quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

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OBRIGADA,

domingo, 11 de dezembro de 2016

Il Viaggio in Rosa - Parte X

Firenze - Roma


O hotel de Firenze é tão mau que fiquei feliz por sair da cidade. Com uma mala cheia de roupa lavada e outra com os apetrechos tecnológicos e a biblioteca que trouxe comigo, despedi-me com um último pequeno-almoço no Robiglio. Está cheio de panettoni e de bombons, mas não é por ser inverno que se vendem menos gelados na rua. Bebo um cappuccino e como um croissant. A espreitar-me das montras há bolos e mais bolos com creme. Quero um pão com manteiga, mas nesta pastelaria só se vê pães a envolver fiambre, queijo e prosciutto. A senhora traz-me manteiga, arranja-a não sei onde, porque os cafés daqui simplesmente não espalham manteiga em pães de manhã. Salumeria. Pasticceria. Osteria. Trattoria. Pizzeria. Gelateria. Panetteria. Estou a aprender.
A paisagem invernal seria quase depressiva, para lá da janela do Frecciarossa, e Ludovico Einaudi corrobora com isso. Mas estou demasiado feliz para isso. Demasiado tranquila. Estive uma hora à espera do comboio de alta velocidade, após a qual me sentei na carruagem errada, mas no lugar certo. Tomei o lugar de uma jovem com o bebé. Depois tive que mudar, como é evidente. Se fizesse uma lista que odeio nas pessoas (é demasiado tentador):
- Odeio pessoas que se sentam no lugar dos outros nos transportes, quando já há um lugar marcado.
E lá estava eu, num comboio de corredor apertado e atafulhadíssimo de malas e de casacos, a abrir caminho no meio do pêlo, do couro e das fivelas, para a carruagem a seguir. Detestei-me a mim própria por me ter posto nessa situação. Na carroça certa (o erro foi da 9 para a 10, mas poderia ter sido da 2 para a 10), descubro uma roqueira no meu lugar. Cabelo avermelhado, camisa de uma banda qualquer de metal, olhos ensonados. Teve de sair, e fiquei ainda mais irritada comigo mesma. Estava a dormir porque o comboio já ia em andamento. Estava confiante que até Roma iria no lugar escolhido.
Estou a pensar na passagem do tempo. Não agora, mas constantemente. Perante o azul leitoso da distância, das árvores despidas e do céu plácido, consagrada às Four Dimensons de Einaudi (comprei outros phones - mais uma sandes para o almoço) vejo o meu reflexo. Incomodam-me as formas do queixo quando o franzo. Incomoda-me o facto de estar magra e de isso resultar num peito plano e em covas no rosto e sob os olhos. No verão de 2013 já tinha engordado 7kg por esta altura. 
Ontem vi o Venuto al Mondo, com a Penelope Cruz a fingir que é italiana e a falar inglês. Em ambas as línguas era traída pelo espanhol, e quanto mais passeava em Roma mais evidente me era que é espanhola. Até os penteados eram espanhóis, na minha opinião. Mas o filme é mais premente que isso: é sobre a guerra em Sarajevo, e sobre a maternidade no seu sentido mais amplo. Porque quererão as mulheres filhos? E porque, de repente, tenho tanto medo deles? Será que estou a tentar parar um comboio de alta velocidade antes que descarrile? Será que antevejo, adiante, a impossibilidade de ter uma família e comecei desde já a cultivar indiferença ou até irritação perante as crianças? 
Sempre me imaginei rodeada de filhos. Sempre me imaginei a observá-los do canto, enquanto o irmão mais velho passa aos outros os ensinamentos dos pais quando não estamos a olhar. Sempre me imaginei a dizer-lhes que dividam o lanche e a falar-lhes do avô Américo e da avó Norvinda, porque não há outros de quem falar. Sempre me imaginei a dançar com o meu bebé lá por casa, descalça e desgrenhada, e era quase palpável o modo como a sua gargalhada me haveria de estimular a alma à alegria e à acção. 
Agora não sei de nada. Há momentos em que, seja eu ou o cão preto a uivar de longe, me vem uma voz suspirada à têmpora: quem te dera.
E a certeza de que não.
Ao final da tarde, a partir da rua onde vou ficar nas próximas três noites, a cinco minutos a pé do Coliseu, tomei conhecimento de outra história desesperada de maternidade. Uma mulher jovem, bela, que admiro e cujo percurso de vida tenho acompanhado – ainda que à distância -, contou-me a respeito das dificuldades que teve. Primeiro em engravidar, depois em manter os bebés seguros no útero. O rol de noites mal dormidas, de pesadelos, de desconforto, até chegar ao ponto de não poder lavar o cabelo nem sequer tocar na barriga, e de ter de estar deitada sempre, excepto para ir à casa de banho, e de um duche ser para si um luxo. Conta os dias e as horas para que os bebés estejam fortes o suficiente para sair cá para fora, e entendi esse mundo de terror que ela está a viver. A maternidade é tanto luz quanto sombras, embora acredite que no final tudo valha a pena. É um sacrifício tremendo e difícil de imaginar se não tens os dedos certos entrelaçados nos teus.
Da última vez que estive em Roma, em 2013, tinha acabado de me apaixonar. Ainda não sabia que estava apaixonada. Talvez essa coisa volátil que é o encanto súbito dependa de um estímulo ou de um retorno. E eu tinha uns quantos olhares para acarinhar, mas também tinha 2000 km entre nós. 
Lembrava-me de como, ao despedir-se de mim, me chamou a um canto da feira, guiando-me pelo braço. E eu tinha o meu vestido azul às bolinhas e a gabardina verde. Como italiano, tinha que reparar nesses pormenores. Depois disse-me, em tom de confidência, que era uma pena não termos tido tempo para falar melhor. Se tivesse insinuado qualquer coisa que fosse, qualquer cintilação rapace no olhar que não afecto e respeito, nunca mais lhe teria dedicado um pensamento. Se tivesse retorcido os lábios num esgar tipo "ainda temos quinze minutos e o hotel é aqui ao lado", ter-se-iam varrido todos os preciosos momentos do nosso entendimento. E como sou exigente, e ao mesmo tempo arrumada. E como, para mim, amor é amor, encantamento é encantamento e sexo é sexo. E em como nenhuma destas águas se pode misturar com azeites, e para cada estádio há uma série de requisitos. Ele preenchia os do encantamento, quase a roçar os do amor, mas sabíamos que não o era e nunca fingimos. 
Não sabia, quando pedi a um português que me tirasse uma foto na Fontana di Trevi, que muito em breve estaria mergulhada até ao pescoço em areia movediça. Não sabia, quando olhei o Anjo da Paz na Basilica di Santa Maria degli Angeli e dei Martiri, que o anjo haveria de me amparar aí para me ir largar mais adiante, em queda livre.
E pensar que, enquanto dobrávamos a roupa nas malas, me disse: "Não, tu não gostavas de mim nessa altura. Quando entraste no táxi olhei para ti e nem sequer olhaste para trás". E eu "Olhei sim, e quando olhei tu não estavas a olhar". E não disse mais nada, apenas negou com a cabeça, como se desse desencontro de olhares se profetizasse o nosso futuro.
Olhando agora para trás, e tudo é mais claro com o tempo, talvez tenha de facto gostado de mim. E eu dei-lhe o que podia dar, e foi bonito. Foi bonito ter-lhe negado tantos beijos soprados no Skype, por achar o gesto ridículo, que, quando adormecemos lado a lado, lhos dei todos de seguida - "Não te mexas" (non ti muovere), uma dívida é uma dívida, ainda que o seja de beijos. E não te mexeste enquanto a paguei, contando-os um a um em italiano. E as tuas mãos em redor das minhas. 
E agora pensar nas nossas idades? Eu tinha vinte e três e ele vinte e sete. E eu achava-o tão homem, tão digno, tão seguro de si - perante as inseguranças que me eram óbvias. Sabia sempre tudo, sobre tudo. Em todas as situações me depositei nos seus braços, porque sabia bem onde tínhamos começado e onde íamos acabar. Estava segura, ainda que debruçada sobre o abismo. Mas agora tenho eu e as pessoas ao meu redor esses mesmos vinte e sete anos. E não sabemos nada. Ou sinto como se nada soubéssemos.
Tudo isso serviu para que eu saiba que é possível. Que a magia acontece. Que um dia, sem nada esperares, um homem admirável pode vir sentar-se diante de mim, enquanto fumo um cigarro, e dizer, com a mesma seriedade com que o disseste:
“Que acontece se o amor da tua vida abominar fumadores?”
Roma continua tão bonita como sempre. Mais ainda. Sinto-me meio tosca a passear por estas ruas. Quando dou por mim, estou a pensar que esta é a cidade mais linda que já vi. Mas também pensei isso de Veneza, e depois de Siena, e, de modo mais contido, de Florença. É a luz. Em Roma, é o modo como a luz dourada dança por entre moderno e antigo, monumental e ruína. A cidade é uma recordação presente e incontornável de como tudo acaba. Nada é eterno – nem o poder dos homens mais poderosos do globo os salvou da traição, da doença, da morte. Engraçado que a chamem de eterna, quando Roma é a mais primordial prova de que tudo termina. O terrorismo parece aqui uma ameaça mais real do que nas outras cidades por onde passei. O senhor que me faz o check-in pede-me o bilhete de identidade e explica que as autoridades andam em cima dos turistas, por medo dos terroristas. A Via dei Fori Imperiali virou pedonal, não circula um único carro entre o Coliseu e a Piazza di Venezia, pelo que as pessoas circulam no meio da estrada, a tirar fotos a todos os ângulos da paisagem. Porém há vários soldados de arma à anca, como que barricados em redor de carros militares. Não me lembro de Roma assim.
O quarto é confortável, o wifi funciona mas o computador obriga a quarenta e cinco minutos por acção. Entre abrir o word e conseguir que o blogger funcione, demora-me isso ou mais. Desde a 21:30 que estou a tentar que o word funcione, e são 23:00. O word bloqueia, o browser bloqueia, o actualizador bloqueia, o youtube não me dá o link para incorporar videos, etc. E limpei esta carcaça de virus há dois dias – estava pejado deles, apesar de ser novo, ter a memória 99% vazia e só ter sido utilizado pelas minhas irmãs em jogos e tretas tais. Se tivesse um machado, já o teria reduzido em cacos.
Amanhã em dia de trabalho em Roma. Não me ocorre uma melhor cidade para trabalhar à segunda-feira, por si só giornata non grata.

Il Viaggio in Rosa - Parte IX

Firenze

Hoje não fiz turismo nenhum. Acordei por volta das 11:00, porque ontem fiquei a ler até às três da manhã. Terminei “A Um Deus Desconhecido” e fiquei pasmada por nunca ter dedicado um pensamento, na minha vida, a John Steinbeck. O Hotel continua a ser mau, pelo que de manhã peguei na roupa que tinha para lavar e fui até uma lavandaria daquelas automáticas. Estive lá sentada uma hora, a dar os primeiros toques no “Não te Mexas” da Mazzantini, em italiano. E depois pensei em como, não há um ano atrás, teria contornado a questão da roupa por lavar… Vestiria outras coisas, seguramente. Agora, apesar de ainda ter outras peças à escolha, não posso conceber andar a passear roupa suja. Talvez porque seja eu, por fim, a responsável das lavagens dos meus trapos.
À hora de almoço fui ao mesmo restaurante, e o loirinho barbudo vestido de preto estava lá. Foi uma colega que me atendeu, pareceu-me muito jovem e tinha um sorriso amoroso. Não quis dar nas vistas, porque a verdade é que fui lá porque a comida era boa e a um preço óptimo, fica por baixo do meu hotel e, como hóspede, tenho desconto de 10%. Tentei ser o mais discreta possível, até deixar cair o garfo. Nessa altura tive de ir ao balcão pedir outro, e a rapariga sorridente ajudou-me a descobrir como se diz (forchetto? Já não me lembro). Como eu não sabia a palavra, ela disse-me que achava que eu era mesmo italiana, e perguntou-me de onde era. Disse-lhe que sou Portuguesa, e ela apontou para o rapaz e disse:
- Olha só, fala melhor italiano do que tu.
E eu aproveitei para perguntar se ele não era italiano.
- Não, é da Albânia.
E ele, que estava debruçado no interior da cozinha, olhou para mim e disse-lhe, com secura:
- Ela não sabe onde é a Albânia, não é?
E eu, ainda a sorrir, admiti que não, mas que sei que é para leste.
Já depois de me sentar, lembrei-me que a Madre Teresa é de lá. Terminei a refeição e fui ao balcão, mal sabendo que apanharia três albaneses a quem fazer a mesma pergunta.
“Como é vista a Madre Teresa no vosso país?”. O loirinho olhou-me nos olhos: estranho que seja tão translúcida a sua pele e tão claros os seus olhos. Não sei porque me espantou. Disse que não entendia o que eu estava a querer saber. Depois veio a rapariginha, que me disse que não sabe se a Madre Teresa é da Albânia, e que como veio de lá aos dois anos, mal ouviu falar dela. Por fim vem outro rapaz, também jovem, de cabelo preto e olhos escuros, que me olha no fundo da alma e vejo uma boa dose de desencanto nesse gesto, e diz:
- Se acredito na Madre Teresa? Acredito no meu pai, na minha mãe e na minha irmã.
E venho-me embora, satisfeita.

[Estou no Auditório da Cassa di Risparmio de Florença, na via Folco Portinari, sentada perante um órgão gigantesco e um piano de cauda reluzente, e oiço o tenor e a soprano a aquecer a voz na sala adjacente, para lá da cortina. Reconheço uma ária do Carmen, trauteada. Uma voz assim é um dom, mas também muito trabalho. E então ele vem – Giorgio Casciarri –, e canta de casaco de veludo vermelho e lenço de seda no bolso, o cabelo espesso e grisalho com risco ao meio a agitar-se a cada trejeito de cabeça. La dona è mobile. Entra a soprano, Elena Cavallo, que nem dez minutos antes estava com um casaco de malha e uns óculos de fundo de garrafa, vestida de cetim vermelho e cheia de jóias.
Acontece um fenómeno do qual já me tinha apercebido quando vi a La Traviata e a Madame Butterfly. É como se já conhecesse as volutas da música. Talvez me sejam tão íntimas porque surgem em anúncios e coisas tais. Ou talvez me lembre delas de outras andanças, porque o certo é que são como estender a mão no escuro para a maçaneta do meu quarto: sei exactamente onde vai estar. Quase entro em taquicardia a cada vez que as vozes se elevam. Receio que lhes falhe uma nota. A dada altura, enquanto soprano e tenor estão a tossicar atrás da cortina e o pianista nos entretém, o velhote da fila da frente começa a falar em tom elogioso da soprano "è una bella ragazza, una bella ragazza". Aposto que anda com um frasco de Viagra no bolso de dentro do casaco, para estar tão seguro de si perante os amigos.
Dou-me conta de que toda a gente dentro do pequeno auditório tem cabelos brancos. À minha excepção, todos têm mais de cinquenta anos. Na ária mais alegre da La Traviata, as senhoras da minha fila batem palmas silenciosas durante toda a cantoria. Vibram com isto. Na fila da frente está um italiano quase sem cabelo, mas que o tem pintado de preto e fraco na raíz. A seu lado está uma senhora que tropeçou e caiu de cara em manteiga de amendoim. Tem a cara cor de tijolo e os lábios rosa pálido. Ou é base ou fake tan levado ao extremo.
Sofro a cada vez que a soprano contém a voz, e depois quando a solta estremeço. Atinge agudos tão impossíveis que me chega a doer a cabeça. E terminam os dois com a O Sole Mio, para encanto dos espectadores.
Têm uma elegância em cada gesto que não se vê mais, por entre os jovens. Agora, além das calças de pintor, ouvem um reggaetton pesadíssimo no comboio. O som dos auriculares deles extravasa para os meus. Perdi os meus, a propósito. Ainda só perdi isso e um cabo USB: ontem um indiano tentou vender-me o cabo por 15€. Aproximei-me da banca dele na rua e estudei o cabo com interesse. Quando disparou o valor, pus-me a rir. Aquele cabo, novo, custa de 5,99€ a 9,99€, numa Fnac ou equivalente. Quando lhe disse para deixar estar, seguiu-me pela Porta Rossa a perguntar quanto eu queria pagar. Lascia perdere.
Por falar em ser roubada nos preços, além do champô a 6,94€, vi um pires a 306€. Bem discutido talvez me fizessem 300€. Cerâmica de Siena, sim senhor - até engoli em seco e de repente fiquei muito consciente da loiça que me rodeava naquele espaço exíguo, e de como tanto a minha mala como a máquina fotográfica ao ombro poderiam escaquear uma daquelas dispendiosas peças. Ontem paguei 10€ por uma fatia de pizza e uma coca-cola e, o pior, hoje, foi querer algo salgado e, depois de dar a volta ao quarteirão, entendi que só me restava a loja de waffles e gelados abertos àquela hora. Havia uns bolinhos sicilianos com recheio, chamados cannolli - pedi um desses. Larguei 6€ por uma espécie de éclair tão enjoativo que foi metade para o lixo. 
Faltam uns dias de trabalho em Roma, dois dias de lazer em Nápoles e estarei na minha casa. A primeira coisa que vou comer é sushi - nunca pensei, mas o meu corpo torce-se por um salmãozinho em soja. Mas isso será depois de sufocar um bocadinho a minha piccina gattina num abraço, que morro de saudades da minha mimadinha da dona.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Il Viaggio in Rosa - Parte VIII

Firenze

O quarto é tão mau (claustrofóbico, frio, sem internet) que assim que lá entro me vem o sono e a vontade de me aninhar debaixo dos cobertores. Tive de planear a hora do banho, não é que fosse uma questão de preguiça. Estavam aí 10 graus dentro daquele quarto, pelo que pensei que por volta da uma da tarde estariam reunidas as melhores condições para empreender a dura tarefa. Só a essa hora tive coragem de me despir e de ir a estremecer de frio para dentro daquela casa-de-banho pejada de janelas, por onde correntes de ar invadem o quarto com facilidade. Além de que estou numa espécie de anfiteatro e vejo todas as janelas dos vizinhos abertas sobre ela. Mas o ilustre director desta espelunca nem sequer se deu ao trabalho de garantir a privacidade dos seus hóspedes: não há persianas. Ou seja: este hotel falha em tudo o que um hotel deveria ser. Nada de conforto, privacidade. Só se salva a limpeza.

De manhã desci ao primeiro andar, à única sala onde há internet, para tomar o pequeno-almoço incluído na tarifa. O mesmo consistia de dois pães duros de pacote de supermercado, e um pacotinho de duas tostas. Duas manteigas, uma máquina de sumos e uma de cafés. De modo que pus na cabeça que ia descer e encher a barriga na pastelaria da esquina, que é também restaurante e chocolataria. Mas depois pensei: olha para ti, para a voz dentro da tua cabeça. A queixares-te do quarto, do frio, da comida. Ao menos há quarto, umas poucas paredes e comida. Se é gourmet, não é. Mas se há quem esteja pior? Com certeza. Esqueçamos a gula até à hora de almoço.

Fui à Galeria dell'Accademia, ver o pedaço de mármore com cinco metros de altura que o Michelangelo esculpiu no início do séc. XVI para a Piazza della Signoria, aqui em Florença. Parece que, quando a obra ficou terminada, os florentinos ficaram tão orgulhosos que de imediato os arredores se agitaram em tom de peregrinação, para vir vê-la. Não se sabe bem se a escultura representa um David pré ou pós vencer Golias. Apenas se sabe que tem o cenho carregado, pelo que se lhe atribui uma intelectualidade que, em última instância, foi a causa do seu sucesso. Li numa das placas em redor que, quando o trabalho foi terminado e veio à luz, os comissionadores de arte e público em geral entendido na arte clássica e neo-clássica, como estava em voga na época, escreveu que não valia a pena perderem tempo a ver outros trabalhos de escultura. Aquele suplantava-os todos. E assim continua a ser. Havia uma exposição temporária sobre pintura medieval na galeria, além da exposição permanente. Muita escultura e retábulos, muitas Madonnas e muitos meninos Jesus. Paguei 16,50€ para ver as veias da mão e do braço direito de David. E valeu a pena.

Depois corri a cidade à procura de um amaciador de cabelo. Tenho andado com tanta electricidade estática agarrada a mim que em tudo o que toco há intercâmbio de energias. Apanho choques no telemóvel, quando carrega, nos puxadores metálicos, nas portas dos táxis, nos interruptores dos candeeiros. E sem amaciador tenho de pentear o cabelo 350 vezes, em vez de 175, para que possa sair com ele à rua sem ofender ninguém, o que me põe mais cheia de electricidade ainda. Então entrei num indiano e li os preços dos amaciadores de supermercado - Fructis, Ultra Dolce (Suave em PT) e Pantene. O mais barato, de 200ml, era 6,00€. Ri-me para a prateleira e vim-me embora. Duas ruas adiante encontro o supermercado que me indicou a recepcionista do meu hotel. Fui pagar 94 cêntimos a mais pelo mesmo produto, mas desta vez sem rir - bastante séria até. Compro sempre amaciador em promoção, porque nunca o deixo acabar. Há pelo menos dois anos que não pagava mais de 1,65€ por um amaciador. Fiz questão de dize-lo ao tipo da caixa. No decorrer do dia encontrei outro supermercado, mais perto do hotel ainda, onde o amaciador custava 4,90. Ainda caro, mas fiquei com vontade de avisar a moça para não dar mais indicações parvas a ninguém. Minha rica Spar - em 2013 tinha até o cartão da Spar italiana. Ficou em casa, juntamente com o cartão de saúde europeu e o cartão da maior rede de livrarias deles, que também fiz no ano do Senhor de 2013.

Vantagens de o hotel ser tão mau: estou sempre na rua. Almocei no restaurante da esquina (o que também é chocolataria) e provei pappardelle al cinghiale, isto é, massa com um refogado de javali e tomate. Sempre acompanhado de vinho tinto, pelo qual se paga no mínimo 5,00€  o copo. E o moço, que era bem parecido, loiro, barbudo e com uma certa ternura no olhar e nos gestos, a perguntar-me se queria Chianti. Por um instante, as palavras não ganho para beber Chianti quase me escaparam dos lábios. Depois pensei que o pior do meu dia já tinha passado - isto é, tinha acabado de tomar banho no túmulo que é a casa de banho do meu quarto, e devo ter-me demorado pelo menos quarenta minutos debaixo de água. Ao menos saía quente do cano, o que foi uma surpresa num sítio pelo qual não dou nada.
O amor (quase, porque não é amor) espreita a cada esquina. Os homens arriscam sempre que vêem uma mulher sozinha. Insinuam-se, tal e qual pavões. Ontem à noite, num café, um passarinhou ao meu redor. Veio trazer-me primeiro a pizza. Depois o guardanapo. Depois a coca-cola. Depois a palhinha. Depois um papelinho com a password do wifi. No papelinho demorou-se, só o largando quando levantei os olhos para ele. Por fim veio perguntar se faltava algo. Mexia-se de um modo tão teatral, sacudindo o cabelo e balançando as mãos, que pensei, sem sombra de dúvida, que este homem é homossexual mas ainda não o sabe. Quiçá saiba, mas talvez não seja tão fácil ser-se gay num país em que até a terceira idade te pisca o olho. Encenou o quebra-nozes no espaço entre a cristaleira e o balcão, e tanto dançou que quando o café esvaziou o patrão o mandou para o primeiro andar, arrumar as mesas para amanhã.
Os homens para os quais eu olho são sempre aqueles que, ou são tímidos, ou nem se detém. Geralmente têm uma aura de controlo ao redor, movem-se no seu espaço com confiança, sem trejeitos que denunciem insegurança ou desiquilíbrio. Não se atiram a mulheres – acho isso asqueroso. Nada de bom pode advir disso; talvez tenha de me sentir única. E esses homens fazem-te sentir mais uma ainda antes de te sorrirem pela primeira vez, porque já te seguiram os passos desde que bateste com a porta e o vento entrou contigo.
No restaurante onde almocei, por serem três da tarde, estava sozinha com outra italiana. A outra era mais velha e não entendia nada do telemóvel, pelo que ele, vestido de preto inclusive no avental, se inclinou para a conectar à internet. A mesa dela era mesmo em frente à minha, e de repente começa bossa nova. Oh, porque tudo é tão triste… E eu paro um momento, contenho um sorriso mas os meus olhos já tinham reconhecido as notas. Já me sentia um bocado em casa, porque não estava à espera de ouvir português ali. Mas nesses instantes em que ergo a sobrancelha e com os olhos prenhes de surpresa, ele olha para mim e eu para ele. E dura um instante mais do que o necessário, pelo que coro. Já não tenho idade para corar. Além disso ele é mais novo – e eu ando especialmente consciente da idade. Não lhe consigo olhar mais para a cara. Sempre que me pergunta se está tudo bem refugio-me no javali e na massa e no copo de vinho. Se não fosse o incidente do olhar indiscreto e poderia ficar ali mais um bocado, o restaurante é bonito e a italiana come massa com uma elegância nunca vista, enquanto eu calculava sempre mal a quantidade de massa que me cabe na boa e ia sentindo o molho pingar para o colo.
Mas tenho de ir, pelo que peço para pagar com cartão. Os dedos dele e os meus demoram-se na máquina, ambos quentes, e quase me desmancho numa gargalhada, porque me parece tão fácil. Não digo chegar ao âmago da pessoa, mas conhecer uma pessoa. Não digo despir a pessoa do que a torna consumível para a sociedade, mas dar um primeiro passo, um primeiro passeio, uma primeira troca de gostos pessoais. E quem sabe onde isso leva. Mas eu não deixo, nunca deixo. E nesse momento entendo que, quando as circunstâncias forem mais favoráveis, vou deixar. Está na hora de deixar, e com o tempo não brinco.
Vou à casa de banho ajeitar o gorro que comprei de manhã e olho-me. Não usei maquilhagem um dia que fosse, mas tenho dado um jeito ao cabelo, para evitar ter de lavá-lo diariamente. Está demasiado frio e electricidade estática no ar para isso. Ainda bem – penso, aliviada – ainda bem que ganhei forças para tomar aquele banho naquele quarto gelado antes de almoço, e ainda bem que ajeitei o cabelo, porque enquanto comia e lhe mexia desprendia-se o cheiro da baunilha e da alperce. E nunca se sabe quando podes conhecer o pai dos teus filhos.
Li mais um pouco, depois de almoço. Estou a adorar Steinbeck, impressiona-me a sua solenidade, o toque de feminilidade por entre homens tão robustos. Cito a passagem abaixo, que fala do único tipo de amor a um homem que conheço:
“ - Ignoro se há homens nascidos fora da Humanidade, ou se alguns deles são tão humanos que fazem os outros parecer irreais. Talvez uma divindade venha viver para a Terra, de vez em quando. O Joseph possui força sob uma visão confusa, tem a calma das montanhas e as suas emoções são tão selvagens, ferozes e vivas como os relâmpagos, e tão destituídas de racionalidade quanto eu me possa ter apercebido. Quando estiveres longe dele, tenta pensar nele e verás o que quero dizer com isto. A sua figura crescerá até se tornar enorme, até ser maior que as montanhas, e a sua força parecer-te-á o irresistível impulso do vento. O Benjy morreu. Não se consegue conceber o Joseph a morrer. Ele é eterno (…) Garanto-te que esse homem não é um homem, a não ser que seja todos os homens, e também toda a alegria e sofrimento, anulando-se um ao outro e mantendo-se, contudo, presentes.
(…) Os seus olhos baixaram e não largou a rapariga.
- Tu amas o meu marido – afirmou, em voz baixa e acusadora. – Tens-lhe amor, mas tens medo.”
De tarde saí, decidi que ia ver a exposição do Klimt e, de caminho, encontrei um cartaz a prometer um concerto com as mais belas árias da ópera para amanhã. Se conseguir bilhete, estarei presente. Fui até ao Auditório e disseram que tem de ser adquirido na hora.  É uma sala pequena. Também aí quase conheci outra pessoa, fosse esta a minha cidade. Estava ao cimo das escadas, hesitante em entrar e em fazer as mesmas perguntas que disparei à senhora que nos veio receber. Entramos juntos e ela fala a olhar ora para um, ora para outro. A dado momento o rapaz começa a sorrir para mim. Traz uma mochila no braço e aproveita-se das minhas respostas. Nunca lhe ouvi a voz, mas quando as explicações dela terminam, ele continua parado, como se agora nos virássemos um para o outro e ele dissesse: muito bem, que tal? Amanhã vimos? Rodo nos calcanhares e saio dali, fechando a porta atrás de mim antes que ele tenha tempo de se acercar dela e eu tenha de segurá-la para ele, como ele fez para mim, à entrada. Amanhã quem sabe o veja no concerto, mas é outro rapaz mais novo e eu não sou daqui. Será que estou a entrar num ciclo em que as almas solitárias encontram um caminho até à minha? Tenho de estar atenta.
A “Experiência Klimt” foi uma projecção dos quadros do artista austríaco que fez sucesso no início do século XX, portanto na Art Nouveau, no modernismo, no fechar da porta à Belle Époque. A acompanhar as suas mulheres – pensando nisso, pouco explorou a figura masculina – estalava a banda sonora. Distingui Beethovan, Carmina Murana, Strauss, Bach. Há uma imposição da maternidade e do que esse poder confere à mulher nos retratos do artista. Nunca vi bochechas ou auréolas mamárias com colorações mais enternecedoras.
E agora aqui estou, na sala gelada do pequeno-almoço, às escuras, com a sombra do piano vertical ao canto e todos os sentidos alerta, debruçada sobre a rua, onde os italianos ainda passam, ainda gritam, ainda festejam.
E não tenho dúvidas de onde vou almoçar amanhã.
Parte VIII

Siena - Firenze

Sentada na Piazza del Campo, pouso pela primeira vez os olhos em "A Um Deus Desconhecido", de Steinbeck. Sinto-me tão bem, tão em paz... Por um instante abraço tudo o que tenho junto ao peito, destacando-lhe a juventude e uma saúde quase (quase) em equilíbrio. Itália está a devolver-me a luz, a felicidade, um pouco da barriga e uma paz imensa. O sol de inverno sustém-se em mim e dou-me conta de ser o que já me disseram que sou tantas vezes: uma alma velha a valer-se da energia de alguém jovem. Pergunto-me se, nesta praça, não haverá quem se tenha cruzado comigo noutra existência. Recordo-me de como apreciei o sol de setembro na escadaria de Santiago de Compostela, sentindo-me como me sinto agora, e que veio aquele senhor ter comigo. Ou fomos um ter com o outro. E ele tirou a pulseira com a concha do caminho do apóstolo e deu-ma.  Não tive qualquer dúvida de que já nos conhecíamos de outras épocas. Então, de imediato, sem me dar sequer hipótese de voltar a concentrar-me no livro, ao menos para disfarçar, um cachorrinho capta a minha atenção. Atravessa a praça suspenso da trela, impaciente, de nariz colado ao chão. Traz a dona a reboque. Passa mesmo ao meu lado, só tenho que dizer "ciao" e atira-se para os meus braços. Lambe-me a face toda, roça a cabeça na minha mão. Tudo num ápice, que a sua juventude não lhe permite que se detenha. Pergunto como se chama a cadelinha, que me diz ter três meses. Quando ma apresenta, fico a rir a vê-la ir-se embora. Lembrou-me que nem só por humanos viajam os espíritos. Arriverderci, Hillary.
Decido comer alguma coisa antes de ir para a estação, pelo que quando dou por mim tenho a boca cheia de queijo. O queijo cremoso de Bergamo, cujo nome nunca descortinei, com bolor azulado nas extremidades. Mozzarella, parmesão, brie, riccotta. A cada novo prato um novo queijo, e penso nisso enquanto saboreio a massa de um ciaccino, e entendo que, apesar de o tomate ser fresquíssimo, bem como a rúcula e o brie, estou outra vez a deixar cair no colo pedaços de queijo. Comi mais queijo em sete dias do que na minha vida toda. Sou mais a miúda da massa do que do recheio, e isso herdei da avó, que come o rebordo da pizza e diz que os molhos lhe fazem mal. Talvez façam, ela queixou-se várias vezes e nunca a ouvimos.
O último perfume que me acaricia, em Siena, é o de pêras. Pêras firmes e farinhentas. Tão intenso e exigente que por instantes fico desalentada, ciente de que não faço ideia de como deitar mão a uma pêra nesse momento. Penso que, se tivesse uma filha e a pudesse chamar Siena, não hesitaria. Mas a mais velha, como manda a tradição que me impus desde os dezasseis anos, chamar-se-á Eva. Tutto questo averrà, me lo prometto. Espero não sair tão defraudada da vida quanto a Cio-Cio-san.
No comboio prossigo a leitura. Foi-me oferecido pelo meu patrão, e pela data que lhe imprimi a 07/12/15, demorou-me um ano a abri-lo. Pergunto o que leva alguém a escolher certeiramente um livro para oferecer a outrem. A verdade é que há religiosidade em mim, embora não nenhuma das óbvias, e ao fim de duas páginas estou rendida. E este livro está prenhe de diferentes religiosidades.
Chego a Florença e com isso despacho as primeiras cento e vinte páginas do livro. Pelo caminho admiro também a paisagem da Toscana, e os ciprestes (cipressi), os campanários, os campos cultivados. Oiço Noemi a cantar "Sono solo parole", e entendo que cada canção italiana que conheço está a ter um efeito curativo e vem no momento certo. Deixo-a dizer-me que a passagem do tempo acaba por clarificar tudo. Recosto-me e chego tranquila a Santa Maria Novella. Esqueci-me, uma vez mais ao longo do dia, que é feriado. Como o hotel é a 600m da estação e a dois passos do (único, gigantesco, visceral, magnifico - no sentido florentino) Duomo, não faz sentido chamar um taxi. Faço os dois malões galgar as pedras acidentadas do piso, atropelo umas quantas pernas e finto os turistas que param para fotografar, e o coração dá uma pirueta quando revê os veios de mármore de Santa Maria del Fiore. Até aí estava plenamente feliz, mais ainda que o hotel seja a dois passos da catedral, e tenha uma varanda ímpar para a laboriosa cúpula do Brunelleschi, mas depois chego ao hotel e é um buraco. Não sou muito exigente. O meu quartinho em Siena, que me fez sentir em casa por causa da secretária, do telefone e da colcha da cama, para além daquela vista libertadora, não agradaria à maioria dos turistas a cujo conforto atendo. Mas este hotel é medonho. A vista da minha janela é para um pátio interior, mal me posso mexer, a cama é de criança, não há internet no quarto mas, o que me desolou: não há secretária nem mesinha. Vim aqui para escrever. Onde vou pousar o raio do computador?
Adormeço no quartinho claustrofóbico, depois de me oferecer para pagar um suplemento e mudar para um melhor. Esqueci-me de novo que é feriado; o hotel está cheio e das ruas vem o ruído do respirar colectivo. No can do.
Deitei-me vestida, porque o quarto é gelado e o espaço tão exíguo que não tive coragem de abrir ainda as malas. Acordei estremunhada, a sonhar que era pequena, molhava os lençóis e me ralhavam.
Pelo silêncio lá fora, julguei que fosse madrugada. Mas não, eram 21:30 e eu só pensava em comer.
Vesti o casaco à pressa, vi que estava de cabelo revirado e bochechas coradas do calor dos lençóis, olhos muito abertos por querer forçá-los ao despertar, mas saí mesmo assim, a cambalear.
Aprendi mais da geografia de Florença em uma hora sozinha, do que em dois dias acompanhada. Claro que é bom tirar fotos com os amigos, rir com os amigos, vê-los irem contra a montra da Zara, julgando que é a porta automática, enquanto assistes de fora e explodes em gargalhadas. Mas sozinha e sem qualquer mapa ou orientação, sem tomar atenção a placas ou ao google maps (estou praticamente sem internet até domingo), voltei à Piazza del Duomo. Sozinha, entendi a grandeza de aquela monumentalidade ser revestida em mármore. Contemplei os rendilhados na pedra branca, os nichos em delicado mármore rosa e a solidez do mármore verde a cruzá-lo na horizontal. Está um frio de rachar, pelo que foi a primeira vez que tremi de frio na rua. Preciso de um gorro, não trouxe nenhum.
Desemboquei na Piazza Signoria e vi a réplica do David de Michelangelo à porta do Palazzo. Como estou sozinha tomo atenção à numenclatura e olho para trás, a fim de tirar fotografias mentais ao sítio de onde vim. Está tão pouca gente na rua, comparativamente ao borburinho de há quatro horas, com tambores e cantorias, que sou um dos poucos gatos pingados a passar sob as galerias dos Gli Uffizi. Deito um olhar ao corredor Vasari, que os liga ao Palazzo por onde passei. Decido logo ali que vou lá de novo, ainda que o bilhete seja 16,50€, já tenha ido e esteja em contenção de custos. Lembro-me de como, aos dezasseis anos, acarinhava o sonho de trabalhar como guia neste museu específico, e em nenhum outro. Decidi que amanhã só como um panino, se tiver de ser. O importante é que a alma se alimente de arte.
Vejo Lorenzo o Magnífico e outras tantas personalidades ilustres nos nichos da galeria, com os nomes cinzelados aos pés. Vespucci, Petrarca, etc. Não se pode caminhar nestas ruas sem golpes de cultura a bafejar-nos a nuca.
E chego ao Arno, de onde se vê a Ponte Vecchio. Da última vez que aqui estive, por impossibilidades de internet, não pude ouvir a "O mio babbino caro", do meu adorado Puccini, enquanto a contemplava, como queria. Desta vez já chego a ouvi-la, na voz da Maria Callas. A ponte agita-se à minha chegada - vira azul, terracota, depois enche-se das cores do arco-íris e depois ainda de estrelas. Sinto que me cumprimenta. A acompanhar as projecções de luz na ponte - celebrações natalícias ou do feriado, talvez - estão as notas de um piano indistinto. Desligo a minha música e deixo que o universo me diga o que devo ouvir. Afinal, nada acontece como imaginámos. É Ludovico Einaudi, e por outra vez sei que estou onde tenho de estar.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Il Viaggio in Rosa - Parte VII

Parte VII

Siena

Porque 7 é um número místico, o dia foi consagrado à beleza incontornável da arte, foi também um dia de grandes reflexões. Ontem à noite cheguei a uma difícil conclusão – não entendo porque me soa tão estranho, e ao mesmo tempo tão natural. Nunca me senti atraída por uma mulher, embora sempre tenha dito que um dia isso poderia vir a acontecer. A minha frase é “o amor não é uma coisa de género, mas de alma”. Ainda que a alma esteja encarcerada num corpo, creio que te prendes à alma. Claro que o corpo tem algum dizer nisso, mas na minha opinião não tem de ser limitador de ligações. Engraçado que seja Itália a mostrar-me estas coisas, que se calhar sempre estiveram em mim e só agora vi. Depois de ontem ter sofrido a subir e descer escadas com os malões perante a inutilidade do sexo masculino – posso estar a ser um pouco injusta aqui -, entendi que as pessoas mais fantásticas que conheço são mulheres. Entendi que a maior força está dentro das mulheres. Que quando a mulher chega a algum lado é porque lutou mais. Que quando a mulher se preocupa com o mundo, além de que com a casa, é excepcional, mas é também quase natural. Que quando dói à mulher, dói mais e mais silenciosamente. Quando a mulher faz mil e uma coisas, e uma milésima segunda coisa ainda, deve ser aplaudida. E só as mulheres podem aplaudi-la. De algum modo, algures entre vestir o pijama e lavar os dentes, olhei para mim ao espelho e entendi: é possível que um dia me apaixone por uma mulher. Não estou nem a pensar no corpo, estou a pensar em tudo o resto. Houve uma mulher em particular que me trouxe essas ideias, a de que preciso de alguém que cintile a meu lado, e ela era jovem, interessada das coisas do mundo, falava línguas diferentes, o cabelo goza de suprema liberdade e o queixo empertiga-se quando sorri. Depois veio a dúvida: mas e a família, que é tudo o que quero da vida? E com a pessoa certa (seja mulher, homem, índio, paraplégico ou autista, anão ou gigante, engenheiro ou artista e circo) não há como não se ter uma família. Então assustei-me, porque me pareceu tão verdade e tão claro, e perguntei-me quantas mulheres admirei, e quantas dessas, se usassem calças e tivessem barba, teriam sido para mim um homem digno de me ver perder a cabeça. E entendo que se me mantiver nesta linha (a quadrada) quem sabe o amor e a família não me passem várias vezes ao lado na vida, sem que eu saiba. Lesbicismo à parte, a parte intelectual conta muito, e tenho-me cruzado com mulheres admiráveis. Mas entendi que o que tanto acarinhei num grande amor, por ser tão sólido nele e tão raro nos homens de agora, é tão airoso e tão recorrente nas mulheres que vou conhecendo. O confronto não seria o mesmo, embora a capitulação mudasse?
Voltando ao lado simples das coisas: hoje estive perante Bernini e Donattello. Tudo na maravilhosa e única catedral de Siena. Cheguei-me à bilheteira e vi que o bilhete geral (para maiores de 26 anos, bolas, passei do prazo há uns dias!) custava 8€. Havia uma série de dependências a acrescentar, entre elas uma livraria, “A Porta do Céu”, um baptistério e o museu da catedral. Pedi apenas bilhete para a catedral, em italiano como sempre. A senhora mal me olhou. Pediu-me 2€ e vi que a livraria estava incluída. Não entendi porquê, porque mesmo o desconto para jovens daria em 4€. Só se paguei como estudante. Não pensei muito nisso: saí dali a sorrir e a pensar que o universo tem modos estranhos de fazer circular os favores. Quem sabe os 6€ que poupei aqui não tivessem destinados ao pequeno-almoço do mendigo de domingo? Quem sabe tivesse eu virado as costas ao homem e hoje pagaria 8€ como era devido? Nunca se saberá, mas é mais reconfortante pensar assim. Fui a sorrir toda contente, porque estou a três anos dos trinta mas ainda me acham uma estudante com direito a desconto sem pedirem a identificação.
O Duomo de Siena é uma obra do século XIV (espero não me enganar, lembrai-vos que isto é escrita de memória e de opinião, e não um tratado jornalístico), e o próprio chão foi ali posto entre 1300 e qualquer coisa e 1500 e qualquer coisa. A cada passo pensei: este chão tem mais de quinhentos anos. Doeu-me o pescoço de tanto que admirei o tecto. É azul, pleno de estrelas pintadas de dourado. Em torno da nave principal e do altar principal há uma série de cabeças debruadas na pedra a olhar-nos cá para baixo com os olhos e a boca meio esbugalhados. Pensei “serás julgado”. E não tenho dúvidas que sim. Os católicos dizem que é Deus que julga. Há quem lhe chame karma. Estou certa de que há um cordão que nos une e que circula, faz ajustes de contas. Chamem-lhe como quiserem.
Fui admirar o São João Baptista do Donattello, em bronze, à esquerda no transepto. Várias vezes me perguntei: como se dá valor a um artista? Como se eleva Donattello acima de todos os outros que também esculpiram estátuas com o seu cinzel? É a energia. Entra-se na capela e seja a organização do espaço seja a excelência da obra atrai a vista para as formas da estátua. É evidente que se está perante uma coisa de maior. Tudo se dissipa perante isso. Não vale a pena discutir. Quanto a Bernini, no lado direito do transepto, esculpiu em mármore. Esculpiu a Praça de São Pedro, e é isso que vejo naquela estátua. Melhor é o sol a brilhar no centro da abóbada, rodeado de azul.
Quando terminou a volta à igreja, quase deserta de turistas, dirigi-me à livraria Piccolomini e fiquei de queixo caído. Tão esmagadora quanto a Capela Sistina, embora em menor escala. Falta o brilho do génio, mas todas as cores se encontram lá, bem conservadas e a cintilar. Sentei-me um bom bocado a admirá-la, e depois continuei a passear pela cidade.
Consegui comprar o Não te movas, da Mazzantini. Amanhã tenho comboio para Florença, espero começar a lê-lo e entender alguma coisa.
Tive uma conversa franca com um novo amigo. Falámos de auto-estima, de ser-se feliz sozinho. Diz que nunca viajou sozinho. Não consegue ir ao cinema sozinho. Eu não estou a fazer-me de forte ou de digna quando digo que sou feliz sozinha. Não é fácil libertarmo-nos dos outros. Não é fácil irmos ver o filme que queremos quando os outros amigos querem ir ver outro. Não é fácil irmos para um destino de férias quando os amigos querem ir para outro. Ou ler um livro quando os amigos querem ir sair. Ou escrever um livro quando os amigos te convidam para a praia. Ou comer bacalhau com natas na noite de Natal quando a avó sempre fez bacalhau cozido. Gerir isso faz parte da vida em sociedade, e nem sempre a sós nem sempre acompanhado é o segredo para a vida em pleno. O concerto de Scorpions com os amigos, a Madame Butterfly sozinha. Eu sozinha numa sala de cinema a ver um filme cor de rosa, enquanto a amiga igualmente habituada a estar sozinha via ficção científica noutra. E por muito que precisemos uns dos outros, e sejamos criaturas sociáveis por natureza, acho que a sociedade do século XXI está muito afastada de si mesma. A solidão é vista como um risco, uma doença. Coitadinha da pessoa que almoça sozinha e ao seu ritmo, e que pede o que quer sem pensar que terá de dividir a conta ou que terá de esconder que comeu o triplo do que se prestaria a comer à frente de alguém. Coitadinha da pessoa que viaja para onde quer, que se ouve a si próprio, que caminha sem pressas porque só tem de se preocupar com as suas necessidades, e que numa cidade medieval como Siena vira para a viela que mais lhe atrai os sentidos.  Seria trágico se a pessoa precisasse de outros para cultivar a sua própria natureza. Os amigos podem ter interesses em comum, mas não são decalques da nossa vontade. Das nossas aspirações.
Há um tempo para se estar com esses amigos, ou com a outra pessoa. Mas e o tempo para nós próprios? Para nos sentarmos a analisar os outros? Nunca teria conhecido a estudante de literatura se estivesse com os meus amigos, porque iria focada neles. Nunca teria passado o meu aniversário sozinha em Veneza e a sentir lágrimas nos olhos de tanta emoção, porque teria ficado na cidade de sempre na esperança de um telefonema, um beijo e um abraço. De que adianta o espectáculo se sabemos perfeitamente quem está lá para nós? Quebrar-nos-ia a relação irmos para salas de cinema diferentes e sairmos juntos à mesma hora, cada um a comentar o seu filme? Já fiz isso e foi libertador. Quebrar-nos-ia sair do que é o nosso papel num grupo e ir descobrir o que somos nós para o estranho que se senta no banco da frente do comboio? Como nos apresentamos? O que é importante mencionar e o que preferimos omitir? Isso faz de nós o que somos agora, e não o que nos moldámos para ser perante as pessoas de sempre. O que me assusta é que tudo isto que vivi, tudo o que foi investimento meu em mim própria – dos livros lidos aos escritos, às horas na biblioteca, a estas férias em Itália quando podia estar a embarcar para Portugal em dois dias, para ir beber café ao sítio de sempre e ser a mesma de sempre – uma estranha, uma companheira de gargalhadas, uma indesejável, uma confidente, uma inconveniente, uma pessoa que escreve coisas, uma melhor amiga, uma miúda com voz de desenho animado, a gaja que queria que me deixasse em paz mas não desgruda, a miúda que entende um bocado de História, a que voltou agora de Itália -, é que perfeito seria que encontrasse, quando a hora chegar, porque a hora há-de chegar, alguém que tivesse vivido tão livre quanto eu, para daí podermos entrelaçar-nos respeitando a liberdade do outro. Que teria para dar se nunca me tivesse sentado num restaurante sozinha? Se nunca tivesse feito algo só porque me apraz, ou se só fosse para o ginásio se tivesse lá algum amigo? Aconselho toda a gente a procurar-se a si própria – o ginásio que lhe dá jeito, e não aquele onde o amigo já é sócio. A sair sozinho, de olhar atento. A descobrir se gosta mesmo do bar para onde o arrastam todas as sextas. Da cor que os colegas de casa escolheram para a parede da sala – uma mais pequena, mais afastada do centro, mas lilás, não será melhor? Se gosta mesmo do restaurante que os colegas escolhem para irem almoçar. Se gosta mesmo da alcunha que lhe dão, se é mesmo isso que dizem que é. Se realmente quer dormir com aquela pessoa, a única que está disponível e que não move um dedo na sua direcção, que nunca responde quando precisa de uma palavra de amistoso conselho ou que nas horas que selam o seu entendimento se recosta para trás e fica a observar enquanto tens de encarnar tu o papel de sedutor e nunca, nem por uma vez, o de seduzido. Será que tem de ser crónica a minha incapacidade de me impressionar com as pessoas, e a minha previsão raio-x de que a pessoa não está à altura dos desafios não estará deslocada? Ou não será perpetuada por essa busca obsessiva que todos têm uns dos outros? Ultimamente tenho visto pessoas habitualmente dignas a arrastarem-se por ter alguém. Usou-se a palavra “desespero” na descrição. Não quero que esse venha a ser o meu retrato: quero que as viagens e os livros me valham sempre.
É preciso alguém que esteja no café se quisermos sair para conversar. Mas não é preciso alguém no café se quisermos sair para beber o café e respirar a estação.
Aborrece-me que o médico de família, que afinal é psiquiatra mas não teve equivalência no nosso país, me tenha olhado nos olhos e dito: “Falta alguma coisa na sua vida. Você sabe o que é, mas não quer admitir. E é isso que a mete doente”. Não é companhia, que me falta. É amor – e a minha definição de amor haveria sempre de incluir uma boa dose de liberdade e de vontade própria. Falta-me viver tudo isto e depois ir dar ao mesmo troço do caminho-de-ferro com aquela pessoa excepcional que tem sido livre, ou que começará a ser a partir de amanhã, e que se baterá tanto quanto eu pelo direito a fazer as coisas à sua maneira, e por estar onde quer estar.

E com isto tenho de ir a cada dez minutos à janela, porque se ouvem risos, gritos, estrondos e vozes exaltadas na rua. Vou vendo se já se mataram ou se continuam a celebrar a vida, os malucos dos italianos lá em baixo…

Il Viaggio in Rosa - Parte VI

Rimini – Bologna Centrale – Siena
Siena

“Bologna Centrale” vem como etapa porque é uma estação de comboio que mais parece um aeroporto com pelo menos cinco andares subterrâneos. Havia uma série de pessoas de aspecto suspeito a oferecerem-se para me ajudar com as malas, ou a repetirem números de linhas como se fossem papagaios. “É para o 16-19? É? Para o 16-19? Quer uma mão com as malas?”, e suspeito que ganham gorjetas com isso. No comboio Rimini-Bologna conheci uma estudante de literatura. Fomos o caminho todo a falar de Pessoa e de Saramago e de Calvino e de Tabucchi. A dado momento comentei que a achava muito jovem, porque as italianas usam imensa maquilhagem. Acho que as espanholas ainda se esmeram mais, mas as italianas fica pouco atrás. Nos comboios cruzo-me com toda a gente, e muitas delas mal se lhes vê a íris por detrás da cortina de pestanas ensopadas em rímel. Afinal tem vinte e quatro anos, não é assim tão mais nova que eu. Tem a cara limpa e foi a casa (em Pádua) para votar. Há um referendo para se aplicar algumas alterações na constituição italiana e ela foi responsável o suficiente para se deslocar até casa e votar. Estava de regresso a Bolonha.
Em todos os comboios vejo imensos jovens juntos, a estudar e a sublinhar frases nos seus apontamentos. Os rapazes vestem-se como aquilo que consigo apenas classificar de pintores (de paredes, com as manchas e tudo, mas sem a dignidade da profissão). Calças de algodão, largas. Se passearmos o olhar inadvertidamente pela carruagem, vê-se-lhes os bóxers com facilidade. Todos usam penteados a preceito, rapado aqui, modelado a cera ou a gel ali. As parkas são quase todas da mesma marca. North Wind qualquer coisa, acho. Os ténis também têm o seu esplendor, mas é nos telemóveis que menos se vê o sinal da crise. Ainda só vi de iPhone 6 para cima nas mãos deles. Não consigo acompanhar, acabei de comprar um iPhone 5. Sou a única pessoa que trabalha em muitas daquelas carruagens, e curioso que seja a única que não tenha meios para ter esses apetrechos tecnológicos. Nem um iPad, que gostaria de ter para poder ler – quem me dera ter e-books aqui! Ao invés entro em todas as livrarias à procura do “Non ti muovere” da Margaret Mazzantini e não o encontro. Foi a estudante de literatura que mo aconselhou, e lembro-me de o ter na lista de “a ler”.
Dizia eu que a conheci na fila da estação para o balcão da Trenitalia. Encetámos conversa com facilidade. Uma queixou-se de a fila não andar. A outra contrapôs algo, a outra sobrepôs outra coisa,  e quando demos por nós caminhávamos lado a lado em direcção à mesma linha para apanhar o mesmo comboio, e ela dava-me inclusive uma mão com as malas. A percorrer as carruagens, foi óbvio que nos sentaríamos lado a lado, ficou subentendido. Achei engraçado que seja tão fácil para nós – europeus do sul, portugueses e italianos – dar-nos. Ali fomos, durante hora e meia, a tagarelar sobre tudo. Viagens, livros, bacalhau, estudos, propinas, literatura, política, a minha língua e a língua dela, em que comunicámos sempre. Falar italiano permite-me isto, e permite também que entenda de que falam os italianos. Sobretudo comida, engraçado. Sentam-se no restaurante a falar de comida. Do que comeram, do que vão comer e do que mais gostaram de comer na vida, e como o prepara a avó. À entrada de uma carruagem, ouvi um italiano para duas raparigas:
“São de onde?”, e uma delas responde, rápido: “estou noiva”. E ele debanda dali, à procura de uma que esteja menos comprometida.
Tudo isto me faz rir. Outra coisa interessante é o conteúdo das livrarias. Há os clássicos, as narrativas do momento (A Rapariga do Comboio, Toda a Luz que não Podemos Ver, Harry Potter, o último volume da trilogia do Carlos Ruiz Zafrón, um cuja autora não me lembro mas que se chama, traduzindo literalmente, “A neve há-de proteger-nos”). Encontro Pessoa sem dificuldade, mas não se encontra quase nada em inglês - o que há são os clássicos da Penguin, o Eat, Pray, Love, os livros do Dan Brown e do Stephen King. Quase tudo são livros cor-de-rosa e ligeiros - o amor isto, o amor aquilo. Traçará isto todo o perfil de uma cultura?
Muitas pessoas das minhas andanças livrescas morreriam de ressaca nestas livrarias. Não há nada ou quase nada dos romances históricos cor-de-rosa ou dos eróticos que em Portugal tanto sucesso fazem. Vê-se o Fifty Shades of Grey, claro, mas na edição inglesa. Parece que a edição italiana não teve grande impacto. Será porque a sensualidade é outra coisa para os italianos? Depois vê-se Marina Fiorato e Sylvia Day, mas mesmo os destas que estão pelas prateleiras são poucos e não me parece que gozem de grande saída ou destaque. Não reconheço nenhum título.
Da minha parte, leio as sinopses dos livros do Calvino, folheio o Afirma Pereira, do Tabucchi, que li enquanto estudava italiano, e encontro o Venuto al Mondo da Mazzantini, mas não o Não te Mexas. Entendo que vou ter de o comprar em italiano, quando o encontrar, e tentar ler. Vamos ver no que dá.
Eu e a estudante de literatura – é mais engraçado chamá-la assim -, despedimo-nos em Bolonha e arranco para o meu “binário”, onde me espera o comboio para Florença, e daí tenho um regional para Siena. No Frecciarossa para Florença vou meio a dormitar, apenas ganhando algum alento quando leio, no ecrã exposto aos viajantes “estamos a viajar a 285km/hora”. Não admira que sejam nem trinta minutos de Bologna Centrale a Santa Maria Novella.
Com dificuldade arrasto as malas pela estação de Florença até ao sítio de onde parte o meu regional, com paragem em todas as estações. Preparo-me para uma hora e meia de babanço contra a janela, posto que acabei de ler Viagem ao Coração dos Pássaros e que, apesar de ter aberto os dois malões na estação em Bolonha, não encontrei A Um Deus Desconhecido, do Steinbeck, que é o último livro que trouxe para ler, porque os outros três foram despachados em cinco dias. Mas aqui nada acontece por acaso, por isso a meu lado vem sentar-se um casal que fala um inglês aberto e límpido. Começo a roer-me de curiosidade. Não são britânicos, não são irlandeses nem escoceses. Então não resisto e meto conversa. São de Sydney. E assim começa outra conversa de uma hora. Tratam-se de Lucy e Richard, ela professora de Japonês aposentada e ele … nem cheguei a perguntar o que fazia. Ela fascinou-me. Morou no Japão, fala e ensina Japonês e conhece praticamente o globo terrestre todo. Ele ia acenando com a cabeça, também ele culto mas ligeiramente à sombra do discurso dela. Posto que fomos os primeiros europeus a chegar ao Japão, por via das missões jesuítas, ela está familiarizada com algumas particularidades da nossa cultura, embora sem nunca ter visitado Portugal. Em comparativo, é a décima quinta vez que vai a Itália. Rumam a San Gimigniano, nomenclatura que ela, com todo o seu conhecimento em Japonês, não consegue obrigar a língua a articular. Diz que acha que a palavra “pão” em Japonês veio do português, porque parece que introduzimos lá a base para a famosa “sande”. E eu falo-lhe de Obrigado – Arigato, talvez mo soubesse explicar. Não sabia dessa associação, não pode ajudar-me. O Richard olha para mim – quem terá mais sardas? Eu ou ele? -, e diz que se os portugueses tivessem insistido no território umas milhas a sul de Timor, agora estaríamos todos a falar português. É a primeira vez que um australiano (conheci alguns de Melbourne) me diz com todas as letras “´Fomos quase colonizados por vocês”. Também sabe do documento com a ilustração do canguru do século XVI que foi encontrado há uns anos num arquivo qualquer norte americano.
E, depois, a conversa estende-se para o ADN. Para o facto de a Lucy ser meio britânica e meio irlandesa, mas ter ido viver para a Nova Zelândia quando tinha só dois anos, e depois na idade adulta foi para o Japão. Diz que não sabe onde foi buscar o cabelo e os olhos escuros. O Richard interpõe que provavelmente os celtas que povoaram a Irlanda eram provenientes da Península Ibérica, coisa que descobri há pouco tempo numa das minhas aulas de inglês – em que ensino e aprendo na mesma medida com os meus séniores. Talvez a família irlandesa dela tenha algo de peninsular no passado longínquo. Quem sabe…
Começamos a olhar-nos como parentes, e ambas adoraríamos fazer um estudo do nosso ADN. Infelizmente, além de caro é pouco preciso. Dizer-me que sou da Península Ibérica não basta… Espanha não é Portugal. Separa-os a história e as espadas e a cultura. E depois há o meu avô angolano e a tetra-avó ruiva. Misturando tudo isto, imagino que o meu ADN venha dos quatro cantos do globo. E deu nisto… Umas quantas doenças típicas de lugares onde os raios solares chegam à terra com diferentes obliquidades. Não podíamos ter ido pela via das imunidades?
Quando descem, a fim de seguir para a aldeola medieval e muralhada que defende o “melhor gelado do mundo” – é mesmo, provei-os em 2013 –, fico sozinha na carruagem com um italiano de cabelo à Roberto Carlos nos anos 90 que não se coibiu de nos olhar durante todo o tempo. Não gosto que me olhem fixamente, por isso quando mete conversa comigo – já os dois sozinhos na carruagem – finjo que não entendo. Ensaio algumas respostas tortas, tipo "O que que acha que ia acontecer se lhe desse conversa?" ou "Acha que qualquer estrangeira vos cai aos pés? Por favor, já estou vacinada. Já agora, vá cortar essa guedelha!". Depois lembro-me que as pessoas se esfaqueiam por coisas menores, e decido que vou optar por me fingir de surda ou de parva ou, para jogar pelo seguro, de ambas.
Por cima do ruído dos carris, em vez de desistir começa a fazer gestos com os dedos. Entendo que quer um lenço e estendo-lhe um. Depois, quando vem a pergunta “de onde és”, cruzo os braços por cima da mala e viro-me para a paisagem toscana, de súbito silenciada e emburrecida pelos ciprestes.
Chego a Siena e o motorista do táxi é de Pisa. Tagarelamos durante os dois minutos que demora a subir ao centro, e deixa-me na Via Banchi di Sopra, que é a dois passos (literais) da Piazza del Campo, onde em Julho e a 16 de Setembro se dá o famoso Palio, uma corrida desenfreada de cavalos. Estou também a meia dúzia de passos da Catedral. O recepcionista que me recebe tem uns sonhadores olhos azuis por entre pestanas loiras e compridas, e tem um travo a abandono nos gestos. Leva a mala até ao meu quarto, e lembro-me da quantidade de vezes que subi e desci escadas nesse dia (Rimi-Bologna, Bologna Florença, Florença-Siena) nas inúmeras estações de comboio por onde andei. Os rapazes de vinte anos, pálidos e de bochechas rosadas pelo frio, andam ali num engate silencioso nos telemóveis, encostados às ombreiras das portas e com as suas calças de pintor (inclusive meio roçadas e rasgadas) e não mexiam um dedo para me ajudar com as malas. Foram sempre, sempre, mulheres a parar a meio dos degraus e a perguntar se precisava de uma mão. Uma vez disse a uma, perante uma série de matulões a teclar, que são sempre as mulheres a oferecer-se, mas que recusava a ajuda dela, porque tinha dez minutos antes do comboio chegar para subir dez degraus com 30kg, preferia fazê-lo por mim mesma. Ela diz-me, na simpatia que lhes é nata, que se oferecem porque se identificam. Brave! Infelizmente, dentro das carruagens, tentei por várias vezes elevar os tais 30kg acima da minha cabeça. O problema não é a força nem o peso, mas sim o quão altos são os compartimentos para as malas. Com um metro e cinquenta as malas ficam suspensas da minha mão (também ela eternamente de criança) e acaba por vir um senhor de meia idade ajudar-me com resignação. Sinto-me um bocado aborrecida por não poder elevar as minhas malas por mim mesma, mas hey… pensava que estaria a rasgar cascalho pela Toscana adentro, e ao invés estava a viajar a quase 300km/h num comboio feito para pessoas de dois metros. Se tivesse sabido, imagino tanta coisa teria ficado em casa… Uma mala teria bastado.
Abro a janela e sei que terei uma tarde de trabalho pela frente. Porém, a vista dos telhados sienenses deixa-me boquiaberta. Estive aqui há três anos mas apenas por uma tarde. Parece-me melhor agora, com as ruas quase vazias por ser época baixa. Só se houve falar italiano nas ruas e as pessoas cumprimentam-se, suponho que sejam todos vizinhos e que sejam todos de cá. As decorações de Natal são lindíssimas, há flores, árvores de Natal nas praças e coroas de natal. Os javalis, que são o símbolo da região, têm barretes natalícios, e a cada loja há chocolates e panettoni nas montras.
Sou atendida no “La Costa”, na Piazza del Campo, por um jovem simpático romeno, que me traz penne alla bolognese e um recipiente com parmesão ralado. Já me habituei a cobrir a massa com ele. Fico a ver as poucas pessoas que estão sentadas nos veios do chão, que é uma espécie de concha aberta para um Palácio e para a Torre La Mangia, que vejo da janela do quarto. Como a massa acompanhada por um vinho tinto encorpado, e arranco para me sentar um bocadinho junto à fonte na Praça. Às sete da tarde é noite serrada. Por um impulso estúpido, atravesso a praça e compro um maço de tabaco e um isqueiro, para depois voltar a sentar-me no mesmo lugar. Acendo-o e dou umas baforadas, a pensar que foram os 5,30€ mais mal gastos da minha vida. Apago o cigarro poucos minutos depois de o acender. Soube-me pessimamente mal. É só que precisava de algo para me acompanhar enquanto ouvia a última ária do Acto I da Madame Butterfly, ainda a usufruir do wi-fi do restaurante.
Por falar na dita cuja, chegada ao hotel começo a trabalhar – há-de prolongar-se a tarefa até à meia noite e meia – enquanto dá a “Casa Mika” no Rai 2. É um show que me parece em directo em que Mika (libanês naturalizado britânico, descubro) fala italiano e canta com convidados (incluindo Kylie Minogue e a Chiara, e a minha canção de amor já foi o Dueto Mika-Chiara “Stardust”. Foi ele que nos deu essa música, disse aquelas coisas parvas que as miúdas apaixonadas gostam de ouvir. "Esta música faz-me pensar em ti". Não me esforcei mais para dar banda sonora à coisa, ao menos poupavam-se as minhas canções de amor favoritas para voos mais altos. Na época o ragazzo ficou muito surpreendido por eu saber a parte da letra que é em Italiano…  Ma dai! Quis o destino que quando eles se juntassem para cantar essa música no programa, eu estivesse em video chamada com a minha irmã, a tentar saber da gata, e portanto com a TV em mute, e também isso me deu vontade de rir). O homem é meio estranho, mas ainda assim trabalho enquanto o oiço cantar. Parece que está tudo em câmara lenta, até durante as danças, e chego à conclusão que esse programa dificilmente teria grandes audiências em Portugal. No telejornal falam da Madame Butterfly, que estreia hoje no La Scala, a abrir a estação lírica. Trata-se da primeira versão escrita por Puccini, a mesma que foi um fiasco em 1904. Fantástico que seja notícia aqui, mas afinal até o antigo rei de Espanha vem assistir. Marcelo, não foste convidado?
Por volta das duas da manhã ainda se ouviam risos e cantorias na rua, além de que podia ouvir-se a conversa toda dos amigos em cavaqueira nos inúmeros bares em redor. Perguntei-me se a lei aqui não é aplicada – ou se nem existe, por impossibilidade cultural. Até achei engraçado e deixei que me embalassem, mas depois ouvi umas batidas ritmadas, tipo alguém a pregar um prego na parede, e achei que aquilo já era demais. Uma coisa é não controlares a alegria intrínseca à tua natureza e falares alto e dares risadas na rua, outra é pregares um prego às duas da manhã. Mas depois lembrei-me que isto é Itália, a terra do amor e das emoções à flor da pele, e percebi que que estava a embater no tijolo laranja da região não era um martelo, mas sim uma cabeceira de cama. Não é a primeira, mas foi a mais contida até agora. Em Brescia a ópera – a moça era soprano – durou quarenta e cinco minutos com direito à orquestra de voz, carnes e estrado chiadeiro.

Adormeci em paz, porque parece que tudo está no seu lugar no mundo. No dia seguinte começam as férias. Dormir, ler, comer. A minha versão de “Eat, pray, love”.

domingo, 4 de dezembro de 2016

Il Viaggio in Rosa - Parte V

 V

Verona-Venezia

Hoje fiz anos. Vinte e sete. Sinto-me velha, mas obrigo-me a pensar que a vida pode começar num dia qualquer, e que juventude não é sinónimo de mais vida, bem como velhice não tem de ser significado de menos vida. Continuo a sentir que a minha vida ainda não começou, embora tenha cada vez mais episódios para narrar. 
Tinha um bilhete para as 09:26 Verona-Veneza, mas se há coisa que já entendi é que o que se diz é verdade: não se pode pedir direcções em Itália. Mandam-te para a esquerda, depois para a direita, depois de novo para a esquerda. E entretanto ficas a ver o autocarro ir-se embora. Também não é fácil meteres um plano em marcha, porque a decisão mais simples é interrompida pela miríade de distracções que estão sempre a atirar-se para o teu caminho. Decidi que merecia um pequeno almoço a preceito, mas dois passos em direcção à pasticceria e um mendigo atravessa-se à minha frente. Traz um terço de plástico branco entrelaçado nos dedos, um boné verde e a barba tem alguns dias, mas não está completamente desgovernada. Pede-me cinquenta cêntimos, para comprar um pão. Não tenho trocos nem tenho companhia para o pequeno-almoço, pelo que acabo por convidá-lo até ao estabelecimento que está logo ali, num dos ângulos da Piazza Vittorio Veneto. Senta-se cá fora, na esplanada, apesar de soltarmos baforadas de fumo branco a cada palavra. Não se deve sentir bem-vindo no meio de tanta gente a beber cafés e a comer ciambelle no interior. Peço dois cappuccinos, a sandes que ele escolhe e um brioche, que é um croissant, mas vá-se lá entender…
Engole o cappuccino enquanto escalda, e não preciso de dizer nada para que me conte a sua vida toda. É “químico orgânico”, trabalhava na Alemanha mas teve de voltar por causa da doença da mãe. Não arranjou trabalho em Itália e faltavam-lhe uns meses de serviço na Alemanha para ter direito a reforma desse país. Ficou sem nada. Acrescenta que é obrigado a gastar dinheiro em lâminas porque já lhe têm batido na rua quando tem a barba grande. Culpa a polícia: diz que se o vêm com a barba grande julgam logo que é um terrorista. Dá-me um papel rasgado ao meio com o número de telefone e diz que, se lhe escrever com a minha morada, me manda um cartão com uma foto de São Miguel Arcanjo. Não tive coragem de lhe dizer que não acredito nesse tipo de arcanjos.
Perco o autocarro – é domingo, o pé dói-me tanto que não posso pousá-lo no chão e ando a jogar às escondidas com os autocarros. As instruções nas paragens não são claras, as pessoas apontam em direcções diferentes e discutem quem tem razão. Por parvoíce, comprei o bilhete a partir de Porta Vescovo, mas estou melhor servida de transportes a partir da Porta Nuova, pelo que decido seguir para lá, mesmo porque o outro autocarro não passa. Na estação noto que o meu comboio já partiu há meia hora, pelo que me meto na fila para os balcões da Trenitalia e tento resolver. Dizem-me que posso usar o mesmo bilhete, desde que vá até à Ponte Vescovo para apanhar um qualquer regional que vá para Veneza. Largo 1,75€ e sigo viagem para a linha 6, onde me sento meia hora num banco metálico e gelado, a ler Sylvia Plath e a perguntar-me como saberei que comboio para na Porta Vescovo, quando todos são anunciados pelo seu destino final. Reflicto sobre as informações que o senhor simpático do B&B me tem dado. “Menina, um táxi aeroporto de Verona-centro é 20€”. O taxista pediu 35€ e disse que eu estava maluca (não entrei, claro). “Menina, o autocarro urbano é 1,10€”. Foi 2,00€. "Menina, de Porta Nuova a Porta Vescovo são 0,30€". Foram 1,75€. Acordei, portanto, chateada com os italianos.
A dado momento, farta de esperar, abordo um maquinista. Diz que daí a dez minutos há um regional para Veneza a partir de onde estou, que raio vou fazer até Porta Vescovo? Então rasgo o bilhete e 1,75€ ao meio e fico ainda mais chateada. Durante o percurso termino “A Campânula de Vidro” e nunca vem o revisor pedir o bilhete. Penso que trouxe três livros, comprei um quarto no aeroporto e no terceiro dia já despachei dois…Que raio vou ler nos outros dias?
Chego a Veneza e, dois minutos depois, maravilhada pelas vielas, perco-me. Se não me doesse tanto o pé, era até engraçado. Havia setas a apontar em ambas as direcções com o mesmo destino. Fiquei confusa. Perdi a conta ao número de vezes que a ruela estreita, onde as varandas de ambos os lados quase se tocavam, culminava numa vista privilegiada para o Gran Canale
[Quando tinha 7 anos, andava a dar uma novela chamada Por Amor. Nos primeiros episódios, mãe e filha (na ficção e na vida real), estavam juntas em Veneza. Fiquei com aquela imagem em mente, mas também com a sensação de que isso não seria para mim. Que não teria direito a essa espécie de prazeres, como viajar. Mas cá estou, vinte anos depois, sentada em São Marcos a admirar os leões alados. Os olhos são sabem bem onde pousar. Estou feliz por estar aqui, a beleza traz sanidade à alma. Não sinto que Veneza (ou sequer Verona) seja a cidade do amor. Só vejo turistas com selfie sticks. Então pus-me a ouvir a Zizi Possi a cantar essa música, que ficou sempre associada ao sonho que tinha de Veneza. Toda a Itália é um sonho, mas esta cidade é realmente algo de transcendente. É um labirinto que oferece um sorriso a cada esquina. Roupa estendida e malas de pele absurdamente caras. Uma mistura de grandeza e decadência estranha. Uma pomposidade em cada gondoleiro, mas a crise económica no país. Menos pessoas nos restaurantes e mais a comerem foccaggie pela rua. Menos pessoas a passear de gôndola e o olhar enfadado dos condutores, de camisola riscada branca e preta, mais pessoas no barco motorizado turístico. Menos cristais de Murano e máscaras venezianas à venda, mais lojas com artigos chineses que vejo à venda em toda a parte. O turismo democratizou-se. As pessoas que compram selfie sticks e que apalpam os seios da Giulietta não têm uma única pista do porquê das coisas. É cansativo descobrir. Hoje aqui amanhã noutro sítio. Mas eu tenho as aspirações de infância a animarem-me os passos. E por isso, mesmo que cá regresse, esta vez será sempre especial. Lembrou-me que as coisas acontecem uma de cada vez e que, se cultivarmos o desejo e formos pacientes, um dia podemos dar por nós na Praça de São Marcos sem saber como açambarcar tanta beleza e tanto detalhe com o olhar.]
Regresso a Verona no comboio certo, depois de fazer o passeio de 45 minutos pelo Gran Canale e de admirar a ponte Rialto como deve ser (metem a linha do comboio no ecrã cinco minutos antes e ele partir, o que é óptimo numa estação como Santa Lucia, com 23 linhas, sobretudo quando cada passo nos arranca um esgar de dor). Fui sempre a ouvir a mesma música e a reflectir em como ter crescido tão atenta aos ideais dos anos noventa me moldou para o futuro. Na altura, as pessoas das novelas eram minimamente decentes e andavam vestidas. Viajar era coisa de ricos e o casamento era para a vida. Fiquei uma romântica incorrigível por causa dessa imposição de “obstáculos = final feliz”. Ainda assim, não senti que Veneza seja a cidade do amor. Senti, sim, que deve ser especial perdermo-nos por aquelas vielas com o amor da nossa vida. Mas até a selva africana deve ser interessante com o amor da nossa vida ao lado. E ser picados pelo mosquito da malária ou perseguidos por crocodilos no Nilo também me parece bem mais suportável nessas circunstâncias. Pelo caminho apetece-me escrever, mas não tenho papel. Há muito que a vontade de escrever não me espicaçava deste modo. Vou tratar disso nos dias que tiver de férias.
Ao chegar a Verona dou-me conta de que o pé me dói mais do que nunca. Amanhã vou ao médico, não faço nenhuma ideia do que possa ser. Não parti nada, não sei nem como aconteceu. Há anos que tenho o cartão de saúde europeu, mas desta vez ficou em casa. A dado momento do percurso olho para o lado, para a pessoa que segue em pé a meu lado, e entendo que é o mendigo do pequeno-almoço. Desfaz-se de novo em agradecimentos e volta a pedir-me que lhe escreva a fim de poder enviar-me o postal do São Miguel Arcanjo. Olha-me por detrás dos óculos de míope e decido que lhe vou escrever, parece-me que gostaria de receber uma carta. A quem pertence a morada, não sei.
Amanhã a aventura continua com várias paragens, se tudo correr bem durmo em Rimini depois de um dia com as malas a reboque e o pé que mal posso pousar no chão. Mas já não sei de nada… Neste momento, se fosse parar de comboio à Áustria já não me espantava muito. Itália tem esse efeito nas pessoas, parece-me. Uma pessoa perde a direcção e acaba por encontrar-se a si mesma. Onde irei dar amanhã?

sábado, 3 de dezembro de 2016

Il Viaggio in Rosa - Parte IV

Parte IV

Verona-Trento

A primeira vez que sorri hoje foi quando passaram por mim, no centro histórico de Verona, dois homens a cantarolar. Reconheci logo a música e não pude parar de cantá-la o resto do dia. “Parlami d’amore Mariù, tutta la mia vita sei tu…Gli occhi tuoi belli brillano…”. Já ontem estacionei o carro numa praça em Brescia junto a uma fachada de onde, a partir das janelas abertas, me chegou a voz de uma cantora de ópera em ensaio. Depois, junto ao Duomo de Verona, um senhor de idade apertava o casaco no pescoço enquanto cantava ópera. Sozinho, no seu caminho, mas a cantar. Os nossos olhos cruzam-se, faz um sorriso e continua a cantar. E hoje estes dois, lado a lado, a cantar Achille Togliani. Pego no telemóvel e que se lixe a bateria. Tenho de ouvi-la. Vou a sorrir o resto do percurso. Como o mercado de Natal se estende por toda a cidade, com os miúdos a celebrá-lo de gorro e com gritos histéricos, compro uma ciambella com creme de ovo e dois Baci e vou a lambuzar-me alguns metros, desde a Piazza Erbe à casa da Giulietta. Um corredor de acesso está totalmente coberto por marcadores e post-its a prometerem amor eterno. O pátio onde está a suposta varanda é pequeno, e algumas lojas também lhe dão acesso. Uma das lojas vende lembranças de Natal e promete uma vista fantástica da varanda a partir do seu primeiro andar. Eu busco refúgio debaixo de uma varanda, ao cimo de uns poucos degraus. Estão a cair uns chuviscos de água a caminho de se tornar neve. Estão dois graus e a atmosfera tem uma neblina branca. Estou muito consciente de que há montanhas por perto. Como a ciambella que a senhora insistiu em aquecer para mim. Sabe-me pela vida, e ainda mais porque, mais interessante que a janela da Giulietta são as pessoas que se apinham por baixo, a tocar na sua estátua de bronze. Ambos os seios já demonstram desgaste. Parece-me absurdo que esteja ali uma peça com tamanha elegância, tamanha dignidade no amor, e que as pessoas cheguem de telemóvel em punho para a apalpar e pôr a língua de fora ou fazer bico de pato para as fotos. Incomoda-me de tal modo que não me detenho por mais de dez minutos. Apanho uma Giulietta loira na varanda com a minha Canon e sigo o meu caminho. Custa-me pousar o pé direito no chão. Ontem doía um pouco, mas hoje dói mais. Devo ter torcido ao descer do autocarro. Ao final de tantos anos finalmente preciso do cartão europeu de saúde, mas desconfio que ficou em casa. Cada passo dói cada vez mais, e entendo que deveria estar quieta. Mas não posso: não vou deixar de ir admirar a Arena. Lá a encontro depois de muito indagar, porque todos os restaurantes e tabacarias a mencionam, mas não se vê a estrutura em parte alguma. A Arena não é mais que outro Coliseu, mas neste há o festival de Ópera de Verona. O meu maior sonho artístico é poder ouvir ver Turandot lá, em Agosto. As fotografias prometem uma atmosfera de conto de fadas. Custa a imaginar os italianos em silêncio, mas suponho que durante as duas horas que dura a composição do Puccini, consigam.
Quando dou por mim é hora de partir para Trento. Não é difícil encontrar o “binário” de onde parte. Vou a ler um romance cor-de-rosa o caminho todo, chego em menos de nada e nem tenho de ligar à Giuliana, porque está mesmo ali, de sorriso nos lábios e parka prateado à minha espera. Abraçamo-nos e deixo-a mostrar-me o centro de Trento. Estamos rodeadas de montanhas e de fontes que prometem um alívio do impiedoso calor estival. Nesta altura, ao invés, há aldeias de Natal em toda a parte, com neve falsa nos telhados, renas à porta, miúdos a gritar, pinheiros verdadeiros iluminados, ciambelle à venda, e ainda azeite, charcutaria, queijos, licores, sabonetes naturais e decorações de madeira para as árvores de natal.
Mostra-me o Duomo, que tem duas escadarias enormes em cada lado da nave central, e que exibe, sobre a pedra cinzenta do interior, pinturas medievais. Um instante antes de sair reconheço Maria com o filho no colo, de manto azul-celeste. Comemos um strudel trentino e bebemos um café. Como é Itália, o emprego não se contenta com "um café", e fica a olhar para mim de bloco em punho. Olho em redor: em nenhuma mesa há dois cafés iguais em quantidade, cor, ou adições. Uns têm espuma branca, outros devem ter leite, outros natas, outros licor, outros são expressos e outros são cafés longos. Digo-lhe que seja criativo. Traz-me aquilo que seriam três bicas portuguesas numa chávena alta, mais fraco que o nosso café mas menos aguado que o Americano. Todos sorriem, são simpáticos, falam alto, dizem “Salve”, desejam boas festas. A Giuliana cruza-se com uns quantos amigos. A dado momento falava-me da avó. A propósito de nada. Diz-me que a avó morreu quando tinha oito anos, mas que lhe foi tão especial que, apesar de já ter metade da família no céu, é sempre a ela que recorre em preces. Deixa-me à porta da Igreja de San Lorenzo e que, se tiver tempo, devo entrar. Entretanto tenho meia hora para agradecer ao Ricardo, a voz que me salvou a pele ontem ao cancelar a reserva do hotel de Trento sem custos. Diz que está no bar da estação de comboios e que vou reconhecê-lo porque está a escrever num portátil. Como não vejo bar nenhum, na estação, pergunto a um velhote. O velhote pergunta-me que tipo de bar quero. Estou só a usar o vocabulário que o Ricardo havia usado na sms. Digo que vou encontrar uma pessoa que me disse que estava no bar. Ele aponta o sítio e é tão simpático que estico a mão para agradecer. Segura-ma, afaga-me os dedos e pisca-me o olho. Vejo-lhe um espasmo no lábio e pergunto-me: será que?... E então diz que, se estou a mentir e preciso só de encontrar o bar, sem que ninguém lá me espere, ele pode levar-me a outro bar que conhece onde podemos aquecer-nos os dois. Ri-me. Tratei-o como se fosse meu avô. Vou-me embora a rir e de facto vEjo de imediato o homem ao computador. Tem uma página do word aberta com inúmeras coisas escritas. Chamo o nome dele, assente e ri-se. Então pergunto na brincadeira se é escritor. Sim – mete o computador na mala e saímos dali com aquela facilidade com que os “latinos” têm em dar-se. Andamos cinquenta metros até à Igreja de San Lorenzo, que lhe digo que quero visitar. Pelo caminho diz-me que está a escrever um romance sobre o tráfico de crianças durante a guerra dos balcãs. Fico impressionada. Dentro da igreja de San Lorenzo, vêm-me as lágrimas aos olhos. É românico puríssimo, à excepção do tecto que está caiado de branco-pérola e raiado de estrelas. Faz sentido, porque penso em toda a gente que me salvou do carro como estrelas. Ele entre elas. Tinha-lhe comprado uma estrela de madeira no mercado de Natal e dei-lha. Era o momento certo. Explico porquê. Já estamos de saída, estava a haver missa e não podemos falar. Passaram-se dez minutos desde que o cumprimentei no bar da estação. Pergunta-me onde quero ir. Digo que nos podemos sentar um bocadinho num banco no jardim, por entre os azevinhos e as cabaninhas de madeira cheias de criançada. Explico que o meu comboio é regional e daí a vinte minutos, mas que se o perder posso apanhar outro regional com o mesmo bilhete. Então sorri-me sem ponta de vergonha e diz-me que conhece um sítio ali perto onde podemos aquecer-nos. Respondo que acabei de beber café. Diz-me que não era bem a isso que se referia. Que era o destino, que era um romântico e que devíamos aproveitar para estar um bocadinho a sós. Com graça, disse que era melhor ir apanhar aquele comboio porque estava a ficar de noite. Tinham-se passado quinze minutos no total. Leva-me ao comboio mas diz de imediato que tem de voltar para o hotel, está muito complicado de reservas nesta época do ano. Fico aliviada e volto ao livro. Não demora muito até que uma menina vestida de elfo me cumprimente. A mãe conta logo que a filha acabou de sair da escola dos elfos com distinção. Reparo nas orelhinhas no barrete. O comboio vem e a penúltima personagem importante do dia foi o revisor. Vê o meu bilhete e engraça com o meu nome. Pergunta de onde sou. Fica extasiado quando falo em Portugal. Diz que esteve lá com a mulher e que amou, acrescentando que muitos amigos estão a ir para lá depois da reforma. Falamos um bocado e uma vez mais o desejar felicidades (e um aperto de mãos sem maldade mas com muita cordialidade).
- Última pergunta, Célia – diz. – Como é que uma rapariga de um país lindo como Portugal anda com uma sweatshirt a dizer Irlanda? Ma come mai?
Damos uma risada e ele vai-se embora, diz “boa tarde” em português e “obrigado”. O nosso riso tinham ofuscado o das crianças por um bocado. Então, quando volto a atenção para o livro, começo a ouvir as brincadeiras dos bimbi. Os pais dizem três, quatro, cinco vezes “Basta, Alice!”, mas a Alice e a amiga continuam aos risinhos e aos guinchos por meia hora. Toda a carruagem estremecia com as suas passadas no corredor central, conforme jogavam à apanhada e escalavam aos bancos vazios. Não dei por saírem, mas um velhote vira-se do banco da frente e sorri-me. Diz “acho que as crianças já saíram”. Damo-nos todos conta do silêncio na carruagem e há uma risada colectiva. Depois conta que tem uma neta de dez anos e que corre como um “capretto”. Ainda não fui ver o que é, mas entendi que seja um caprino. Amorosos, os italianos… ainda que um bocado rebarbados.

Estou tão feliz. E amanhã… oh, amanhã!

Il Viaggio in Rosa - Parte III

Parte III

Brescia – Verona

Se tudo tivesse corrido de acordo com o previsto, o subtítulo seria “Brescia-Trento-Bolzano”. Ao invés, consegui pegar no carro com relativa calma. Estacionei no centro histórico de Brescia e fiquei tão orgulhosa de ter metido o carro entre outros dois numa rua em movimento que quase tirei foto. Só não o fiz porque estava demasiado frio para tirar as mãos dos bolsos. Itália é sempre bonita, e mesmo em Brescia havia uma fonte maravilhosa. Reconheci-a da foto do hotel, a preto e branco nos anos vinte, onde surgia com a água a pender em pingentes de gelo. Não me pude deter porque tinha reuniões marcadas. Visitei os clientes – sempre muito simpáticos, falam de Portugal com carinho. Falam na crise em Itália, falam nos estragos que o voo Ryanar de Bergamo tem causado, porque as pessoas arranjam-se sozinhas para viajar.
A meio da manhã insiro um novo endereço no GPS e vejo que é uma morada a 45 minutos do centro histórico de Brescia, na direcção de Milão. Entendi que algo estava mal, porque sabia que tinha organizado as visitas de modo a tornar as deslocações cómodas. Entendo que não posso fazer esse desvio porque ainda tinha várias outras reuniões a 200km daqui. Arranco para o escritório da Avis a fim de devolver o malfadado GPS que me ia matando na primeira noite. Demoro meia hora a dar com o sítio (que segundo o GPS era dali a 10 minutos) e não mo aceitam. Ao telefone haviam dito que não havia problema, em pessoa dizem-me para o deixar juntamente com o carro em Siena no dia de entregá-lo e explicar a situação. Entretanto liga o cliente do escritório a 45 minutos a dizer o que eu já imaginava – que o GPS estava bêbedo e que ficam no centro histórico. Dá-me outra morada (nº 100) e arranco. Daí a quinze minutos, conforme planeado, paro na rua que me havia dado. Porém a rua termina no número 38. Decido parar o carro e atravessar uma avenida enorme (onde o trânsito se faz à italiana – carros, motas, pessoas de bicicleta) e descubro que do outro lado a rua tem outro nome. Já não é a mesma. Telefono ao senhor e entendo que inventou aquele número de porta. É um milagre que o GPS me tenha levado até ali. Estaciono o carro e a máquina come-me 2,40€ por uma hora, e o arrumar fica com mais 0,60€ sem factura só porque tenho demasiado medo que se vingue no carro alugado.
Falamos durante um bocado e entendo que é hora de partir para Trento. É hora e meia de viagem na auto-estrada e às quatro e meia o sol põe-se. Não quero conduzir de noite porque é ainda mais aterrorizador. Então despeço-me e arranco, com o GPS instalado no banco do pendura sobre uma pilha de livros e documentos, a fim de ficar facilmente no meu ângulo de visão. Não demora muito para que eu entenda que o Google maps do iPhone está mais perdido do que eu. Manda-me virar à esquerda numa rotunda, como se não fosse rotunda, e mais adiante manda-me encostar à direita e manter-me à direita, quando vejo que estou a meter-me para a auto-estrada em direcção a Milão, quando deveria ir para a direcção à esquerda, que seria Veneza. Entro na auto-estrada para Milão porque é tarde demais para voltar atrás. Agarro o ticket. O GPS diz para sair na primeira saída e voltar a entrar em Brescia. Assumo que fui eu que ouvi/vi mal. Saio, o ticket dá 0,60€ só pela brincadeira. Volto a entrar em Brescia. Volto a sair para a auto-estrada. Volta a mandar-me para a direita, para Milão. E eu convencida que a direcção nunca poderia ser essa, meto-me para Veneza (era a direcção certa) na esperança que ele abra a pestana e actualize o percurso. Durante os primeiros dois ou três quilómetros insiste  que devo sair. Depois cala-se e diz que tenho 37 km nessa estrada (A4) antes de virar para a A22 em direcção a Trento. Respiro fundo. Meto-me na faixa do meio sempre que há faixas de aceleração à direita. A certo ponto decido que me vou meter atrás de um tolleyzeco que vai a 70 na auto-estrada e sigo assim a minha vida, em tranquilidade, durante vinte minutinhos. Mas é sexta-feira e a auto-estrada está cheia de camiões. Começam a acumular-se atrás de mim. A ultrapassar-me e ao trolley. A dado momento tenho quatro ou cinco à minha esquerda, o trolley à frente, um camião cujos faróis emolduram perfeitamente o meu retrovisor, coladíssmo a mim, e carros a entrarem na faixa de aceleração à esquerda. Mentalizo-me que vou morrer e pergunto-me se disse tudo o que devia a quem devia dizê-lo. Começo a pensar se fiz tudo o que podia pelas minhas miúdas, lembro-lhe de alguns detalhes práticos e legais que poderia ter tratado. Ganho coragem e, por uma brecha, safo-me pela esquerda. Fujo dos camiões, assim que posso meto-me na faixa mais à esquerda e vou a rasgar caminho. Para trás ficam os camiões e as suas buzinadelas. Lembro-me de ter travado a dado momento, quando o de trás se colou praticamente à minha bagageira, porque tinha acelerado tanto para fugir dele que estava em cima do trolley. Quando dou por mim tenho os olhos húmidos de lágrimas. Prometo-me que choro mais tarde, já vou hiper tensa, só me falta chorar e não ver nada. Além disso, tenho um Audi encostado a mim, a querer passar-me por cima, e tenho de arremeter para a direita. O Audi lá vai, desaparece num ápice. Se eu ia a 110 ele seguramente vai a 150. Por fim surge a saída para Peschiera, o sinal da estrada de saída da auto-estrada ordena um máximo de 40km/h, mas eu vou a 70 e o carro atrás do meu vai de novo colado e a apitar. Passo pelas caixas para pagar, estendo uma mão à senhora com o dinheiro enquanto olho para o GPS e vejo um cruzamento (manda-me virar à esquerda) e olho para a frente e vejo outra rotunda…
Tento ler o nome da cidade para onde o GPS me manda, a fim de encontrar a saída na rotunda. Nada. Engano-me, quando dou por mim estou de novo na auto-estrada e na mesma direcção de onde vinha. A faixa de aceleração está prestes a terminar, tenho um carro atrás de mim com prego a fundo e da esquerda vários carros passam a voar. Lembrando-me de outra experiência, entendo que se a faixa terminar tenho de parar, não me posso atirar para a frente dos carros que vêm da esquerda. Mas o que está atrás de mim já vai a apitar e eu ainda só dei um cheirinho no travão. Atiro-me atrás do carro que acabou de passar, antes que o novo passe. Corre mais ou menos bem para mim, que já estou a circular. Mas o carro à frente do qual me pus apita, e o que vinha atrás de mim na faixa de aceleração também fica a apitar. E eu entendo que não sou me vou matar, como vou levar alguém comigo. E é então que decido: perante o próximo erro, tenho de desistir. Não posso insistir mais. Tentei o mais que podia. Arrisquei mais do que o meu tempo, a minha vontade, a minha energia. Arrisquei a minha vida porque, até esse momento, não tinha entendido que estaria realmente em risco. Mal pus os pensamentos em ordem, passaram dez minutos e a primeira saída que me surge diz “Verona Aeroporto”. Verona é onde era suposto estar no dia seguinte. No dia seguinte era suposto guiar de Trento para Verona. Entendo que é um sinal. No aeroporto à rent-a-car. Logo, posso desfazer-me do carro lá. Posso pedir ao hotel onde ia ficar que me acolha uma noite antes. Ligo ao hotel de Trento, em pranto, e explico que não consigo. Não dá. Não tenho modo de chegar lá, lamento imenso. Ele diz que entende. É a voz de uma estrela ao telefone. Diz-me que a minha decisão é sábia e que é o proprietário do hotel. Vai cancelar tudo sem gastos. Se pudesse, ia buscar-me, mas é longe. Se pudesse, reconfortava-me, mas é longe. Agradeço. Diz-me que não sabe mexer com certas tecnologias, que cada um tem as suas dificuldades. Lá porque toda a gente guia, não significa que seja fácil. E lembro-me de coisas que me são fáceis mas que nem todos conseguem fazer, como escrever. Então a voz dele acalma-me e consigo delinear um plano na cabeça: vou entregar o carro. Depois vou pegar nos malões enormes e ligar ao hotel de Verona. Depois vou pedir desculpas às pessoas que ia visitar. Vou visitar uma delas no dia seguinte de comboio, se me deixar. À outra vou mandar um postal com uma graça qualquer. Vou apanhar um autocarro e vou para o hotel. Fico lá nos próximos dias, a respirar e a organizar os próximos dias. Certo que será mais difícil andar de transportes públicos com as malas, mas não será impossível.
No instante em que assino a entrega do carro, a vida começa a fazer sentido. A senhora oferece-se para ir ela buscar o carro ao parque onde o estacionei. Fala comigo como se fosse filha dela e elogia-me a maturidade. Digo-lhe, aos soluços (aqueles do pós-choro), que achava que era mais capaz. Ela diz-me que o importante foi a maturidade com que assumi que não conseguia. Que o resto paciência. Explico que esperei, a todo o instante, que alguém me viesse tirar o carro da mão e me proibisse de conduzir, pelo bem de todos. Diz-me que trabalha no aeroporto mas que tem medo de aviões e nunca andou de avião. Nem sei o nome dela…
As peças começam a encaixar-se. Primeiro o aeroporto é-me oferecido. Depois a senhora ruiva e amorosa do rent-a-car. Primeiro o senhor não sabe mexer em telemóveis. Só sms e chamadas. Depois a senhora que vê os aviões a passar mas nunca andou neles. Dois anjos.
Em seguida o hotel diz-me que tem vaga, se quiser posso ir um dia antes e ficar por três noites. Explica-me que só tenho que apanhar um autocarro, e depois outro. Em meia hora estou no hotel. Entro no aerobus tão contente que as malas não me pesam nada. Apesar de o motorista me oferecer ajuda, subo a maior. Vou a rir-me. Há um dia e vinte horas que não me ria (é o tempo em que tive o carro, segundo o recibo). Sento-me perto do motorista e a primeira rapariga que entra, com todo o autocarro livre, escolhe sentar-se ao meu lado e participar na conversa. Vamos a rir-nos os três até ao centro de Verona. Ele diz-me que está “naquele buraco” de conduzir sempre o mesmo percurso há vinte e cinco anos. A rapariga diz-me que veio trazer o pai ao aeroporto e que vai voltar para Bolzano. Está stressada, é bonita mas tem muito rímel. Tem os olhos húmidos e diz que está muito cansada. São tão simpáticos e ficam tão contentes por eu adorar Itália… quando desço do autocarro em Verona Porta Nuova, tenho um a levar-me a mala enquanto eu levo a outra e o terceiro me espera do passeio a sorrir. “Vieni, vieni”. Oiço as palavras do Pinkerton para a Madame Butterly. L’amore non uccide, ma da vita! O senhor motorista aponta o sítio exacto de onde sai o próximo autocarro, e em trinta segundos o mesmo chega e eu arranco.

Nessa noite caminho quinze minutos até ao centro de Verona. Na Piazza del Duomo, admiro a fachada da catedral. E de repente a estátua de um anjo aponta a porta. Lembro-me da minha escultura de anjo favorita, a que está logo à direita quando se entra na Igreja de Santa Maria degli Angeli e dei Martiri, em Roma. Emociono-me. Estou onde tenho de estar.