quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Il Viaggio in Rosa - Parte I

Parte I - Bergamo

Como sempre, sentar-me num avião dá-me um sono sobrenatural. Adormeci antes da corrida final e nem me lembro de tirar as rodas da pista. Devo ter dormido durante três quartos da viagem. Depois acordei e os percalços começaram.
Para poder ler pedi um café - já sentia a moínha de uma grande dor de cabeça a agigantar-se. Depois entornei o copo de café sobre o meu casaco e o moçoilo que ia ao lado. Tirou um lenço do bolso e estendeu-mo com prontidão, aproveitando para dizer que os portugueses dizem constantemente obrigado. O restante tempo de voo foi passado meio a analisar-lhe as mãos - mãos de homem bonitas são mais raro do que possa parecer, e este precisava de um jeito nas unhas.

Aterrei em Bergamo sob um frio de gelar ossos. As malas, embora juntas não pesem mais de 25kg, são dois monos cheios de coisas frágeis que trago uma em cada mão. Atravessei a alça da mala de senhora ao pescoço. Meio afogada por isso, pelo cachecol, pelo casaco e pelas malas, cheguei ao balcão de rent-a-car. Enquanto assino os papéis dou-me conta de que os dedos me estão a tremer. Estou aterrorizada. Não costumo conduzir - explico ao senhor. Quase queria que ele me tirasse os papéis da frente e dissesse "minha menina, você não pode sair daqui com o nosso carro". Mas não... mete-me a chave na mão e faz-me assinar uns papéis, o irresponsável.  Depois de muito repensar, concluo que vou precisar de um GPS. O valor é absurdamente caro, mas não vi grande alternativa. O GPS vai ajudar a evitar um desastre potencializado por uma condutora como eu andar perdida na estrada. Saio dali com a chave do carro e indicações para o parking, a tentar mentalizar-me que vai correr tudo bem e que o meu chefe não me vai assassinar por causa do gasto extra do GPS. Não encontro o parking e gelo enquanto dou duas ou três voltas ao perímetro do aeroporto. Já irritada, porque as malas são um pesadelo, dou com o sítio. Olho para um carro, convencida que é aquele, e quando clico na chave para o accionar é o do lado que reluz. Uma miniatura de carro com o aspecto mais frágil que já vi. Foi a primeira vez que aluguei um carro que vinha com uma lista de mossas. Tudo o que tenho a fazer é não acrescentar nenhuma. Ou bater só onde aquelas já estão.
Arranco com o carro depois de preparar tudo. GPS a postos dá 20 minutos de estrada até ao hotel. Tudo bem, vinte minutos é a via rápida. Eu consigo. Ganho coragem e saio dali para a via rápida, depois de circundar o parque duas ou três vezes para me habituar ao carro. Dizer que ia aterrorizada é pouco. Quando me apercebi que o GPS estava apagado pior ainda. Tento seguir as placas para Bergamo, sabendo que teria que parar algures para me orientar. Engano-me na saída e vou para Seriate. Quase causo dois ou três acidentes, mas os italianos são inesperadamente civilizados ao volante. Sou eu que arranco buzinadelas e travagens bruscas. Paro porque me apercebo que vou a chorar e que não vejo nada. Choro um bocado com a testa contra o volante, como se vê nos filmes. Já entendi porquê. Pergunto-me a quem vou pedir ajuda. Quem vai ajudar-me ali? Não deixo que a crise dure muito porque passaram quase três horas que aterrei e estive sempre a vinte minutos do meu destino final. A cabeça explodiu, a enxaqueca instala-se a preceito mas eu decido que vou ligar a net e seguir o GPS do telemóvel. Apesar de me ter perdido logo, parece que cortei meio caminho. Estou a dez minutos do hotel - em pânico - mas quase em segurança. Arrisco. Onde vou pôr o telemóvel de maneira a que o veja? Pouso-o e oiço a voz da senhora em Português a debitar indicações. Acalma-me tanto que me sinto abraçada. Respiro fundo e vou fazendo o que me manda fazer, passando por obras na estrada e por motas viradas e equipas de socorro a levantar motociclistas do chão. Está tudo escuro e calmo. Quando dou por mim cheguei ao estacionamento. Depois de umas voltas largo o carro, respiro fundo e posso gozar a dor de cabeça. As rodas das malas prendem-se em cada pedra do centro histórico da cidade, e demoro três vezes o necessário para chegar ao B&B, que era logo do outro lado da estrada. A estacionar está o rapaz em cima do qual despejei o café. Não me vê mas reconheço-lhe o nariz e os óculos. Ó mundo pequeno! Já no check-in, o Gigi diz-me que a mulher dele faz anos no mesmo dia que eu. Como o B&B se chama "A Torre", o meu quarto é o último ao cimo. Não há elevador a aliviar os quatro lances de escada estreita. O Gigi, felizmente, dá uma mãozinha com as malas. Consigo sorrir.
Vou ao bistro do lado - cujo jazz me chama de longe - para buscar conforto numa refeição italiana. A cozinha está fechada e dizem que me vão trazer umas fatias de pão e presunto. Quando dou por mim tenho uma tábua com um porco inteiro à frente, feito salami e prosciutto. Só queria uma bucha...
Apesar do bolor, o queijo é bom. Já a polenta (?) é difícil de entender. Parece a textura de migas de pão e só consigo identificar um ingrediente: milho. Nunca tinha ouvido falar em tal coisa. Oiço a senhora levar quase tudo para trás (era presunto para quatro homens) e queixar-se que tinha avisado que era demasiado. Dói-me demasiado a cabeça para rir.
Preciso de me rir. Não consigo - ainda não -, mas para me acalmar prometo que amanhã vou visitar as agências todas a pé. Vou evitar aquele volante até à hora de almoço.
Penso que se conseguir meter um pouco de humor nisto, tudo vai correr bem. Tudo vai acabar bem.

domingo, 27 de novembro de 2016

Carta aos meus filhos #102

A mamã sente-se fraca e desinspirada. Costumo viver de paixões e nenhuma me tem pulsado nas veias. Fui à ópera e estremeci. Foi um pouco de emoção num coração hibernado. É-me involuntário. Madame Butterfly é de uma beleza que dói na alma. Se se tiver uma, os pelos da nuca eriçam-se todos quando os dois amantes cantam a Notte Serena. Só para depois ele a levar ao suicídio.
Não me apetece escrever. Mas tenho sempre e a todo o instante de manter a cabeça ocupada. Por isso vejo filmes. Consegui avançar um pouco n"A Campânula de Vidro" da Sylvia Plath. Mais famoso que o livro que ela escreveu é o modo como, dois meses depois de o publicar, meteu a cabeça no forno a gás. Estou na parte em que a depressão da sua personagem principal - Esther, depressiva, vai começar a fazer terapia com choques eléctricos. Esther inventa um pseudónimo quando começa a escrever o seu livro. Elaine. É-lhe importante que mantenha o mesmo número de letras do seu nome. Seis. Sylvia. Esther. Elaine.

A mamã faz vinte e sete anos daqui a uma semana. Vou estar sozinha. Nunca se sentiu mais sozinha na vida. Mesmo quando estava sozinha no passado, sabia que nào estava sozinha. E a mamã procurar por estar sozinha a vida toda. Mas não só. E o abandono momentâneo só se compara ao de ver a mãe a sair pela porta da avó, com um irmão pela mão e outro pela anca, enquanto eu ficava a dizer adeus no corredor e a avó me puxada para dentro e dizia que não havia dinheiro para pagar a conta da luz. Às vezes ia até ao patamar vê-los desaparecer na esquina. A mãe tinha um blusão de cabedal. O irmão também, e tinha os cabelos compridos e encaracolados, apesar de ser um rapazinho. A mamã está num momento em que tudo me parte o coração. As lágrimas têm surgido, mas como consolo. Enquanto forem alívio a mamã fica satisfeita. Aceito qualquer coisa que me alivie as dores.
A mamã vai ficar dezoito dias sozinha. Foi uma escolha minha, mas agora parece-me que vou ter que lidar com coisas maiores que eu. Como conduzir e estacionar. Pior que seja num país onde nada se respeita na estrada. A mamã nunca teve medo de nada. Mas agora tem. Por enquanto consegue deitar o pé à embraiagem e sacudir esse medo. No outro dia, viajando no banco de trás de um uber, o motorista diz que, a nível pessoal, fez Ponte Vasco da Gama/Marina de Vilamoura às oito da noite em quarenta minutos. A família esperava-o, mas podia ter chegado só o telefonema do Inem e o funeral de caixão fechado.
A mamã tem medo. Gostava que vocês estivessem cá para ser forte por todos. Mas a mamã jã não tem porque ser forte. A mamã ...
Está desinspirada. O médico de clínica geral que me atendeu a propósito da faringite leu o título do livro que ando a ler. Perguntou-me porque ando a ler coisas sobre uma mulher depressiva. Leu a minha ficha no computador. No final disse que é psiquiatra e para não acreditar na totalidade em mal-estares psicológicos apenas baseados em questões fisiológicas. Ele disse "falta algo na sua vida". E a mamã dizia que está tudo bem. E ele dizia "não, falta algo e você não quer dizer o que é se não desmancha-se em lágrimas, mas sabe bem o que é".
A mamã tinha esperança que houvesse cura sem felicidade. Porque assim podemos travestir a nossa realidade como quisermos. Mas se me exigem uma jóia verdadeira para que tudo fique bem, eu não posso. Não depende de mim e eu não posso depender de outrem.
Tudo acontece por um motivo. A mamã não sabe se vai escrever mais livros. Do momento onde estou, parece-me que se olhar para o futuro não vejo mais livros. Não vejo mais amores. Não vejo filhos. Não é que a mamã esteja triste ou no escuro. Às vezes da luz vê-se melhor. A luz traz a escuridão. Como um grande amor pode trazer só desgostos.
A mamã precisava de um planeta novo, onde se exilar. Por enquanto vou para Itália, e apelo à civilidade dos condutores e ao universo para que me devolva a chispa da inspiração. A partir daí acredito que possa construir uma estrada de tijolos amarelos e, quem sabe, escapar-me daqui.

domingo, 13 de novembro de 2016

Carta aos meus filhos #101

De vez em quando vêm ondas de dor. De ansiedade. A mamã tem tido sonhos maus. Tenho sonhado que tem AVCs. É um sonho assustador. Sinto o sangue a fluir de um lado para o outro do meu cérebro, como ondas a rebentar dentro da minha cabeça. A mamã sonhou que acordava depois de uma dor atroz e me diziam que tinha ficado um dia sem sentidos. Os tempos são estranhos. Talvez não seja o mundo que está pior (a eleição do Trump deixa-me indisposta), talvez sejam os sonhos e a esperança e as ilusões que ficam para trás. Vou chegar aos trinta sem me reconhecer. As minhas prioridades ficaram de cabeça para baixo. O amor é a última delas. A mamã agora passa o dia com as mãos enterradas no alguidar da roupa lavada, a cheirar o detergente na ponta dos dedos. Estende e apanha roupa. Até cozinhei nestes dois dias.
O trabalho não pára: deixa-me doente e impotente. Ontem tive de tomar uma coisa para me acalmar. Não posso fazê-lo todos os dias: não quero ser uma aleijada, uma dependente. Tenho muito que fazer - ainda não tirei um Mestrado nem fiz voluntariado em África. Ainda não vi a Turandot nem outra ópera na Arena de Verona. Por falar em arena de Verona... A mãe está quase a fazer vinte e sete. Vou festejá-los sozinha, com livros e arte. A mamã precisa de descobrir o refúgio dentro de si própria. Nunca como este ano a vida me afastou tanto das pessoas que amo. Parece que estamos todos fadados a ficar longe uns dos outros. Talvez seja verdade, e se for a mãe deixará de lutar. Não vou gastar mais energia com pessoas que já manifestaram que lhes sou indesejável.
O momento: estamos a viver para o momento. A entregar-nos ou a lutar por pessoas que não têm qualquer valor para nós, e às quais nos confiamos com os impulsos de uma qualquer paixão porque sabemos que nunca nos serão nada. Que não têm como nos magoar. Que podemos dar só um bocadinho de nós, mostrar-lhes só o lado que queremos e ocultar o resto. A parte que aqueles que nos amaram por completo mais acarinharam: os nossos medos, defeitos, imperfeições. As coisas sagradas estão debaixo do tapete. Estamos todos a despir-nos de tudo para podermos nadar para longe. Sem âncoras, sem pesos, sem olhar sobre o ombro.
Hoje, enquanto dobrava roupa, a mamã entendeu uma coisa:
O dia chegaria em que estaria sentada, frente a frente, e não iria sentir nada. Nada. Em que iria vê-lo pelo que é. Um outro corpo. Uma outra vítima da evolução. A mamã esperou tanto que esse dia chegasse, e quando chegou nem um enterro digno lhe fiz. Mas chegou. Doía tanto que a mamã acabou por deixá-lo ir. O que matou tudo foi o total e completo desapego por mim. Pelo que me é sagrado. Como daquela vez em que o meu pai se viu livre de um livro meu. Não mediu as consequências: não podemos pisar naquilo que é mais precioso para o outro e esperar que fique tudo igual. Foi um momento de viragem. A mamã andou zangada umas semanas, a culpar-se pelo tempo perdido. A perguntar-se porque o perdi. O que vi nessa aura, afinal? E agora perdoei-me. Perdoei-me e perdoei-o. E sinto-me suficientemente bem para, enquanto dobro a roupa, lhe desejar boa sorte com os assuntos do coração. Sorri e pensei "boa sorte, meu amor". "When love and trust are gone, I guess this is moving on". Mas não significa que a pessoa não tenha sido o maior, o mais trágico, o mais sangrento amor que jamais terás. O mais negro e o mais luminoso em simultâneo. Com isto faço-lhe o funeral: tempos houve em que trazia luz para a minha vida; em que éramos luz um para o outro. A mamã está convencida de que ele gostava de mim, sabem? Não uma sombra do que eu gostava dele. Mas houve amor nos olhos dele, em algumas ocasiões. Talvez duas pessoas com bom coração não tenham porque não ter afeição uma pela outra. E depois eu puxei-nos para o teste final - nem sequer houve reflexão por trás. Foi pura imprevisibilidade. E acabou tudo, como nesse momento quis que acabasse. Ansiei por dar um último capítulo à estória, e o mesmo veio sem que eu pudesse antecipá-lo. Ainda bem: tudo acontece porque tem de ser. Amores maiores acabam quando o fogo se extingue, e o fogo extingue-se por falta de oxigénio. Por isso esta cidade fechada deu-nos a liberdade que precisávamos. O alívio que ele queria. Fui-me embora do quintal dele. No more love letters, no more love.
O meu coração já estava feito em cacos há muito tempo. Há muito que merecia melhor do que esta história. Era bonita uniteralmente. Seria bonita se eu dissesse que este homem esperou por mim dezanove anos, como o marido de uma aluna minha. Mas não: eu seria o marido que esperou.
A mamã quer ser a primeira escolha de alguém, acha que merece isso. E pensar que a felicidade já esteve ao alcance dos meus dedos e que não fui uma actriz suficientemente boa e que, mesmo feliz:
- Se ele entrasse por essa porta, deixavas a comida a meio e ias-te embora com ele, se to pedisse.
Se a felicidade voltar a sentar-se comigo num restaurante em Sintra, vou garantir-lhe que não. Não vou a lado nenhum. Porque o amor não é tudo e tantas vezes até atrapalha. E porque este morreu e eu nem sequer fui ao funeral. Estava ocupada a estender roupa.

Por isso, e em nome dos momentos plenos de luz que vivemos, que sentia que nada abalaria o meu amor por ele e em que dentro dele havia um carinho que não nos deixaria velejar para demasiado longe um do outro, digo, com sinceridade:

Vai e sê feliz.
(E já não consigo conceber terminar com ", meu amor").

Agora só desejo sair depressa daquela fase de que fala uma canção tradicional irlandesa:
- I wish, I wish
I wish in vain.
I wish I had my heart again.