terça-feira, 20 de maio de 2014

Carta aos meus filhos #36


Em 2006 a mãe tinha dezasseis anos. Estendia roupa ao ar livre na Tenência, lençóis, vestidos leves de verão. Ia descalça, pela hora de menos calor, expôr os trapos recém-lavados àquele sol implacável. Estava tanto calor que me deixava envolver pela humidade dos tecidos, pelo seu aroma a detergente, a limpo. Lavava os cabelos na fonte, deixava-os secar nas costas. Nessa altura usava-os compridos, avermelhados, encaracolados. Estendia a roupa de vestido branco, era-lhe muito apegada nessa época. Na época em que era romântica. Ouvia a No Me Platiqués Más vezes sem conta e imaginava um amor perfeito.
 Desabafo.Não há coisas perfeitas.

segunda-feira, 19 de maio de 2014

Carta aos meus filhos #35

«Will you stay with me, will you be my love?»

Sabem em que instante a mãe entendeu que o italiano não poderia ser o vosso pai? Porque a imagem deste homem terno e elegante, que fala tão bem a sua língua materna quanto inglês, a brincar convosco… é tão enternecedora quanto ilusória. A mãe não chegou a perder muito tempo a imaginá-lo de mangas de camisa dobradas até aos cotovelos para vos erguer acima da cabeça, porque algo me dizia que ele estaria ausente. Ele diz que os pais foram ausentes, cresceu com a avó. A mãe dedicou-se à excelência de um piano que ainda hoje a arrasta em diversos eventos culturais e o pai… já não me recordo o que fazia o pai. Sei apenas que não estavam por lá quando ele precisava deles.
Ser a miúda de um workaholic… Experienciei-o algumas vezes. A pergunta existencial é se há wi-fi no hotel. Se há rede na serra. Depois sucedem-se as visitas fortuitas à caixa de e-mail, não vá o mundo estar a acabar por falta de uma palavra dele. Depois os telefonemas; os que faz, porque são urgentes, e os que são urgentes e que não pode ignorar. A mãe olhava pela janela enquanto chovia na Avenida da Liberdade. Quando o olhava, enrolado numa toalha, ou com uma meia por calçar, ou a brincar com a chave do quarto na mão a um passo da saída quando estávamos todos aprumados, ele piscava-me o olho. Erguia o indicador; só mais um minuto.
Pede-me perdão. Enquanto esperamos pelo almoço, pede-me perdão. Diz que tem mesmo de ser. Que em breve é todo meu, para falarmos do que eu quiser. Dos gatos, da casa, dos nossos países, do espanhol que ele tem enferrujado e que eu me recuso a articular. Enquanto o táxi nos leva ao Cabo da Roca, vai a trocar mensagens com um indiano. Mais trabalho. A paisagem passa-lhe ao lado. Não consigo evitar fechar o rosto, lamentar a certeza de que tanta coisa lhe passa ao lado enquanto dedilha o ecrã do iPhone com os dedos bem cuidados, de unhas rentes, de pele macia que, quando já não é hora de ninguém ligar, me acariciam o cabelo até eu adormecer. E, quando finalmente vê o oceano, esta criatura estranha do Adriático, tão fascinante quanto letal, sorri como uma criança. E eu deixo-me fascinar por ver-lhe os olhos a cintilar. Damos as mãos, tiramos fotos, aproveitamos a meia hora em que o taxista espera por nós. E entretanto é hora de partir, de voltar ao táxi. Falo com o taxista sobre os vinhos de Colares enquanto ele volta aos e-mails urgentes do emprego. Aperta-me a mão direita com a esquerda e responde a tudo com a outra. Mas não está lá, está no escritório a tratar de ser o melhor, de ganhar mais, de fazer tudo bem feito.
Na Catedral de Toledo, a mãe deu voltas no deambulatório, pendurou-se nas grades do cadeiral, desistiu de usar os audio-guias, bufou. Durante todo esse tempo ele falava ao telefone com a chefe.  Sentado num dos bancos da igreja, sorridente, parecia que estava na própria sala, e não numa catedral por visitar e com um comboio para apanhar daí a quarenta minutos. Falava de vinhos, fazia piadas. Eles são sedutores, sabem? Os italianos são sedutores como tudo. Mesmo a falar com a própria avó conseguem ser sedutores. Então, depois de meia hora a circular sozinha, o meu ar de frete não o convenceu a desligar o telefone. Fui sentar-me atrás dele. Fiz beicinho. Lá está o sorriso, o piscar do olho, o indicador erguido; só um minuto. Inclinou-se para mim, beijou-me por entre “ahams” para a patroa. E eu pensei que tinha reparado em mim, que ia despachá-la, dizer, quem sabe, que lhe dedica trezentos e sessenta dias e que cinco são dele para os passar com quem quiser. Mas ele desmanchou-se numa gargalhada para a chefe e de repente estavam a falar da tradição das bruxas na terra dela. Quando desligou a chamada era hora de irmos. Pouco ou nada vimos.
Em Paris temos uma hora. Metade desse tempo é passado a ligar para todo o lado. A mãe, registando o forno a lenha do restaurante, observando os campanários da Notre Dame através da janela, lamentando-se em silêncio ao Sena, dá-se conta de que já o sabia. Não pode chorar por um amor fadado a fracassar. Resignada, sorri-lhe com tristeza. Ele fala ao telefone, sério, ergue as sobrancelhas, sorri. Enquanto o telefone está em espera, surrura “You look gorgeous”. Digo-lhe que o nariz está ressequido de tantas fungadelas primaveris. Diz-me que o meu pequeno nariz está perfeito como sempre. Sabe bem ouvir, derreto-me um bocadinho ao ver-lhe a doçura morna dos olhos castanhos a sorrirem-me com tanta meiguice. Mas no instante a seguir esses mesmos rios estão longe, são frios. Alguém atendeu do outro lado. Ali trata-se a sagrada matéria laboral. Eu sou infantil. Sou carente. Sou incompreensiva. Mas não estou iludida. Não penso que um homem assim mude depois do casamento. Não penso que um homem que só tira plena satisfação do trabalho venha a correr para casa para fazer amor com a sua mulher. Não penso que um homem assim passe mais tempo em família por ter um, dois, três filhos. Ele evocaria a santíssima trindade do amar é sustentar e educar. Amor traduzido em tempo, tempo convertido em dinheiro. Para fraldas, para ténis, para amas, para escolas particulares, para actividades extra curriculares, para jantares fancy, para relógios de marca e fatos italianos, para o telemóvel da última geração, para uma universidade no estrangeiro, particular. É assim que este homem pensa. “Quero dar ao meu filho as oportunidades que puder, para que ele tenha o mundo à sua disposição se o quiser agarrar”.
Eu não quero arcas frigoríficas de peixe congelado para os meus filhos. Quero um pai que se sente com eles à beira rio e os ensine a pescar. Um pai que saboreie com eles, à mesa do jantar, a frescura de um peixe suado por eles (quase decerto estragado pelas minhas fraquíssimas capacidades culinárias). Quero um homem que fique comigo cinco minutos a mais na cama, de manhã. Um homem que me atrase. Que me despenteie. Que suje o punho no café e ainda assim não troque de camisa.
Se calhar nunca seríamos ricos, mas seriamos tão felizes!
E foi ali que tudo acabou. Olhando nos olhos dele, vendo as potencialidades do nosso futuro à minha frente... Sorrindo perante a solenidade do seu profissionalismo, desejei-lhe sorte e alegrias. Vi o que seria feito de mim se insistisse em nós.
- O telefone dele a assombrar-me de novo a meio da noite;
- A chefe dele a dizer para ele não me deixar "consumi-lo" demasiado;
- Ele a dizer que lhe faltam dez anos até ser pai, para depois continuar a adiar;
- Eu a precisar dele e ele a precisar de trabalhar;
- A tragédia de me ver em segundo lugar na vida da única pessoa para quem a minha felicidade deveria vir em primeiro;
- Eu a desconfiar que ele me trai;
- Eu a chorar no chuveiro (já aconteceu);
- Eu a ponderar traí-lo;
- Eu a chorar no meu canto da cama (já aconteceu);
- Eu a chorar, ele a dizer que não entendo o quão importante é o trabalho dele para nós;
- Eu a sair.
Assim vislumbrei apenas aquele que será somente o futuro dele …  Que elegante que será, quando for a um jantar de amigos com a mulher pela cintura. Ela será bonita, de seios pequenos, gosta de vermelho e arranja as sobrancelhas. Faz dieta. Fazem amor duas vezes por semana e são ambos felizes assim. Ela entende o que é pôr a carreira em primeiro lugar. Filhos? Só depois dos trinta e cinco, e dois, porque número ímpar é caótico. Cão? Nem pensar, demasiado fora de controle. Gato? Enche-lhe os Armani de pêlos. Máquina de café? Só Nespresso. E ele será sempre um homem charmoso. E eu nunca deixarei de me sentir um bocadinho movida por esse seu charme inato. 
Mas o meu papel seria sempre esse, de mulher que se arranjou, que fez as sobrancelhas, que se pintou, que deu um jeito ao cabelo indomável, apenas para descobrir que lhe é invisível. Que o olhar dele foge com discrição para o relógio a cada vez que me passa a palavra. Que, para ele, eu estaria bonita de qualquer maneira, porque ele viu-me uma vez, guardou essa imagem e vive disso. De me ver bem mesmo quando não estou. De ignorar as sombras por detrás dos meus sorrisos. De me pedir perdão, mas tem de atender este telefonema, é mesmo importante.
O que importa na soma dos dias são as horas bem aproveitadas. Não quero viver de ausências impostas. Estou farta de analisar quadros na parede de restaurantes e padrões de toalhas de mesa.
 Tudo isto apenas para a mãe vos dizer que não quer ser a miúda de um workaholic, por muito adorável que ele seja, por muito puro que seja o coração que lhe bate no peito. Se o vosso pai for um workaholic que nunca vos ensinou a andar de bicicleta, por favor atirem-me isso à cara sem escrúpulos. Vá lá, permito-vos isso. Só desta vez.

Quando encontrar o vosso pai vou-lhe perguntar:


 Will you stay with me? Will you be my love?

domingo, 18 de maio de 2014

Carta aos meus filhos #34

Mes amours,

Hoje falo-vos dos desencontros da vida. A mãe já se tinha apercebido disso, mas de repente sente-se capaz de verbaliza-los. Talvez haja mais pessoas que tenham experienciado isto, ou talvez seja toda a minha vida desencontrada a estender-se perante os meus olhos.
Sintomas de uma vida desencontrada:

- a tua casa de sonho está numa pequena aldeia da Beira Interior, mas tu tens de investir (muito mais) numa que se encaixe melhor no teu quotidiano. A tua família está aqui, o teu emprego está aqui;
- o homem que te quer bem, que te beija os dedos quando róis as peles em redor da unha, que te humedece os lábios com a própria língua quando dizes que os tens secos, que te ajeita as sobrancelhas numa paragem de autocarro, vive a três mil quilómetros de distância e não podes viver de ser acarinhado;
- gostas do teu emprego, o que o transforma numa âncora. Adoras os teus amigos; outra âncora. És incapaz de te separar dos teus avós e dos teus irmãos;
- o lá e o cá não podem ser conjugados, queres demasiadas coisas dispersas, mas quere-las com a determinação de quem sabe quem é. Contudo, por comodidade, sabes que ficarás a vida inteira onde estás e que nunca terás um quintal com flores para plantar, limoeiros e morangueiros.
E é isto uma vida desencontrada. Quando o emprego, a família, a casa de sonho, a pessoa que poderia animar-nos a existência, se encontram em diferentes latitudes. Significa viver de abstinências quanto àquilo que mais se quer, e ainda ter de se ser grato àquilo que se tem.
Pena que só tenhamos uma vida, ou eu seria tanta coisa…! Iria a tantos lados…!

Escolham bem, queridos. Porque muitas das decisões que tomamos significam caminhos sem retorno.

PS - Durante muitos anos (uma percentagem significativa da idade que tenho) a mãe achava que amar significava fazer bem a outrem. Queria fazer o objecto do seu amor feliz. Amortecer-lhe as quedas, escudar-lhe as dores. A mãe achava-se disposta a fazer qualquer sacrifício para o ver bem, e, estivéssemos alguma vez estado juntos, ter-lhe-ia aceite todas as decisões, ainda que isso me levasse para longe do caminho que queria abraçar na minha vida. (Em parte partilhávamos certos ideais; um certo amor ao interior e à terra, um certo desprezo pelo supérfluo e o dispensável). Agora a mãe só consegue encantar-se por quem lhe faz bem. Por quem quer vê-la feliz. Por quem se desviaria do seu caminho para ingressar no meu e ver-me realizada. É um amor mais egoísta, pois é. Mas é o único modo de ser-se feliz em plenitude. Também isto julgo que já vos havia dito: escolham quem vos quer bem em vez de se retorcerem por alguém que vos considera um acidente de percurso enquanto não aparece alguém melhor.

segunda-feira, 12 de maio de 2014

Carta aos meus filhos #33

Filhos,

Criar-vos é bem mais difícil do que parece. Bem dizem que só quem os tem dá valor ao difícil que é. A mãe ainda não tem filhos, mas criar as irmãs tem sido bem mais amargo do que recompensador. Apesar dos inúmeros momentos bonitos, e daquilo que a mãe vai fazendo com q.b. de sacrifício e q.b. de gosto, há sempre algo que falha. Um quê de ingratidão vs será que fiz mesmo as coisas mal feitas?
Hoje a tia Cláudia disse, no calor do momento, uma coisa muito, muuuuito feia à bisavó. Como tanto eu como a bisavó estávamos a discutir com ela, fiquei com a impressão de que o dissera para mim. Voltei para trás e perguntei-lhe, com a voz fria de incredibilidade, se era para mim a sugestão. Ela disse que não, que era para a avó, o que de repente tornou tudo pior aos meus olhos, mas melhor para a Cláudia. Porque se fosse para mim, eu teria de me defender e ela não ia gostar. Sendo para a avó, fiquei furiosa mas deixei que a avó exigisse respeito por si. Em simultâneo, ela entendeu logo que dissera algo muito grave e recuou, pediu desculpas à avó sem que ninguém lho pedisse. Contudo, cinco minutos depois estavam as duas contra mim. A tia Cláudia e a tia Ana, esclareço.
A Cláudia lembrou-se de dizer que eu lhe batia quando ela era pequena, diz que lhe dava bofetadas. Só me recordo de uma bofetada, mas recordo-me que ela a mereceu. Disse à Cláudia que quando ela nasceu eu era pequena e ainda assim assumi muitas vezes o papel de sua educadora, por demissão voluntária dos pais nesse cargo. Mas ela diz que eu teria catorze ou quinze anos, idade que de facto teria, e lhe batia.
A Ana achou que era boa hora para dizer que também se lembra de eu lhe bater. Lembro-me bem de todas as vezes que dei palmadas nas palmas da mão da tia Ana e das vezes que lhe pedi que se virasse para lhe aplicar a colher de pau nas nádegas. Nunca fui bruta, nunca tive o objectivo de a magoar. Talvez quisesse vexá-la um bocadinho, para que o espírito se lhe vergasse e fugisse do que estava errado. Uma vez não queria comer. Outra vez bateu na avó com a colher de pau. Outra vez atirou comida ao chão. Outra vez fechou os punhos e bateu-me nos joelhos, julgando tratar-se da Cláudia. Mas era eu, e não poderia deixar passar em branco.
Nunca tirei qualquer prazer desses episódios educativos, nunca as vi magoadas por causa de mim. Vi-as sim a comer o peixe até ao fim e a ter respeito (ou medo, como queiram) a alguém que só tinha de abrir-lhes os olhos.

Quando a tia Ana nasceu, eu fui a primeira pessoa que lhe deu biberão. Discuti com a enfermeira para que lhe trouxesse mais um quando ela sorveu o primeiro com sofreguidão. Mudei-lhe fraldas. Noite dentro, quando ela chorava e a mãe não ouvia, era eu que ia ajeitá-la no berço, repor-lhe a chucha. Sujámo-nos as duas quando lhe dei a primeira papa. Na fotografia que partilhei delas ontem, reconheço que a roupa que trazem vestida foi por mim escolhida e paga. 
E de repente estão as duas de lágrimas nos olhos e voz quebrada a acusar-me de as espancar.
Eu bem dizia que era a única pessoa que se interpunha entre elas, que se julgavam princesas, que eram tratadas como princesas, e o grande mundo que espera por abocanhá-las. Quis que soubessem que há limites, que há barreiras, que nem todas as portas estarão abertas, que nem tudo é aceitável. Mas tenho feito tanto pelas tias, e temos tido momentos tão bonitos… e faço-lhes a vida tão mais fácil do que a que eu própria tive, também com sovas mas indiscriminadas e que me souberam a injustas, que não entendo.
Não entendo nem sei lidar com ingratidão. A mãe pode perdoar muita coisa, mas custa-lhe a engolir que não se reconheça quem nos faz bem.
As duas deram-me as costas e foram-se embora. A mãe ficou aqui sozinha a perguntar-se se realmente foi má, se de facto foi cruel. Mas para isso teria de ter tirado algum prazer perverso das lágrimas delas, e nunca tirei, pois não?
Ainda assim, a tia Cláudia disse uma coisa feia hoje. E a mãe pensa que, se não fossem metade das “crueldades” a que a submeti, ela nunca teria voltado atrás de livre vontade para pedir perdão à avó. Por isso… Ainda que me custe ter sido sempre a má da fita, alguma coisa certa devo ter feito.

E terei de viver apenas disso, até que talvez um dia elas entendam.

domingo, 11 de maio de 2014

Carta aos meus filhos #32

Meus príncipes,

A mãe não anda muito bem ultimamente. Já está a fazer os possíveis para ficar bem, mas há sinais de que melhora com lentidão.
Ando meio fragilizada a nível físico, não há doença – daquelas que moem mas não matam – que não me encontre. Hoje estou com dores de garganta, ouvidos, espirros, tosse, expectoração, moleza. Mas daí que estou mole todos os fins-de-semana. Chego a perder a noção do tempo por passá-lo a dormir. Penso em ler, mas ao final da terceira página já estou desinteressada e sonolenta. Depois tento jogar o meu jogo habitual – não me apetece. Tento escrever – não consigo. Tento reescrever, coisa que não me exige muito da cabeça, mas também para isso falta motivação. A televisão nem tento ligar.
Que faço então? Deixo-me ficar estendida, de pijama, janela aberta até refrescar, depois fechada até aquecer, depois de novo aberta. Que faço, pois? Observo as cortinas a ondular ao vento. Espreito a tonalidade do dia, os azuis, os liláses e os alaranjados do final de tarde. Oiço música. Como, quando não como penso em comer. De vez em quando tapo-me com uma manta e permito-me voltar a adormecer. Mas só porque sim, porque cansada não estou e ter sono é impossível.
Hoje pareceu-me, enquanto fitava o nada, que estou à espera. A mãe não lhe sente uma grande falta, mas também não tem outra fonte de alegrias a não ser as tias Ana e Cláudia e a gata. A mãe deixa-se ficar, sempre à espera
Quando é que o vosso pai vai chegar e salvar-me? Quando é que ele virá resgatar-me de mim mesma? Animar-me os domingos? Levar-me a sair? Beijar-me na praça central de uma qualquer capital europeia? Criticar os meus cozinhados? Insistir em sintonizar o rádio para as músicas dele? Queixar-se dos lenços que deixo por toda a parte? Quando é que vou ouvir-lhe as gargalhadas a ecoar na casa? Quando é que ele virá para julgar que manda, só para eu ir por trás fazer tudo à minha maneira?
Por uma vez, a mãe sente que precisa de ser devolvida à alegria de viver. Ele que chegue depressa, por favor. A mãe nunca precisou tanto dele como agora.

terça-feira, 6 de maio de 2014

Carta aos meus filhos #31

 Meus queridos,

Hoje a mãe foi confrontada com não uma, não duas, mas três histórias de amor. Chamá-lo-emos assim, para todas as faixas etárias e graus de profundidade de afectos envolvido. A mãe não é sequer testemunha (se não auditiva) de todos estes romances e, em cada um deles, é apenas conselheira de um dos lados. Desconhece o outro lado da moeda.
Digamos que apurou o mesmo problema em todas as vozes femininas envolvidas, de vinte e quatro anos a setenta. Algumas destas quatro mulheres têm/tiveram vidas afectivas activas, pontuadas de vários companheiros e algumas separações. Algumas têm pouca experiência com o bicho-Homem, outras estão traumatizadas com histórias passadas. É importante referir que a de setenta anos proclama uma vida sexual satisfatória com o seu improvável par, vinte anos mais jovem. Eu oiço e pergunto-me como acabo por ser a confidente de todas estar mulheres e como, a dado momento das suas vidas, acabam sempre por me procurar para ouvir o meu conselho. Que sei eu de homens? Da vida? De sexo? De confiar?
Todas estas mulheres têm um problema em confiar. Todas recearam/receiam, desde o primeiro momento, pelas suas jovens relações, todas elas que brotaram de circunstâncias diferentes, com obstáculos diferentes. Mais ou menos condenadas pela idade, a distância, o meio fechado, as línguas alheias. E todas elas tentaram, arriscaram, puseram-se a caminho, voltaram atrás, regressaram ao caminho. Pelo menos uma delas tem a certeza de não ter qualquer tipo de interesse emocional no homem com quem está envolvida – de que natureza for, e mesmo a intimidade é insípida -, mas também não quer largar, deixar ir.
Do que precisam as mulheres? Todas concordam; que as façam sentir como princesas. Alguns homens não têm esse talento. Alguns usam e abusam desse talento. Alguns são peritos em fingir esse estado de meiguice. Mas a mulher cai, porque nem a mulher mais rígida, nem a mais vivida, resiste a um “bom dia, princesa”. E porque será tão importante para a mulher sentir-se uma princesa?
Falando por mim, não no “bom dia, princesa”, mas no mais belo ainda “boa noite, princesa”, significa que esse homem é capaz de ver ainda algum valor em mim. Para lá de tudo o que as mulheres sofrem pela condição da natureza, para além das moças que as circunstâncias imprimem em nós – o stress, o trabalho, o envelhecimento, as quebras emocionais, o cabelo espigado, as unhas lascadas, as pernas mal depiladas, as mechas cinzentas, as nódoas negras nas canelas, a palidez de uma pele que não vê sol,  os lábios a precisarem de ser hidratados, o nariz a escamar de uma crise severa de alergia, a voz irritante e as cobranças sem nexo – há um homem que nos compara à ideia de uma princesa. Alguém que, basicamente, se dispõe a ignorar os defeitos e a abraçar apenas aquilo que em nós em bom. Alguém que diz “não te preocupes que os defeitos são discretos”, mesmo que sejam gritantes.
O medo. Estas mulheres embarcaram nas suas histórias já com medo. Este maldito jogo da tecnologia de hoje em dia – é difícil roubar-se beijos pelo telemóvel ou discernir brilhos de divertimento nos olhos de alguém através dos pixéis de uma má ligação de skype. É difícil dançar com alguém que “partilha” uma música connosco à distância de um computador. Mas é fácil saber que a pessoa leu a nossa mensagem e não respondeu. Que está a jogar Candy crush mas não nos disse boa noite. Que pôs “gosto” na fotografia do cãozinho da vizinha mas não no nosso artigo sobre energia nuclear. Então aprofundam-se as dúvidas. “Mas o que é que ele quer de mim, afinal?”, “Mas porque é que me trata como uma princesa se depois me ignora dois dias seguidos?”, “Mas porque é que me perseguiu durante uma vida inteira para depois me deixar quando finalmente cedo ao final de duas semanas?” “Nada fazia prever que…”
A vida não é bem o que imaginamos, e o amor muito menos. É preciso saber lidar com a incompreensão, os invejosos e os ressabiados, os ex., os que nutrem paixões secretas pelo objecto do nosso amor, os pais que desaprovam, a distância que se interpõe, a idade que os divide em diferentes gerações, as maratonas semanais sem qualquer sms, qualquer telefonema (para o aparelho de casa, móvel, de trabalho, skype), qualquer e-mail (para o Gmail, o Hotmail, o maria@departamentoderecursoshumanos..., qualquer mensagem de whatsapp, skype, qualquer tweet, qualquer comentário ou gosto no facebook, qualquer palavrinha no mypace, no voicemail, qualquer chamadinha de voz ou vídeo no Facetime. Como diz a Drew Barrymore no “He is Just not That into you”, hoje em dia é exaustivo sermos rejeitadas em mil e uma plataformas diferentes. E quando um homem nos diz que teve tempo para x, x, x e x, mas que não viu a nossa sms a entupir-lhe a caixa de correio a tarde inteira, a mulher desconfia. Pode até ser verdade, mas a mulher desconfia. E cedo ou tarde vêm as amigas dizer que ele não parece muito interessado (se tivesse faria y), e a mulher, se está interessada, pergunta-se “Realmente, que quereria ele com alguém como eu?”. Passa a ver-se como objecto defeituoso, a indagar se terá feito algo errado. Terá sido demasiado tímida? Demasiado ousada? Julgá-la-á frígida? Promíscua? E vai na volta está a fingir orgasmos para tentar mantê-lo feliz, preso a algo que não tem pernas para andar.
Ou ele profere, como aconteceu num destes casos, a mítica frase “sim, estive contigo e com a outra. Que tem? F*** as duas”, e assim arruma a grande mulher no saco da ordinária que toma banho uma vez por semana.
Ou ele pede-lhe que confie, como acontece noutro dos casos, e procura estar com ela o máximo de tempo possível, e ela acha-o tão bom que duvida que exista, e parece mais credível pensar que é um aldrabão com alguma fisgada.
Ou ele abre a sua caixinha de recordações e partilha tudo com ela, diz que gosta de conversa de almofada, e sofre de uma impotência que já levou ao naufrágio doutras tantas relações. Deixa de lhe falar por dois segundos e ela não sabe se ele é homem, se está farto, se a quer para curar a sua disfunção, se gosta de facto dela, se quer que fique, se quer que vá, se está cansado, se ela o pressiona, se o deixa demasiado solto e parece desinteressada.
A mãe, como vos tem tido, está sozinha. Está feliz. Mas vê, ouve, aprende. E a mãe acha que milagres acontecem, e que a pessoa certa para ti verá além de todo o resto, como se fosses detentor de um brilho especial que só reage ao seu olhar. E assim, mesmo que todo o mundo te diga que és baço, deves confiar. Deves confiar na luz que o outro diz ver em ti, apenas se vires luz nele também.
O que é certo será, e o que não é…

Nunca foi para ser. 

segunda-feira, 5 de maio de 2014

Carta aos meus filhos #30

A mãe está feliz. A mãe gosta de ter um plano, de ir a lojas de ferragens, a lojas de alguidares, a lojas de tinta. A mãe gosta de trazer catálogos de cores para casa e de percorrer lojas de tecidos e de sentir a textura de cada um deles nas pontas dos dedos. Amanhã a mãe vai comprar um bloco de desenho e lápis de cor, para fazer experiências de cores, ver os contrastes, decidir o que quer para si. A mãe não consegue passar um dia sem comprar uma vassoura (uma varinha mágica), um armário de casa de banho.
A mãe soube hoje que mais duas pessoas vão morar juntas, vão sair de casa. Somos novos, diria eu. Mas está na hora.
A mãe percorreu as ruas de Almada. Querem saber como era a Capitão Leitão em dois mil e catorze? Há uma loja de bombons, frutos secos avulso, rebuçados e outros produtos enfrascados, com um cheiro muito característico, com um balcão onde está uma senhora amorosa. Uma senhora tão doce que só poderia estar a vender bombons. Há uma loja de sapatos que faliu e cuja montra está coberta de poeira. Há uma loja de self-service que, noite afora, vende garrafas de água, chocolates e preservativos. Há uma antiga drogaria poeirenta com vernizes na montra, soda cáustica e tintas para cabelo. Há uma loja daquelas que tresandam a velas de alfazema, com iemanjás e budas na montra, leitura de auras e tarot anunciados na porta. Há uma papelaria outrora muito frequentada, agora outro recanto caído desta rua envelhecida. Há a velha loja de livros em segunda mão onde ia comprar os livros da Harlequin que partilhava com a minha avó, no tempo em que ela ainda lia; o senhor morreu e a loja está vazia e de grades enferrujadas. Há o cão amarelo de um senhor que está sempre a cuidar da horta, um nível acima da estrada, debruçado para a rua e de cauda a sacudir. Há a antiga oculista, onde fui uma vez comprar um parafuso para uns óculos, e tive desconto porque reconheci, no pescoço envelhecido da lojista, o aroma do Coco Mademoiselle que também eu uso. Há uma loja de móveis em segunda mão que ajuda toxicodependentes, e onde a mãe entrou à procura de alguma antiguidade que valesse a pena mas, tendo sido recebida por um sorriso de boca desdentada, voltou a sair de imediato. Há uma loja de electrodomésticos em segunda mão. Uma loja de electrónica em segunda mão. Uma churrascaria e uma igreja recentemente renovada.
A mãe percorreu a rua inteira, de sorriso no rosto, satisfeita por viver na cidade onde vive. Há uma pequena preocupação, um pequenino sussurro que tenta insinuar-se sem grande resultado... Será que sou merecedora de uma coisa maior? De uma coisa bonita? De alguém que apanhe aviões por mim? Para ver-me? Para registar uma das minhas observações menos inspiradas? De alguém que me ligue e nunca se esqueça de me perguntar se estou bem? De alguém que me entenda nos altos e nos baixos e goste de mim em todas essas circunstâncias? De alguém que repare na minha dupla barriga, que se ria disso e me faça rir também sem me pôr a chorar? Sem me diminuir? Sem me desprezar? Serei merecedora de um homem que venha e que fique... Pela vida toda? Serei um bom investimento?
A mãe não tem um nome para atribuir ao que sente, mas a mãe sente-se apaixonada. Dançam-me borboletas no estômago, sorrisos involuntários nos lábios, uma certa paz interior de quem está onde deveria estar. A mãe está apaixonada e só pode ser pela vida…

domingo, 4 de maio de 2014

Carta aos meus filhos #29

A mãe está feliz. Confessa que a felicidade não é natural a cem por cento, mas, uma vez mais, fez o necessário para obtê-la.
A santíssima trindade portadora de alegria está reunida: a mamã já tem o gato, o gira-discos e os livros. Faltavam as paredes. Graças a uma série de ajudas, a mãe está a um passo de ter os chãos e os tectos. 
Sinto-me muito grande e muito forte. Tenho alguma dificuldade em entender a fluência da vida; os fossos intercalados com os cumes. Ainda há tão pouco tempo chorava um gato perdido, uma vida sem grandes perspectivas, uma solidão imposta, e agora saboreio o outro lado da moeda. Um outro animal para amar, a vida no lugar onde é suposto estar, a solidão orgulhosa e opcional de quem se rende às circunstâncias e não ao desespero.
A mãe tem um gira-discos. Talvez vocês conheçam a nossa parceria domingueira, enquanto engomo roupa. Talvez vos tenha gritado algumas vezes que tenham cuidado com a agulha, e mais ainda com os vinis. Nat King Cole, Scorpions, Queen e o “Red Red Wine” dos UB40. A mãe sabe que o projecto que abraçou vai limitar o número de viagens que poderá fazer, bem como reduzir um bocadinho a sua qualidade de vida de solteirona sem contas para pagar. Acabaram-se os shopping sprees nos saldos, acabaram-se os snacks caros para a gata, acabaram-se as loucuras de feira do livro. Agora terei de aprender a fazer cálculos.
Parece um sonho… um sonho bom. Um espaço. A minha música. As minhas cores. A minha existência expandida, impressa, duplicada, solidificada em algo de meu.
Estou um passo mais perto de vos receber. Estou onde deveria estar. Muito tranquila à espera do vosso pai. Ele será tão, tão especial… A mãe promete que só deixará o melhor pai do mundo entrar neste nosso ninho de paz.