quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Carta aos meus filhos #57

A mãe está melhor.
Voltou a sentir amor.
A sensação de vertigem associada ao amor.
Mas não está desesperada. Acredita que tudo tem o seu tempo. Que o que não está destinado não tem lugar. Que os caminhos apenas se fecham para empurrar-nos da direcção que é suposto seguirmos.
Logo vou falar com as cartas.
Vou perguntar-lhes pelo homem por quem estou apaixonada.
Vou perguntar-lhes se ele se lembra de me cantar ópera pelo sistema de mãos livres do carro até eu chorar de tanto rir. Vou perguntar-lhes se ele se lembra do número de vezes que disse que gostava de mim. Do número de vezes que me chamou de princesa.
Do número de vezes que me reconfortou.
E do resto... que era tão nosso, porque éramos duas almas em sintonia e só a distância soube quebrar-nos.
A mãe... gostaria muito de voltar a ser a miúda dele.
Vou estar atenta às oportunidades.

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Carta aos meus filhos #56

A mãe costumava rir-se por tudo e por nada.
Costumava encontrar beleza nas coisas pequenas; uma borboleta que insistiu em pousar em mim rua abaixo, um gato que se escapa de rabo-tipo-escovilhão de um mata velhos, as brincadeiras da bisavó Norvinda.
De repente, a mãe deixou de ver beleza em tudo. Deixou de ver formas nas nuvens. E isto segue há vários meses.

Hoje a mãe ligou à avó Vanda. Seriam cinco e meia da tarde. A avó Vanda tinha uma coisa muito importante para tratar. Mas é a avó Vanda, o que se pode esperar?
- Mãe, onde estás? - Perguntei, quando ela atendeu o telemóvel.
- Olha filha, a mãe está a pescar.
E foi isto.
A avó Vanda a gritar, do outro lado do telefone, embora não estivesse sequer a 1 km geográfico de mim, que estava a pescar.
E a mãe, depois de devolver o telemóvel à mala, pôs-se a pensar.
"Pescar. Fishing. Fishing. My mother is fishing. She is fishing. Fishing. The world is a mess but my mother is fishing".
E ri-me como há muito não me ria.
Sozinha.

sábado, 16 de agosto de 2014

Carta aos meus filhos #55

Uma vez a mãe apaixonou-se por um homem que leu As Aventuras do Robinson Crusoé, as Viagens de Gulliver e A Ilha do Tesouro. A mãe amou-o mais um bocadinho quando ele lhe falou do modo como esses livros lhe influenciaram a visão das coisas; o sabor adocicado da aventura em páginas tão estimadas de literatura.
A mãe quis muito que esse homem de olhar bondoso, esse homem que entrava em chocolatarias comigo e me perguntava "o que queres?" fosse o vosso pai.

Depois dei-me conta de que, vinte e cinco anos desperdiçados com um homem e cinco filhos depois é que a minha mãe, a avó Vanda, é finalmente feliz. Finalmente encontrou, passados cinquenta anos de vida, um homem com quem comunicar lhe é fácil, dar as mãos é fácil, ser uma equipa é fácil. E este homem esperou por ela a vida inteira. Viu-a ter um, três, cinco filhos com outro. Acabar e recomeçar com o outro. Chorar e prejudicar-se pelo outro. E continuou a acarinhar a esperança de a ter. Entre filhos, entre desgostos, lá estava ele, paciente.
E agora a avó Vanda é feliz. Só fala dele, e já estão juntos há um ano. Parecem dois pombinhos ciumentos e muito apaixonados.

Quanto tempo terei de esperar para reencontrar um homem que espere que eu adormeça para soprar, contra o meu ombro, "ti voglio bene"?

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Carta aos Meus Filhos #54

Se a mãe pudesse escolher que personagem ser na vida, escolheria o papel de uma qualquer actriz num filme francês. Ou melhor, a ideia que tenho do papel de uma francesa num qualquer filme. Uma mulher que não se preocupe demasiado com o perfume sem ser no momento exacto. Ou talvez esta seja a minha ideia de uma mulher francesa; alguém de cabelo meio solto, rosto limpo de maquilhagem, beleza discreta, só visível aos olhos de quem sente, não demasiado alta. Sem madeixas, sem creme hidratante nas mãos. Uma mulher simples, jovem, num mundo onde os homens fumam demais e metem demasiado perfume.
A mãe está melhor. Cinco infusões por dia, mas a mãe ignora o doutor e toma só duas. Não pode dar-se ao luxo de engolir cinco goladas de cura por dia, ou dormiria de manhã à noite.
Se sair desta bruma, saibam que foi a arte que me salvou. O livro que me tem consumido os instantes livres e um quadro sem qualquer espécie de talento promissor que ando a pintar há dois dias. Foi a escrita (que só tem existido na minha cabeça, mas que mesmo aí se desenvolve diariamente com desenvoltura).
A mãe sentiu um laivo de amor, hoje. Na realidade, sentiu dois. É estranho que não me sinta muito normal, que tenha tonturas quando me ponho de pé e que durma sestas de duas horas em sofás. É estranho que tenha destruído o meu dedo médio e ganho uma bolha do tamanho de uma moeda de dois cêntimos no polegar por tanto apertar parafusos em estantes e roupeiros. É estranho que um jarro da bisavó Norvinda, tipo bibelôt daquele azul e branco tão português, seja a minha peça favorita da estante. Fora os livros.
Como dizia, é estranho que a mãe tenha sido bafejada por algo parecido com amor hoje. Caminhava na rua, com as calças demasiado apertadas em torno das ancas, porque agora peso sete quilos a mais do que há três meses, e senti-o. O amor; um sopro na minha testa. Um líquido morno a escorrer-me pelo peito e a comover-me por um instante. Fiquei tão surpreendida que estremeci. Ao sacudir os ombros, perdi essa sensação. Mas, durante alguns instantes, ela esteve lá. Senti-o. Amei. Depois desamei. Mas, por meio milésimo de segundo, amei.

A mãe hoje, apesar de por momentos, voltou a amar.