segunda-feira, 14 de abril de 2014

Carta aos meus filhos #28

Meus queridos,

A mãe passou por várias dificuldades e teve vergonha de muitas situações ao longo da sua juventude. Mas a coisa que a envergonhava mais era não ter possibilidade de viajar. Por isso, a cada vez que a mãe larga amarras e vai conhecer um novo cantinho do mundo (da Europa, para ser precisa), é como se me saísse a lotaria. Nunca voltei igual de uma viagem, nem das mais pequenas, nem das repetidas. Já vos disse que um dos momentos em que me senti mais capaz e mais orgulhosa de mim mesma foi quando me vi sozinha na Alemanha a apanhar um comboio de Hamburgo para Bremen, não já? E em Hamburgo conheci emigrantes sicilianos e ficámos amigos. E em Bremen ia sendo atropelada por um ciclista brasileiro e ficámos amigos. E ainda em Bremen comi uma berliner ao lado de um cidadão da Algéria que me explicou os princípios do seu islamismo de modo que compreendi o seu lado humano e admirei o seu profundo respeito à sua religião (ou, digamos, filosofia de vida). As pessoas encontram-se a si mesmas nessas viagens. As almas, ansiosas por se conectar, por partilhar, por se elevar, por aprender e ensinar, entrelaçam-se por momentos. Estudam-se mutuamente, e dão-se ligações preciosas quando saímos de casa. Ligações fortalecidas pelo desconforto de não se ir dormir a casa nessa noite. É uma escolha; confiar. E, quando se confia, coisas maravilhosas sucedem. (Mais tarde alguém vos dirá que desconfiem, mas o meu papel é o de vos dizer que, sendo espertos mas crentes, a vida tende a sorrir-nos).
A mãe regressou a Dublin, a Roma e agora prepara-se para regressar a Paris. Contudo, nunca poderá regressar à Tenência.
Faz este ano dez anos – uma década -, quem sabe se não hoje mesmo, a catorze de Abril, que me sentei sob a alfarrobeira junto à eira a ouvir o Feels Like Home da Norah Jones. O CD tinha acabado de sair e a mãe punha-o a girar no seu discman da Sony. Estava-se em Abril, eu tinha recebido um casaco de lã grossa azul no Natal e usava-o para todo o lado. Tinha uma máquina analógica e tirei-me fotos – já haviam selfies naquela altura, pois sim – com campos de papoilas ao fundo. Tinha catorze anos e começava a perguntar-me tanta coisa…
Vocês não saberão o que é estar-se cingido às doze músicas de um CD. Não saberão o que é ter de se conhecer todas as faixas e o ter-se orgulho de saber o número da faixa tal. Com o tempo, o “Thinking about you” é do Feels Like Home deixará de fazer sentido. Agora um artista lança uma música que fica no ouvido, conhecemos essa e nenhuma outra. Não importa a carreira nem o talento, porque tudo é efémero e se resume a um sopro momentâneo de sorte.
A mãe dedicou este CD ao morcego caído aos meus pés, às seis da manhã, à saca de amêndoas que a amiga da tia me deu à porta de casa, por entre lajes vermelhas, cortinas de retalhos e vasos de barro. A mãe dedicou este CD aos exércitos de formigas que me subiam pelas pernas, como se eu fosse parte do tronco da árvore que habitavam. Dediquei este CD ao meu amor inocente, nunca concretizado, que combinava tão bem com aquela paisagem. Nunca fui tão feliz como fui ali, com tão pouco.

Bastava-me o sol da manhã, seguido das infusões de vinagre que me esfregavam nas costas à tarde, porque os dias solarengos me punham mole e eu dormia de manhã à noite. Bastava-me apanhar amêndoas metidas em casulos de resina. Bastava-me sentar-me sob as figueiras, estender as mãos e comer os figos maduros, em Setembro, sabendo que odiava figos e que jamais comeria outros que não aqueles, enquanto estava ainda molhada da ribeira. Bastava-me despir-me de tudo – despir-me, sim – e nadar, só eu, humana, e só a ribeira, estendida sobre a nascente fria que os meus pés afloravam. Bastava-me esconder-me sempre que ouvia um carro a descer a colina, mergulhar mais a fundo. Bastava-me estar por ali, desafiar-me a chegar à embarcação, devolver a achegã pescada ao rio, polvilhar um tomate com sal e acompanhá-lo de chouriças em pão alentejano, como se manjar algum igualasse aqueles lanches fluviais. Bastava-me estender-me no chão, tantas vezes o fiz, sentir-me parte da folhagem ressequida do final do verão, e depois acordar a meio da noite com formigas a dançar-me junto ao tímpano. Ou acordar, mal o sol despertara, pegar num caderno velho e percorrer alguns metros por entre as casinhas caiadas da aldeia até ao pontão de onde observava o nada. Um muro de suaves colinas e céu azul, dourado e azul, pois, como se para lá desse quadro nada mais houvesse. Nem maldade, nem guerras, nem poluição, nem telejornais histéricos, nem política, nem a Lady Gaga, nem a Nicki Minaj, nem pessoas que encarceram as filhas e as tornam suas amantes, nem pais que atiram as filhas de seis anos pela janela, nem mulheres que retalham os maridos e se livram do corpo deles em três trolleys.

Soa-vos aborrecido, não é? Que fariam vocês numa aldeia sem internet, sem rede telefónica, sem um café que funcionasse em horários habituais, pelo menos? Se a mãe pudesse pedir um desejo para vocês… sabem o que seria? Para além de saúde, desejo-vos senso de pertença. Ó, por favor. Sintam que pertencem ao mundo, que são parte dele, que quando o vento vos fustiga o rosto vos magoa, e que quando vocês cortam uma árvore a terra sangra. Por favor, sintam que são feitos de pó e que um dia ajudarão a adubar um jardim. Não se achem acima de coisa alguma, porque isso só vos trata insatisfação a vida inteira.

A mãe gostaria tanto de voltar a esses tempos… mas tudo o que encontraria seriam casas fechadas, telhados desabados, as fachadas outrora primorosamente caiadas estarão pejadas de lascas e os idosos foram recambiados para lares ou já estão no chamado jardim das tabuletas. Em breve a Tenência será um cemitério. Parece algo tão pequeno, uma ruína, um castro, uma povoação romana, uma Chernobyl privada de animação, de vida, de juventude… Alguém algum dia sonhará que lhe dediquei o Feels like Home? Because it really felt like home.

terça-feira, 1 de abril de 2014

Carta aos meus filhos #27

A mãe mudou muito nos últimos dois meses.
Em primeiro lugar, tem uma gatinha nova. Chama-se Joséphine, faz hoje uma semana e um dia que está connosco e já começou a dar retorno. Trouxe felicidade, preocupação colectiva, risos, piadas, pescoços esticados para a ver, costas curvadas para que possamos espreitá-la por debaixo da mesa. Um gato traz sorte e é algo de místico. A vossa bisavó Norvinda pega nela ao colo, acaricia-a, dá-lhe biscoitos para gato e lamuria-se com um riso num canto dos lábios. Diz que até o gato tem dinheiro a guloseimas e ela não. Então, a mãe comprou-lhe um chocolate de leite da Nestlé; primeiro porque a placa da avó não lhe permite comer chocolates com frutos secos, segundo porque o bisavô Américo trabalhou na fábrica da Nestlé durante muitos anos e levou muitos destes para casa.
Tudo isto por causa da Joséphine. A mãe pensava que a sua relação com a bisavó estava desgastada, a verdade é que a bisavó me julgava de ferro e achou-me incapaz de vergar. Mas a mãe vergou de tal modo que chegou a valer-se dos cotovelos para manter a cara longe do chão. Assim sendo, a bisavó cuidou de mim, abraçou-me, protegeu-me, desejou-me o melhor. E é sincero, e por isso aceitou a Joséphine e deixa-a dormir-lhe no colo enquanto assiste televisão na cama. Por isso, desta vez, não houve discussões e o dia 24 de Março, quando a Josie chegou, foi um dia feliz. Se temos medo de amar? Oh, temos todos, sim. Estamos todos feridos pelo desaparecimento do Napoleão. Mas, enquanto nos prostássemos a um canto, uma belezinha como a Jo ficaria sem família, sem tecto numa noite de temporal como ontem. E assim descança as orelhinhas numa almofada de veludo e dorme numa mantinha de bebé dentro da alcofa que lhe comprei. Praticar um luto eterno para quê? A mãe tem mais medo de amar do que de ser odiada. Dói tanto ver-se o objecto do nosso amor estilhaçado pelas circunstâncias...
O avô Jorge, de quem a mãe tem tão poucas boas coisas a dizer, merece aqui uma menção pela positiva. Fez uma caminha para a Joséphine, recortando-lhe um rectângulo num cesto muito antigo que a mãe trouxe da Tenência. Filhos, em 2002 a mãe sentou-se nas ruas de uma pequena aldeia algarvia, rodeada de senhores que não sabiam ler e que teciam poemas de memória, e admirou a agilidade das suas mãos que entrelaçavam cestos. Esse cesto foi agora tornado num pequeno palácio para a minha princesa. Chama-lhe "porta-chaves", o que é a coisa mais carinhosa que o ouvi chamar a um animal. Às vezes finge que tem alguma coisa para fazer no meu quarto só para vir vê-la, incapaz de resistir ao impulso de estender a mão e acariciá-la.
A mãe passou por uma fase muito má e viu com quem pode contar. De repente, nem tudo era negro. Há muita gente que se preocupa comigo e devo retribuí-lo sendo o mais feliz possível.
A mãe voltou a acreditar que vocês venham um dia cair nos meus braços, e … surpreendam-se! A mãe sempre se achou uma durona, mas perante os olhos dilatados do Napoleão e a barriguinha em alvoroço da Josie, a mamã mal consegue dormir de preocupação. Pega neles e telefona para os veterinários de Almada, corre para lá. Torna-se a crazy cat lady que, no fundo, é só uma mulher protectora a lutar pelo bem-estar dos seus protegidos. Mal consigo ignorar-lhes os gemidos por atenção, por colo, por carinho. E se a mãe se tiver tornado assim com vocês também? Se for a galinha superprotectora que sempre esperei não ser?
A Joséphine escala para o meu colo e estende-se de costas sobre o meu braço enquanto almoço, expondo a barriguinha colorida. Tem-na gordinha e saudável e a mãe sente-se satisfeita por saber que lhe comprou a comida e os biscoitos que a fazem tão roliça e feliz. A mãe está tranquila por saber que ao primeiro sinal de alarme tem meios de a proteger de tanta coisa… Embora nunca de tudo. Ao vê-la estendida, exposta às minhas mãos, sendo que apenas uma, se mal intencionada, poderia causar-lhe tanto mal... significa o mundo para mim (it means the world to me faz mais sentido). A mãe quer animar outras existências, saber-se capaz de salvar alguém.
Sinto que posso, finalmente, voltar a escrever. Voltar a concentrar-me no meu trabalho, nos meus amigos e naquilo que me dá prazer. 
A chuva já não me traz melancolias, empurra-me adiante. A mãe, por fim, está em paz e aprendeu a esperar.
A mãe tem um lindo plano de futuro e até já comprou uma varinha mágica.