segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Carta aos meus filhos #99

A mamã sente que este capítulo da minha vida está a chegar ao fim de tantas formas...

Está tudo a encaminhar-se para o fim, umas coisas de modo mais literal que outras...
O orgulho tem sido o grande protagonista desta fase. O orgulho e a teimosia, e uma necessidade sobrehumana de me elevar acima de mim mesma e de me encontrar lá em cima. Sabem, não foi intencional mas a mamã perdeu demasiado tempo com becos sem saída. A mamã quis, durante longos anos, ver luzes ao fundo de túneis intermináveis. Neste momento, sentei-me dentro do túnel, arrastei os pés por sobre os carris e acariciei o ferro, cheirei a ferrugem. Chegou a hora de colocar a possibilidade de que talvez o túnel só me leve mais fundo, mais para o escuro, mais para o frio, mais para baixo. E tenho de decidir se volto para trás, para a realidade distante e estéril em que vivia antes da promessa de todo o resto. Estive tanto tempo no escuro que julgava ser capaz de distinguir sombras na penumbra. A mamã conhece os ângulos da ferrovia e a humidade das paredes do túnel, conhece-lhe o ruído do saibro conforme caminho, convencida de que a passgem seria longa mas valeria a pena. A mamã cansou-se. A mamã sabe que ainda não é tarde demais. A mamã é jovem, independente - sou independente, quantas pessoas podem dizer isso? - e, se tiver mesmo de ser, amanho-me sozinha (amanhar = remover escamas e espinhas até tornar o peixe comestível). A mamã hoje abriu uma garrafa de um azeite bem caro que me foi oferecido e banquetei-me dele. Depois, no caminho da cozinha para a despensa, fi-lo dançar no ar e escaquear-se no chão. Porquê? Porque haveria de criar todo um ritual em torno do azeite, prová-lo molhando o indicador no gargalo, chamar as minhas irmãs e incitá-las a fazer o mesmo, fazer pasta à italiana q.b. e celebrá-lo com mangericão, porque tive de aquecer pão no forno e molhá-lo no azeite e nos orégãos e lamber os dedos do azeite e dos orégãos, se depois o azeite acabou por entre cacos, no chão, a escorrer numa lentidão agonizante por entre as lajes que foram escrupulosamente limpas poucas horas antes? Porquê? Porque é um azeite bom demais. Porque valeu a pena. Porque fiquei sem o azeite mas tinha de ser. É tudo tão absurdo quanto o grito que lancei quando o vi no chão, a ensopar tudo, e me soube impotente.
A mãe está farta de estar no escuro a sonhar com a luz. A mamã quer fazer amor a ouvir a I Put a Spell on You da Nina Simone. A mamã quer saber que não mais terei de virar as costas àqueles que amo - àqueles que amei tanto e de modo tão tosco, tão ingénuo, tão crente, e depois tão amargurado, tão desencantado, tão contrariado. A mamã precisa de se convencer de que dando meia volta e saindo por onde entrei volto à luz. E tenho de aprender a viver com o facto de que perdi tempo no túnel. Mas, enquanto lá estive, banhei-me no azeite, amansei os medos com ele, ainda lhe sinto o perfume, ainda me recordo da qualidade inegável no rótulo, do brilho dourado, do modo como valeu a pena acender o fogão por ele.
A mamã está a dizer disparates, mas estão a fazer tanto sentido quanto fez lamber o braço quando o azeite deslizou da ponta dos dedos por ele abaixo. Não desperdicei uma gota do azeite que o universo me havia destinado. O resto não era meu, e quando já era derrame no chão, não podia rebolar-me nele sem perder a dignidade e manchar a dele.
A mamã anda a trabalhar demais, mas felizmente os sentimentos são um bom Norte. A mamã é, a todas as horas, ciente de que o nosso corpo, a nossa cabeça e o nosso coração querem coisas muito diferentes, e em mim parece que os três discordam mais no que em muitas outras pessoas. A mamã desceu a barragem do Carrapatelo, são trinta metros de água a descer e vinte minutos em que a tua vida dependente de engenheiros, da obediência de um rio e das condições do cruzeiro. E, olhando para o cimo, para a força com que a parede de pedra maciça e o portão de ferro continham a água, que ainda assim se derramava sobre as nossas cabeças, entendi que racionalismo algum contém o rio. Ele há-de infiltrar-se sempre em todas as brechas, em todas as fraquezas da solidez do material. Se lhe derem tempo, umas décadas talvez, ele desfaz o mérito da pedra e do ferro e reencontra o caminho para o seu leito. Assim que possa, aquele rio há-de esvair-se de volta ao outro, que é o mesmo, e que repousa trinta metros abaixo. Não tem como o rio não querer fazer parte do mesmo rio, ainda que o que o dilacera interponha altitudes e depressões entre os dois. Chamem-lhe gravidade; ou amor.
A mamã tem noção das coisas inevitáveis da vida, até hoje só me cruzei com duas, ambas trágicas, a seu modo necessárias, e também sublimes pela sua importância incontornável: o amor e a morte. A mamã é impotente perante ambas. 
Deixo que a Nina Simone me convença de que talvez a perfeição exista, talvez exista um motivo para tudo e talvez o azeite volte a escorrer pelo meu braço, se eu não tiver tanto medo que tudo acabe no chão.

sexta-feira, 9 de setembro de 2016

Carta aos meus filhos #98

A mamã estava em paz e agora está confusa…
Entendi que cheguei à faixa dos vinte e seis, quase vinte e sete anos, e ainda há muita mentira por aí. Não percebo como é possível que se minta e se distorça a realidade. Não entendo qual o objectivo, além de aquele de se amassar os sentimentos dos outros. Não percebo qual a gratificação que pode advir de se contar uma mentira e ver a vida do outro desabar por causa de nada. Ou de vê-lo repeti-la e ridicularizar-se. A mamã sente que se afastou, mas afastei-me pouco. Tudo encontra um caminho até mim, e é difícil isolar-me do núcleo e tapar os ouvidos. Mas a verdade é: eu não quero saber. Bastam as inseguranças de cada um, as desconfianças íntimas, para distorcermos a realidade dentro de nós. Quando isso acontece, costumo dirigir-me a quem me causar dúvida e tentar mitigá-la. Ao final de dez anos a colocar dúvidas, as pessoas aborrecem-se e tens de te calar e aprender a viver com elas ou simplesmente tapas os ouvidos e vais morar para debaixo de uma pedra. Tens de viver com a possibilidade de que sejam verdade. E as mentiras que contam não são coisas simples, não é sobre quanto se pagou por um corte de cabelo. São coisas que interpõem pontes entre as pessoas, que estalam o verniz da confiança e que acabam com amizades num estalar de dedos. Mas o que a mamã entendeu, além de tudo, é que o meu próprio desgaste me torna vulnerável. Se não estivesse sempre à espera que uma tragédia se abatesse sobre a minha cabeça (se não saísse sempre da sala antes que os outros saiam e me abandonem), a última mentira não se teria afundado tanto no meu coração. A mamã não entende o que se passa. Não se pode acreditar em nada nem em ninguém, porque as fontes que chegam aos outros também vêm contaminadas. A mamã só queria poder estar longe e não ouvir nem ver nada. Estar com os outros tornou-se penoso; termino os encontros a conhecê-los menos do que antes, porque as versões nunca se concertam e tu não podes, simplesmente, interromper a pessoa a meio do relato do seu jantar e perguntar "ouve lá, disseste mesmo que sou uma cabra mimada?"
Pior, além dos rumores falaciosos, há as mentiras piedosas, as mentiras destrutoras e as mentiras só porque sim. O esforço para se estar no pódio e se ser aceite é quase ridículo de tão empenhado... Porque é tão importante que se tenha alguém ao lado? Que se esteja a viver a vida dos outros (travestida de viver a própria vida)? A mamã está a ver as pessoas que sempre considerou puras a pôr a touca de banho para mergulhar na pocilga. E ainda dizem que não cheira tão mal como pensavam. Temos de aceitar as pessoas como elas são. Certo; mas daí até permitirmos que joguem com a nossa realidade, com a nossa verdade, vai um mundo de princípios. E há o ser chato, o ferver em pouca água, o beber demais, o não dizer uma palavra de conforto quando se sabe que estás na merda, mas depois há o inventar que o teu marido estava fechado no carro com a secretária. Como pode isto ser aceitável? Não se pode confiar num suspiro, num boa noite, num “estás boa?”. A mãe vê pessoas a descobrir mentira atrás de mentira e, ainda assim, a deixarem-se ficar. Porquê? Estaremos tão sozinhos assim que nos submetemos a tudo? Quando foi que os laços tão fortes que nos uniam se enredaram de tal modo que tivémos de cortar tudo à tesourada? É impensável sairmos da selva de cinzento para respirarmos um pouco e repensarmos tudo à luz da distância?
A mamã fumou mais cigarros esta semana do que no ano todo… E a avó está doente, é um atentado contra ela que me refugie na janela a tentar que a nicotina e o alcatrão organizem as ideias que não encontram prateleira nos meus miolos. 
É bom que o amor venha e se derrame sobre a cabeça de todos até nos deixar encharcados, se não as ervas daninhas vão arrancar-nos de vez uns aos outros.

~sometimes you gotta burn some bridges just to create some distance. 

segunda-feira, 5 de setembro de 2016

Carta aos meus filhos #97

Meus queridos,

Não se vivem tempos fáceis, mas a mamã está tranquila. Entre outras coisas, tranquiliza-me o facto de poder olhar-me no rosto com a consciência de que nunca, em dia algum da minha vida, me desviei do meu caminho para desvirtuar o de outro, ou para lhe causar dissabor. Casualidades acontecem, mas a intenção forja a alma, e a da mamã está lavada. Experimento uma paz e uma libertação por que há muito ansiava, e chegou-me pelos caminhos tortuosos que a vida toma para nos conduzir para aquilo que temos de ser.

Não entendia ao certo a sensação que se apoderou de mim nas últimas semanas, durante as quais trabalhei tanto, enquanto o mundo se divertia. Mas não advém mal ao mundo que o mesmo se divirta, porém a mãe vê as pessoas arrancarem os braços a outros e usarem-nos para coçar as costas, e isso, tempos houve, corroía-me as entranhas.

Esta mulher que não acredita em deus nem na canonização de super stars tem vivido um estado de lucidez que espero que não tenha fim. Sinto-me quase religiosa, e a religião é a minha, pelo que não cometo atentados contra os meus sermões. Estendi-me sob o Dark Sky e analisei os movimentos ao meu redor. A paz inundou-me e criei um espaço dentro de mim que servirá de refúgio a todos os desafios que se avizinhem. Quando vejo uma estrela cadente, a minha ideia é uma apenas; que ela não sofra.

Todo o resto é um circo para o qual a mamã não quis comprar bilhete. O circo está na cidade e sou obrigada a ouvir o riso das crianças. À noite, as luzes do circo cruzam o céu e a mamã tem de se lembrar que os palhaços e os figurantes são representados por pessoas que não costumavam usar máscara. Mas há pessoas que cedem às oportunidades, e por isso trouxeram a máscara para a cabeceira da cama, e durante anos convenceram-se de que era um acto irreflectido, sem consequências, jamais a usariam. Mas ela estava lá, e, quando o instante se dá, é só cobrir o rosto e saltar para o palco. A mamã nunca chegou a comprar nenhuma máscara, por isso é pouco provável que venha a usar uma. 
Se a mamã pensar bem, o que a invade é uma espécie de ternura, quase compaixão. A mamã sabe que uma pessoa toma muitas formas sob o efeito da dor - e a dor pode ser muita coisa, pode ser até a incapacidade de darmos um passo e dirigirmo-nos ao sítio no qual sabemos que podemos ir buscar ajuda - mas nem todos os desconfortos justificam todas as condutas, e o que define uma pessoa é a capacidade de recusar morfina quando se propôs a aguentar. Mas a mamã não quis uma vida de faz de conta, nunca mentiu a si nem a ninguém a respeito das coisas do coração, nem quis as coisas por querer, nem enfrentou dilemas morais. 

A mãe acredita que algumas coisas são sagradas. Uma delas é o "amigo". Não é deus, não é santo isto, não é rosário aquilo. Isso é comprar-se indulgências, uma vez mais mascarar-se de benevolente. Para a mamã, a sacro-santidade está apenas sitiada nesse substantivo. E a mamã pode até perdoar as ofensas que lhe façam - e aqui volta a recordar-se que não é católica, mas às vezes apropria-se do palrar da classe -, mas não consegue conceber faltas de carácter. Uma falha de carácter é uma luz muito intensa num rosto. Num qualquer rosto; o defeito surge e a partir daí não dá para fingir que não existe. Quando isso acontece, a mamã faz cálculos de cabeça e entende que o universo é demasiado pequeno para tanta hipocrisia. Constrói um muro e recusa-se a olhar para as trincheiras. Porém tenho de me recordar que criaturas há que caminham sobre a terra sem um único elo sagrado, e apenas me resta lamentar que os valores do espírito nunca as tenham bafejado, e que assim sendo padeçam das fraquezas dos animais.

Vivemos uma época em que, se uma pessoa dedicar uma década a outra, é acusada de ser doente mental e obcecada. Se outra pessoa sofrer um desfile de reveses do coração é considerada sana, livre, desejável, moderna (e ser-se moderno é sinónimo de algo positivo). Uma pessoa tem de valer-se de toda a sanidade que encontre para não enlouquecer, mas o importante é que se saiba que se está dentro de uma caverna, que há um mundo lá fora, e que algumas sombras sabem que são sombras, enquanto outras se julgam luz. Enquanto se observa as sombras a dançar na parede da caverna, reflecte-se sobre o infortúnio que é o não se saber que se é sombra. O importante é sabermos, a todo o instante, que tudo passa e o efémero passa mais veloz ainda.

De repente ocorreu-me como explicar…

Somos todos uma grande árvore de fruta. Pode ser uma pereira; em termos estéticos somos uma pereira. Mais pesados na base que no topo; isto é, mais densos no corpo que no espírito. Crescemos todos nas mesmas circunstâncias e partimos todos do mesmo útero, se bem que uns com mais acesso ao sol do que outros, sendo a água e a seiva as mesmas. Penso que sejam os elementos o que afecta mais a uns do que a outros, e de repente veio uma ventania sem igual. Aqueles a quem o sol estival estonteia, foram os primeiros a ser postos à prova. Caem por terra as promessas e os pequenos sacrifícios da irmandade.

A tempestade sacudiu a pereira e algumas pêras caíram, amassadas, no húmus. Essas não tinham escolha; a natureza delas era débil. Não são essas as culpadas pelo enfraquecimento da pereira. A árvore, na sua consciência geral, sabia que seriam as primeiras a entaramelar-se a respeito da própria existência, e o equilíbrio fora criado a despeito dessa falha. É certo que aquelas pêras seriam derrubadas ao primeiro golpe dos elementos.Como as abelhas, e as abelhas têm ferrões, pelo que o universo não pasma quando o usam. 
Outras continuaram seguras, mas não conseguiam desviar a vista do que se passava junto ao calor da terra, junto à azáfama das folhas ressecadas. Começaram a sentir-se pesadas no seu pender dos ramos. As outras pareciam-lhes mais livres e sem âncora, e quem sabe debaixo se visse melhor o céu e a noite estrelada.

À segunda rabanada caíram mais algumas, porque haviam afrouxado o abraço ao seu sustento, porque um momento de descuido as apanhou e a gravidade não funciona no sentido inverso, por muito que a vontade almeje inverter o curso do movimento.

As que se mantinham nos ramos começaram a sentir-se isoladas, desejaram poder juntar-se de novo às outras, reencontrá-las noutras circunstâncias; então soltaram-se da Mãe, soltaram-se da Terra, soltaram-se do que nelas era divino e sagrado e jogaram-se no nada. Abandonaram aquilo que haviam sido criadas para ser, e tudo o que fora promissor nelas até aí. Aterraram por entre insectos e outras coisas rastejantes, e esse é agora o seu novo habitat

A mamã espera que as pêras que ficaram na pereira se segurem. Espera que não se deixem cair, que não cobicem a leveza da descida. Não se sintam sós. São tão poucas, e tão preciosas... Não se iludam sobre a possibilidade de, ao cair, deixarem de dever algo à árvore. Não pereçam; na queda começa a decomposição. Uma pêra que se soltou da árvore jamais será pereira de novo. 

Não se deixem impressionar pelo facto de a ventania ter levado frutos tão robustos. Basta um dedo a acariciar o volante para a esquerda, quando se fecha os olhos, e o carro desfaz-se contra o rail da auto-estrada. 

É assim que a mamã vê a luxúria travestida de amor, e a leviandade travestida de liberdade. E as pessoas travestidas de seguras e auto-conscientes, quando estão é cegas pelos faróis que se avizinham, em sentido contrário, enquanto deambulam na beira do caminho. E, quando o feixe incide sobre as suas cabeças, e todos os olhos se voltam, chamam à cena aquilo que aos outros soa puro, para com isso expiar a sua fealdade.


O vento aquieta sempre. E quando o vento soprar tranquilo, e o sol voltar a ser ameno, e a folhagem acariciar a fruta no seu resfolegar, a árvore recupera o esplendor e o resto já foi varrido pelas estações. E então tenho de me lembrar que não sou cristã. Sou uma mulher sem deus e sem religião. E a alegoria da árvore torna-se mais perversa ainda.

sábado, 3 de setembro de 2016

Carta aos meus filhos #96

Boa noite do Monte da Estrela,



A mamã aprendeu tantas coisas, hoje! Mesmo nos períodos em que seria de esperar que me esquecesse de mim e que me desligasse do universo, a magia acontece e a vida chama-me.
A mamã está num sítio lindo e especial, em plena comunhão com a natureza, e tem um encontro marcado com as estrelas para daqui a umas horas. Vim para aqui não por minha livre descoberta, mas foi-me indicado e ontem a voz desta mãe especial chamou-me. Meti-me no primeiro autocarro e zarpei. Vim encher os olhos de ouro e escutar a natureza na sua respiração.
Hoje aprendi que podes ter três filhos, morar em Lisboa, estudar gestão e comprar um monte alentejano. E depois podes pegar nesse monte e torná-lo numa casa de turismo rural, abrir as tuas portas a quem vier e ser feliz. Primeiro descobri que estamos numa área do planeta chamada "Dark Sky", um observatório do firmamento de acordo com a NASA. Do centro do pátio vejo poeira celestial, um dos braços da Via Láctea, e estamos sob a sua alçada. Vi duas estrelas cadentes (e ainda nem me deitei para admirar o cosmos) e fui regada juntamente com o relvado, mas até isso me fez feliz. 




Comi figos com mascarpone enquanto descobria que se coloca carne no vinho, durante a fermentação: se fossem outras  pessoas quaisquer, não acreditaria.
Contudo estou rodeada de pessoas bem formadas, que encetam explicações que eu, por estar no limite da exaustão, não consegui seguir em todas as suas estações. Mas disseram que o vinho, ao fermentar, é como se entrasse em erupção. O mosto ferve sobre si próprio, queima, e o insecto que caia lá é deglutido, assim como o é a carne (borrego por ex.), que me garantiram que é fermentada com o vinho do Porto, por ex. A mamã há-de ler isto mais tarde e pensar: que raio? Mas ouvi-o e vou investigar, porque é polémico a tantos níveis, sobretudo naquele em que não se poderia eliminar esse passo, se isso significa acabar com a qualidade como a conhecemos.
Aprendi que os fenícios faziam vinho em cânforas, e as uvas não eram pisadas mas revolteadas com um pilão enorme (......) e os romanos faziam igual. Ainda aprendi que o álcool intoxica e quem pisa uvas fica inevitalmente bêbedo, pelo que tem de cantar e apoiar-se em quem o ladeia, a fim de não dar um mergulho no vinho e jazerem por lá, esquecidos. Em Mira d'Aire há grutas com morcegos enormes, e na selva Moçambicana havia um senhor que tinha uma osga obesa chamada Óscar, e o Óscar certificava-se de que os mosquitos da malária, dengue, etc., acabavam a nadar no seu suco gástrico. A mamã ficou a conversar sob as estrelas com pessoas interessantes, e bebeu vinho caseiro e um bagaço alentejano que se pega aos lábios e os deixa doces. A mamã hoje bebeu bagaço e gostou, mas aqui chamam a essa bebida translúcida "a mãe do vinho". 
Hoje a mamã sentiu a humidade do Alqueva no ar, e foi como estar de volta em Salvador da Baía, em que a atmosfera está tão saturada que o céu desaba sobre nós sob a forma de chuva ao final da tarde. Aprendi que o som do silêncio é, na realidade, o dueto das cigarras e dos grilos, e que há quem reclame nos hotéis rurais da sinfonia desses bicharocos.
Aqui há uma gata selvagem que se roça na porta da cozinha e que janta ensopado de borrego. Não deixa que ninguém lhe toque, mas segue à frente do prato e choraminga como uma normal gata de casa. Só aparece à hora de jantar. Há uma cabra preta chamada Estrelinha, que vou conhecer amanhã, e que é amistosa. Há também uma raposa que ronda a casa, mas que não ataca as galinhas. Gosto de imaginar que a hei de ver, porque gosto tanto de raposas... E esta anda aqui, fortuita, e talvez o instinto lhe diga que eu quero ser amiga dela, e que eu sei que o essencial é invisível para os olhos.
Ofereceram-me bagaço e uma cigarilha e senti o aroma a baunilha elevar-se no calor estival, enquanto uma e depois outra estrela colapsava no horizonte. Disseram-me que os charutos necessitam de no mínimo 80% de humidade para serem bem conservados, e que essa temperatura é a ideal em Cuba, onde podes só metê-los no armário sem te preocupares. Noutros cantos do globo mandas fazer a tua caixa de charutos (madeira não envernizada) e convém teres termómetros de temperatura e humidade embutidos. Se o charuto ficar demasiado seco, tens de regá-lo. Antes de o fumares, leva-lo junto do ouvido e sentes o resfolegar do tabaco, dentro. Se não ouvires nada é porque está demasiado húmido, tem de secar um pouco. Quando fumas dois terços do charuto, podes mergulhar o restante em conhaque. Por essa altura a temperatura está tão alta que tens de o arrefecer, ou a qualidade perde-se de vez. 
Quanta ciência, a do relvado que não deve ser regado durante o dia quando estão trinta e oito graus no ar, porque na terra estão quarenta e cinco e a água causaria um choque térmico e depois aqueceria, apodrecendo as raízes das plantas. Deve regar-se tarde, à noite, respeitando a natureza e os seus ciclos.
Raposinha, vens visitar-me? Daqui a nada espero ver-te...