A
mamã está magoada, hoje. Alguns dias doem mais do que outros. Porque é que o
amor tem de ser uma substância composta? Porque é que existem diferentes tipos
de amor? Porque é que duas pessoas que se amam não podem, simplesmente,
fazer-se bem a todas as horas, do modo que lhes aprouver?
Porque
é que colocaram a mamã no coro? Porque é que me deram voz mas me deixaram aqui,
tão longe das cabeças que vivem lá em baixo? Porque é que a vida não me permite
que pare de cantar estas ladainhas sobre lutar-se pelo que se quer? Será que
algum dia a mamã se vai deixar de tretas e vai tomar um rumo? Seguir o seu
próprio conselho?
Porque
é que as pessoas que se amam, quanto mais se amam (na proporção em que se amam)
mais condenadas estão a que se interponham mares e tempestades entre elas?
Quando
ele me disse, deitados lado a lado, "não te aproximes tanto, porque assim
não te consigo ver", e as pontas dos nossos narizes se separaram para os
olhos se encontrarem, porque é que não parou tudo? Porque é que que não ficámos
só ali? Não tinha de ser um amor daqueles que começam ou acabam guerras. Já
vivi um assim e perdi. Não tem de ser um amor que nos vire do avesso e nos
exponha as entranhas. Era só aquele doce encontro das nossas vozes, numa língua
que não é a de nenhum de nós, enquanto ele me pedia que lhe lesse um trecho de
um meu romance e eu lho lia, sabendo que não entendia. Porque não ficámos lá?
Ele embalado no enigma das minhas palavras, eu no modo reverente como me ia
afastando o cabelo para trás da orelha para me ver enquanto me ouvia. O
silêncio ao nosso redor, a paz, um instante que não acabava mais, que pareceu
eterno, enquanto eu lia estendida de barriga e ele afastava as mangas do pijama
para me poder mexer no cabelo.
Porque
não ficámos perante aquela montra de doces de massapão, indecisos, enquanto
insistias para que eu pedisse tudo o que quisesse, e eu o pedia por mim e por
ti, porque sabia que fingias um controlo que a tua gula contrariava?
Porque
não ficámos naquele beijo sobre as pipas, em que não cessávamos de nos procurar
outra vez, em que o teu telefone não tocou e eu não tive de cruzar os braços e
esconder os olhos húmidos atrás do cabelo?
Ou
porque não ficámos naquele banho em que reparei que a tua pele tem manchinhas
cinzentas e me tentaste explicar o efeito da idade sobre ela por caminhos
sinuosos, porque não sabias dizer-me o nome da doença.
Se
tivesse de escolher um momento e ficar lá para sempre, mesmo sem os foguetes de
um amor tchan nem os dissabores de um amor plim, escolhia aquele em que abrimos
os casacos em simultâneo, naquela noite madrilena em que os termómetros andavam
pelos quatro graus, e nos rimos um do outro. Lembras-te? Tínhamos prometido
vestir-nos às escondidas um do outro, eu na casa de banho e tu no quarto.
Depois caminhámos até ao restaurante e sentámo-nos perante as bebidas. Só
quando a nossa mesa ficou vaga é que finalmente revelámos como nos havíamos
aprumado para o outro. Lembras-te de dizeres que éramos as pessoas mais bonitas
do bar? Sabes que tinha o meu batom bordô, depois se dias em que nunca usei
maquilhagem, porque urgia que me aceitasses como sou e que acordasses ao lado
do rosto com que te havias deitado?
Lembras-te
de como gozei com o teu papillon, mas de olhos rasos de lágrimas porque te
achava tão estupidamente adorável nesse esforço para me impressionar?
Lembras-te
de dizeres que tinhas saudades minhas, e eu respondia "eu também", e
tu dizias "não tens de o dizer só porque to disse primeiro". E como
ficava surpreendida por não veres a minha urgência em provar-te que era
verdade...
Sabes,
não estou certa do momento em que acabámos. Não foi quando me beijaste de
madrugada e foste até à porta, de trolley em punho, e eu não consegui
levantar-me da cama para te ver desaparecer no corredor. Não foi quando
disseste que não tinhas tempo para falar comigo.
Acho
que foi daquela vez que tentaste explicar-me que a tua vida era hiper ocupada e
que um dia, quando o tempo te sobejasse, voltarias para me fazer feliz. Fiquei
presa à tua despedida, às tuas últimas palavras ao deixar-me em silêncio:
-
Goodnight princess.