e Moscovo foram rapidamente escoltados aos seus voos. Eu tive de atravessar o aeroporto inteiro acompanhada de uma russa que só falava português e que era, nada mais nada menos, do que a mãe da criancinha que dera o espectáculo lírico durante o voo. Vi o aeroporto inteiro, das salsichas a fritar aos pretzels e à falta de wi-fi gratuito, e por uma vez decidi ligar os dados móveis fora de Portugal. Burrice número um. Tal apenas serviu para descobrir um saldo (negativamente) suspeito na minha conta, associado a umas certas transferências/levantamentos para um tal de Deutsche Bank. Estando eu na Deutschland, nem me ocorreu que ainda no dia anterior recorrera a essa caixa em Madrid. Alertei umas quantas pessoas (burrice número dois) e fiquei eu própria em pânico conforme julgava que me tinham clonado o cartão ou acedido à área de clientes online. Como é que me iria safar por dois dias em Dublin se cancelasse o cartão?! Num impulso algo tosco, apaguei a aplicação do banco do telemóvel. Burrice número três, embora inofensiva. Fiz contas mentais ao dinheiro que levantara e congratulei-me por assim haver feito. Eu nunca ando com grandes somas de dinheiro, mas nessa manhã deu-me para isso.
Após resolver o mistério (já sem dados móveis para poder acalmar as pessoas que havia preocupado – burrice número quatro foi ter deixado mil e uma páginas da internet ligadas sem precisão, o que esgotou o tráfego todo que tinha disponível), deixei-me absorver pela culpa. Sim, és tu que gastas o dinheiro mal gasto. E, posto isto, vêm-me todas as amarguras de que me queixo e, sentada por entre japoneses, irlandeses, ingleses e sul americanos de língua espanhola, ponho-me com pensamentos lúgubres e penso que fazia melhor em desaparecer (burrice número cinco). Mergulho nisso por um bocado, com o livro que andava a ler nas mãos. Dando-me conta de que tenho os olhos marejados, penso que posso incriminar o livro pela minha emotividade.
Quando finalmente chego ao meu portão de embarque para Dublin, sou obrigada a passar pelo controlo de passaportes. Viro-me para um gigante loiro e digo que não tenho passaporte, que já estive la Irlanda e que como cidadã europeia sei bem que não preciso de passaporte para lá entrar. Ele olha para mim do alto dos seus (pelo menos) dois metros e ri-se. Garante-me que é preciso passaporte. Garanto-lhe que não é. Garante-me que sim, porque a Irlanda não faz parte do espaço Schengen. Garanto-lhe que já lá estive e que não tinha passaporte. Garante-me que estou errada porque é irlandês, é de Dublin e vai lá cinco vezes por ano e sempre mostra a identificação. Quase me viro e levanto o cabelo “Veja, veja o trevo que tatuei no pescoço porque fui a Dublin mesmo sem passaporte!” Não tenho ao menos um cartão de identidade? Burrice número seis – envolver-me numa discussão perante todo o aeroporto com um irlandês que no final se põe a rir e me pergunta como cheguei ali sem cartão de identidade. E digo-lhe que lhe perguntei se tinha de mostrar o passaporte, e que era isso que estávamos a discutir. O bureau não diz ID control, diz Passport control, e era isso que falávamos. Ele volta a rir-se, bem disposto, porque se calhar não dormiu só quatro horas como eu, e diz-me que dê vinte euros ao controlador que ele deixa-me passar. Nesse momento percebo que estava a brincar, rio-me mas é tarde de mais. Já toda a gente tem os olhos postos em mim, e deixo-me corar perante todos. Já sou a cabra arrogante e irritadiça, e se os hindus, iranianos e japoneses perceberam do que falei, devem ter-me achado mais cabra irritadiça ainda. Eu tinha razão e ninguém sabia!
Na sala de espera começo a debitar no portátil pequenos textos sobre o que cada uma das pessoas que conheço pensaria se recebesse a notícia da minha morte. Faço-o intercalado com a leitura do tal livro que adiante voltarei a mencionar. Fecho o computador e embarco noutro avião da Lufthansa, rodeada de pessoas que apenas falam alemão e de um piloto que, finalmente, se faz entender quando passa informações em inglês.
Já estamos no ar, e eu cada vez mais entusiasmada com o livro, e eles a debitar as regras de segurança, e eu a querer saber se o Nick matou mesmo a Amy, se a Amy está mesmo a tramar o Nick, quando oiço dizer que o voo tem a duração de duas horas. Não sei porque tinha metido na cabeça que era só uma hora. Nunca mais chego ao destino (pensei, precedendo o pensamento com uma asneirola daquelas). Afinal o porco do Nick tem uma amante? E a Amy que era a esposa ideal! Então, já no ar, oiço o piloto dizer que o tempo está mau em Dublin e é provável que o voo seja “atribulado”.
Podia bem ter dito antes de embarcar.
O voo correu sem sobressaltos de maior, li mais cento e cinquenta páginas do livro. Passamos Amesterdão, diz o piloto, tudo OK. Passamos Inglaterra, informa o piloto, tudo OK. Estamos no mar da Irlanda, diz o piloto, e há sol, poucas nuvens e está tudo OK. Estamos a chegar à Irlanda, diz o piloto. E, de repente começa aparecer o mar lá em baixo, muuuuuuuito lá em baixo e muuuuuuito sarapintado de ondulação. O piloto anuncia que a aterragem (a ser bem sucedida) vai ser complicada. Preparem-se para a turbulência. OK, não me assusto com pouco e ainda há poucas horas, descolando de uma Frankfurt iluminada pelo sol, pensei que não tenho medo de alturas.
Volto a olhar o mar lá em baixo; muito escuro mesmo de dia, e de repente estou a absorver este trecho no livro que estou a ler:
“Podia acontecer – era possível, pouco provável, mas havia precedentes – o rio levar o meu corpo até ao oceano. Até senti pena de mim própria, ao imaginar o meu corpo elegante, nu e pálido, a flutuar por baixo da corrente, com uma colónia de caracóis agarrada a uma perna nua, as mechas de cabelo atrás de mim como algas, até ao fundo, a carne saturada de água a saltar em tiras macias, e eu a desaparecer na corrente como uma aguarela até só restarem os ossos”.
Erro número sete: não ter fechado o livro de imediato. Continuei a ler para me abstrair do vento que fustigava as asas do avião. Ao meu lado, um alemão entroncado também continuava a ler um jornal na sua língua, de cabeça enterrada nas letras porque as mesmas fugiam a cada sacudidela do avião, que parecia ser chicoteado aqui e ali por mãos invisíveis. Mas eu já tinha aterrado na Irlanda, sabia que a qualquer momento surgiria a costa. Se lá em cima o avião estava mais ou menos estável, que mal poderia advir do solo? E o piloto diz que há massas de vento a redemoinhar junto à terra, e eu penso "OK, animador". Então vejo terra, finalmente. Já há muito que passámos o mar revoltoso e nos embrenhamos num nevoeiro de nuvens cerradas. Os assobios do vento e das asas do aparelho a cortá-lo não é muito agradável, mas não é suficiente para causar pânico.
Mas então, ao ver como o avião é sacudido ao descer dessas nuvens, o piloto anuncia que vai tentar uma aterragem arriscada, porque tem receio da querosene que temos a bordo. Anuncia-o primeiro em alemão, e eu só lhe entendo a hesitação na voz. Depois di-lo em inglês, e ouvir “querosene” da boca de um piloto que detém a nossa vida nas mãos não é lá muito agradável. Diz que, se se vir impossibilitado, vamos dar uma volta. Vamos dar uma volta e logo vemos se as condições mudam, se o ângulo de aproximação à pista facilita a aterragem. Penso para mim “Cork, sigam para Cork. Querosene é combustível? Sei lá eu o que é combustível. Se temos muito combustível sigamos para Cork, que é no interior e que há-de estar calmo”. Mas querosene cheira-me a queimado e sou engolida por imagens de todos nós a arder. Penso nos meus pertences, e, de repente, penso no conteúdo dos meus pensamentos no computador. Como é que o meu avô reagiria à notícia da minha morte? E sinto que A chamei.
O piloto conduz-nos para a pista mas então, sem qualquer aviso, muda de ideias  e sobe a pique. Diz que não dá, que vamos ver. Enterra-nos de novo no nevoeiro espesso e esbranquiçado onde o aparelho não parece submetido a qualquer pressão. Devemos ter descrito uma curva, mas fê-lo durante tanto tempo, e de modo tão suave, que li mais umas dezenas de páginas, esquecida de que as minhas mãos suavam, as minhas axilas suavam, o meu lábio superior suava. E a chuva que humidificava as janelas, dado o calor da respiração colectivamente pesada no interior do avião, tinha o tom das tempestades tropicais. 
Estávamos todos encalorados, todos concentrados nos seus livros e nas suas revistas – e sei mesmo o conteúdo de todas as páginas que li, por entre reflexões acerca de morrer em paz. 
Não vai custar nada, pensei. Não pensaste nisso à tarde? Sim, ripostava a mim mesma, mas não é suposto levar ninguém comigo. Quanto mais um avião cheio de gente. Chamei-nos a Morte, pensei. E depois pensei que sou é insignificante perante a natureza. Eu e todos os outros humanos ali presentes. Somos todos impotentes. E de repente cheirou mal, como se alguém tivesse tanto medo que o tivesse despejado para as calças, e senti pena de nós. Mais por sermos só isto – frágeis, medrosos, mais animalescos que humanos perante uma ameaça – do que por podermos não chegar a terra com vida. Podíamos ter colapsado no mar (e penso que descrevemos um círculo sobre Dublin porque de repente lá estava ele, de novo a agitar-se sobre si próprio) ou podíamos ter chegado a terra aos solavancos e a querosene, que me cheira a inflamável, ter-nos carbonizado sob a chuva.
O piloto disse que ia tentar uma nova aterragem. Se não conseguisse fazê-lo com segurança, seguiríamos para Belfast. Pediu-nos perdão mas vários outros aviões já haviam sido desviados para Belfast. Belfast – a capital doutro estado. Então era grave. Então era melhor pensar na minha vida.
E da minha vida poucos flashes houveram, confesso. Há muitas pessoas que nem me afloraram à mente, e outras que lamentei não haver recordado do quanto as amo. Outras que amo e a quem nunca havia dito que amo. E as minhas irmãs, as minhas brilhantes irmãs. O buraco que eu poderia trazer para as suas vidas. 
E escrevi. E estudei. E fui, à minha maneira, feliz. Então pensei nele, e entendi que só havia uma coisa por fazer da qual me arrependia. Só uma coisa para a qual não havia despendido tempo. De resto, dos meus nervosismos e achaques, resultaram todos os tipos de declarações honestas – de amor ou inimizade, e descrevi-me bem enquanto vivi. Há muita gente que me conhece, que me entende. Pouco ficaria por dizer. Só isso me apertou o peito e me ardeu na garganta e prometi-me, solenemente, que o faria quando aterrasse. 
Iria morrer sem ter entendido o verdadeiro significado da minha vida? Perguntei-me que sentido teria (eu) feito assim, com um final em aberto, um dilema por resolver, nenhum futuro vislumbrado ainda. Terminar assim, porquê? Que enredo seria este que não entendi? Iria morrer enquanto lia um livro chamado Gone Girl? Iria morrer tendo mantido um blogue onde escrevia cartas a filhos que a tragédia me impediria de ter? No mesmo dia em que me vi tão sem esperança que concluí de facto que é pouco provável que a vida mos dê e que é mais improvável ainda que eu soubesse o que fazer com eles? Seria a ironia o género desta obra de ficção?
Conforme o avião enfrentava a pressão dos ventos e as asas pareciam papel ao seu sabor, pensei para mim que o melhor era irmos para Belfast. Vamos para Belfast, vamos para Belfast. E pensava também, uma vez mais, que não me assusto com pouco, mas que por fim o silêncio tomara o avião e todos tinham os seus países e os seus entes queridos em mente.
Aterrámos em Dublin, sim. Num aeroporto deserto tanto por fora quanto por dentro. Só quando o avião se imobilizou de todo é que o piloto, já depois de pedir perdão por termos aterrado com uma hora de atraso, admitiu em inglês que nunca se sentiu mais satisfeito com uma aterragem. Pedacinho de sorte número dois.
O meu lugar era a meio do avião, mas tive de encaixar a mala num compartimento lá atrás devido ao mesmo estar lotado, pelo que me pus de pé a fitar o fundo do corredor, e assisti a uma marcha de pessoas pálidas e em suspiros e de olhos inchados que quase partilharam um triste fado comigo. Sorrimos uns aos outros – sorri aos japoneses e eles sorriram-me, sorri aos irlandeses, ao indiano, aos alemães, à rapariga irlandesa de cabelo tingido de preto que me se oferecera para me ajudar a erguer a mala para o compartimento. Estava, também ela, apática. Juro que vi vermelhidões nos olhos de um homem asiático. Nos olhos de cada um uma história de sobrevivência, uma nova vida. Os dedos dedilhavam furiosamente no telemóvel, e se calhar perguntavam-se, tal como eu, se a torre de vigia do aeroporto consideraria que houvera de facto perigo de nos perdermos. Se sairíamos nas notícias, se o nosso piloto era um herói, se as nossas vidas haviam sido salvas.
E de repente estava enjoada e queria vomitar. As mãos tremiam e a força falhava-me.
Renasci.
Das nuvens, das cinzas… renasci.
E cumpri a minha promessa.
Seja o que o universo quiser quanto a isso.

Mas o dia ainda não acabara, e como tal, o autocarro para o centro que passa de quinze em quinze minutos acabara de passar. Azar número 1028. Então perguntei a um táxi quanto seria até ao centro, visto que tenho os trocos contados, e ele deu-me um valor bastante razoável. Choveu e esteve trânsito durante todo o caminho até ao hotel. O senhor deixou-me num cruzamento à chuva e ao vento e disse-me que fosse para a esquerda, a rua era de sentido único e ele não poderia aventurar-se nela. Assim fiz, com o rosto fustigado por um vento tão forte que as lágrimas me caiam pelos olhos sem que eu pudesse controlá-lo. Acontece que o hotel era na direcção oposta dessa rua. Azar número 1029.
Lá dei com a entrada, fiz check-in e recebi a password do wireless, que funciona mais ou menos. Para sentir que voltei à minha vida de pequenas sortes, o barman é português, a sopa é a melhor que já comi e congratulei-me com um cheesecake de Baileys. Num dia como hoje, que mais poderia voltar a fazer-me sentir inteira?
Ah... está um frio de rachar e o hotel não tem secador de cabelo.
Ah... mas tem uma chaleira e já tinha saudades de chá com leite.
Ah... parti uma unha, a que uso para coçar o nariz.
Ah... ouvi a voz dele.
Ah... esqueci-me de trazer cuecas.
Vou ter de lavar e secar as mesmas na tábua de engomar, good old irish way.