quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Carta aos meus filhos #72

A mamã hoje quer falar-vos dum livro especial.
Chama-se, por enquanto, “O Escultor” e é de uma autora portuguesa. A mamã está a dar uma vista de olhos pelo livro e a comunicar as suas opiniões à autora. Nós, criativos, precisamos dessas coisas para ter uma ideia do que andamos a fazer…
Mas não é isto que importa. Se o livro estiver na minha estante, e espero que esteja,  abram-no. Podem folheá-lo, por favor? Tu também, meu rapaz. Pode parecer história de amor mas é importante para a mãe. E tu, minha menina, faz favor de lê-lo, sim?
Embora o livro ainda seja apenas um esboço, o casal principal está a fazer a mãe sentir coisas boas. Houve uma fase da minha vida em que não gostei de ninguém, e a mera possibilidade de que as pessoas pudessem ser felizes juntas parecia-me estranha e tentadora. Senti mais ou menos isso ao ler uma cena na esquadra entre os dois protagonistas. Que duas pessoas possam galgar o abismo entre as suas almas e encontrar-se no meio… Ó, que ideia vertiginosa, não acham?
Por esta altura, a mãe já poderia ter começado a escrever um livro chamado “Os Homens da Minha Vida”. Não falo de casos levianos, mas daquilo que têm sido as minhas relações com o sexo oposto. O meu pai, o meu avô, o meu irmão, os meus “amantes”. Dizê-lo assim põem-me de cigarro na mão num retrato a sépia. Os homens que amei… os homens que amo.
Este livro e a canção que a autora escolheu para estas duas pessoas opostas, “Thinking Out Loud” de um Ed Sheeran que está a fazer furor agora, neste minuto, são ternos. Tão ternos que a mamã pensa que dispensava todas as complicações. Todas as declarações de amor verbais. Todas as cartas de amor. Todas as lágrimas e todas as cenas de ciúmes.
A mamã quer amar o vosso pai assim, e só assim:
Numa dança lenta, no lusco-fusco, com ternura, respeito e olhos nos olhos. Só isso. Dispenso todo o resto se ele estiver nesse momento com a intensidade com que lá estarei.
Sei que não faz sentido. Mas é o que sinto neste instante.
Agora vão, vão ler. Vão ouvir a música. Vão puxar o rabo ao cão e testar a paciência dos gatos…

Amo-vos, suas pestes J

domingo, 25 de janeiro de 2015

Carta aos meus filhos #71

A mamã está bem, mas está confusa.
Aos vinte e cinco anos, sente-se simultaneamente velha e rejuvenescida. Decidiu que talvez seja a hora de fazer um trabalho de jovem, uma vida de estrada. Por vocês – posto que o meu estado natural é na minha cidade, nos braços dos meus amigos, com a minha comida no estômago e o gato no regaço.
Consegui dedicar-me a um bom livro, O Deus das Moscas, que no entanto me recorda da absoluta insignificância que é a bondade no mundo. Também estou por dentro dos meandros das minhas personagens de Uma Mulher Respeitável, pelo que, em termos criativos, não tenho como queixar-me.
Regressei agora de uma viagem de três dias a Londres, satisfatória a tantos níveis…! Não foi apenas partilhar uma sala com doze pessoas; escoceses, britânicos, noruegueses, catalões, franceses, lituânios, polacos, alemães e italianos. Foi o assombro de me ver à vontade, de representar Portugal e de me orgulhar da minha prestação. E de sentir laivos de carinho e compreensão pelas pessoas que me rodeavam. E de sentir que deveria fazer parte de algo maior… deveria ser cidadã do Mundo.
Estive, pela primeira vez, fora do país com a minha querida amiga V. As pessoas conhecem-se melhor sob pressão, ao final de um dia de longa caminhada, de horas de jejum, do amasso de um voo. E superar essas provas e ainda assim sorrir, abraçar, cuidar, é algo de extraordinário. Foi uma nova experiência.
Londres apresentou-se solarenga, mostrou-se menos tímida, mais bonita desta vez. Picadilly refulgiu de vida, Green’s Park apresentou esquilos a brincar com pedaços de tronco de árvore, cisnes tão belos quanto agressivos, a bufar, um lago gélido e paisagem com resquícios de outono. Três amigas num banco a dividir um lanche perante a superfície gelada do lago e o ondular rítmico dos patos. O português a dançar-nos na língua e um mundo tão maior do que o da nossa aldeia, tanto por ver…
Os portugueses emigrados, logo na ida, na fila para o controlo de passaportes à entrada do UK. Queridos, a mamã não é racista. Não contra os negros, não contra os ciganos ou qualquer outra minoria. A mamã tem mãe negra, primos muçulmanos (se bem que o islão não é nenhuma minoria) e amigos ciganos. Mas a mamã odeia quando o estereótipo e a realidade se encontram e, à chegada ao aeroporto de Londres, foi isso que testemunhou. Uma negra horrorosa, magra, olheiras fundas, cabelo lambido por gel, rodeada de crianças barulhentas e mal-educadas, uma provável filha de gorro no alto da moleirinha e cabelo entrançado até à cintura, a encostar o rosto a uma branca inofensiva. Digo uma branca inofensiva, porque há brancas que não o são. Distorceu grotescamente o rosto na direcção da moça, que duvido que falasse português, e deve ter-me nascido um esgar de repulsa na boca. Que nojo. Que vergonha dos meus portugueses que são aquilo!
E o amor? O amor deixa a mãe a cada dia. É um sopro cada vez mais ténue, que ora regressa em ondas de calor, de sacrifícios prometidos, ora me abandona de todo e me diz que a vida é assim; um caminho a percorrer-se sozinho. Por vezes, nas encruzilhadas, alguém surge e caminha a nosso lado por um bocado. Dá-nos a mão, estendemos-lhe a mão. Por vezes traz-nos torrões de açúcar, outras o amargo das lágrimas. E prosseguimos, sós. A mamã perdeu-a: perdeu a capacidade de amar incondicionalmente. Não foi intencional, mas quando deu por ela já se punha a si em primeiro lugar. Já nada existe entre mim e o meu amor próprio. Nenhum homem, nenhum expectro. Nenhum medo.
A mamã nada teme. Tem um plano c) sólido.

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Carta aos meus filhos #70

Hoje contei cinco cabelos prateados no espaço de uma moeda no meu couro cabeludo.
Espero que cada um novo signifique que estou mais perto de vocês :)

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Carta aos meus filhos #69

A mamã quer uma casa que cheire a si. A mamã quer uma casa que cheire a si com um jardim. Uma casa com um jardim onde o cão corra como louco. Uma casa que cheire a si com um jardim onde o cão corra como louco e vocês brinquem. Uma casa que cheire a si com um jardim onde o cão corra como louco, vocês brinquem e o vosso pai brinque convosco.
A mãe faz o que for preciso para chegar a esse jardim e a essa casa de chão de madeira envernizado.
Na cozinha, há cidreira e hortelã.

domingo, 4 de janeiro de 2015

Carta aos meus filhos #68

A mamã viu-vos.
A mamã viu uma coisa preciosa.

Num país de língua germânica, num parque no centro da cidade, os pés do vosso pai de calcanhares assentes nas meias. A mamã odeia pés, mas ama os pés do vosso pai. Verga-se aos pés do vosso pai, cuida deles como se, a partir daí, lhe cuidasse do âmago da alma. Ele sorri, tem rugas, uma mecha de cabelo crespo sobre a testa alta, grisalha. A mamã goza com essa mecha dele. Com essa mecha e com os pêlos prateados que lhe brotam do bigode. E a mamã sorri, e ele ri-se. A mamã não consegue fingir que há algo nele de que não gosta, e ele sabe. Está sentado de calças de ganga, com os pés pálidos sobre as meias cinzentas, e sabe.

E vocês... um mar de cabelo negro, encaracolado, difícil de domar, de braços abertos e pés descalços em corrida sobre a erva húmida. Os vossos pezinhos... (o coração da mamã enternecido por causa dos vossos pezinhos). E um quadrado tão perfeito de afecto que a mamã, da sua aresta, limita-se a cruzar os braços e a observar, feliz.