tag:blogger.com,1999:blog-40284468590644056472024-03-12T18:17:03.778-07:00Le Voyage en Rose~Céliahttp://www.blogger.com/profile/17737608801129261940noreply@blogger.comBlogger122125tag:blogger.com,1999:blog-4028446859064405647.post-37012831321221890612016-12-21T07:20:00.001-08:002016-12-21T07:20:35.722-08:00NOVO BLOGUENOVA CASA<br />
<br />
TODAS AS INFORMAÇÕES DESTE BLOGUE PASSARAM PARA:<br />
<br />
https://levoyageenrose.wordpress.com/<br />
<br />
OBRIGADA,Céliahttp://www.blogger.com/profile/17737608801129261940noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4028446859064405647.post-28851926596216511272016-12-11T14:08:00.002-08:002019-02-13T03:58:13.513-08:00Il Viaggio in Rosa - Parte XFirenze - Roma<br />
<br />
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
<br />
O hotel de Firenze é tão mau que fiquei feliz por sair da cidade. Com uma mala
cheia de roupa lavada e outra com os apetrechos tecnológicos e a biblioteca que
trouxe comigo, despedi-me com um último pequeno-almoço no Robiglio. Está cheio
de <i>panettoni </i>e de bombons, mas não é por ser inverno que se vendem menos
gelados na rua. Bebo um <i>cappuccino </i>e como um croissant. A espreitar-me das
montras há bolos e mais bolos com creme. Quero um pão com manteiga, mas nesta
pastelaria só se vê pães a envolver fiambre, queijo e <i>prosciutto</i>. A senhora traz-me manteiga, arranja-a não sei onde, porque os cafés daqui simplesmente não espalham manteiga em pães de manhã. <i>Salumeria.
Pasticceria. Osteria. Trattoria. Pizzeria. Gelateria. Panetteria.</i> Estou a
aprender.<span style="font-family: ".sf ui text" , serif; font-size: 13.0pt; line-height: 150%;"><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
A paisagem
invernal seria quase depressiva, para lá da janela do <i>Frecciarossa</i>, e Ludovico
Einaudi corrobora com isso. Mas estou demasiado feliz para isso. Demasiado tranquila. Estive uma hora à espera do comboio de alta
velocidade, após a qual me sentei na carruagem errada, mas no lugar certo. Tomei
o lugar de uma jovem com o bebé. Depois tive que mudar, como é evidente. Se
fizesse uma lista que odeio nas pessoas (é demasiado tentador):<span style="font-family: ".sf ui text" , serif; font-size: 13.0pt; line-height: 150%;"><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
<b>- Odeio pessoas que se sentam no lugar dos outros nos
transportes, quando já há um lugar marcado.</b><span style="font-family: ".sf ui text" , serif; font-size: 13.0pt; line-height: 150%;"><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
E lá estava eu,
num comboio de corredor apertado e atafulhadíssimo de malas e de casacos, a
abrir caminho no meio do pêlo, do couro e das fivelas, para a carruagem a
seguir. Detestei-me a mim própria por me ter posto nessa situação. Na carroça
certa (o erro foi da 9 para a 10, mas poderia ter sido da 2 para a 10),
descubro uma roqueira no meu lugar. Cabelo avermelhado, camisa de uma banda
qualquer de metal, olhos ensonados. Teve de sair, e fiquei ainda mais irritada
comigo mesma. Estava a dormir porque o comboio já ia em andamento. Estava
confiante que até Roma iria no lugar escolhido.<span style="font-family: ".sf ui text" , serif; font-size: 13.0pt; line-height: 150%;"><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
Estou a pensar
na passagem do tempo. Não agora, mas constantemente. Perante o azul leitoso da
distância, das árvores despidas e do céu plácido, consagrada às <i>Four Dimensons</i>
de Einaudi (comprei outros <i>phones</i> - mais uma sandes para o almoço) vejo o meu
reflexo. Incomodam-me as formas do queixo quando o franzo. Incomoda-me o facto
de estar magra e de isso resultar num peito plano e em covas no rosto e sob os
olhos. No verão de 2013 já tinha engordado 7kg por esta altura. <span style="font-family: ".sf ui text" , serif; font-size: 13.0pt; line-height: 150%;"><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
Ontem vi o <i>Venuto al Mondo</i>, com a Penelope Cruz a
fingir que é italiana e a falar inglês. Em ambas as línguas era traída pelo
espanhol, e quanto mais passeava em Roma mais evidente me era que é espanhola.
Até os penteados eram espanhóis, na minha opinião. Mas o filme é mais premente
que isso: é sobre a guerra em Sarajevo, e sobre a maternidade no seu sentido
mais amplo. Porque quererão as mulheres filhos? E porque, de repente, tenho
tanto medo deles? Será que estou a tentar parar um comboio de alta velocidade
antes que descarrile? Será que antevejo, adiante, a impossibilidade de ter uma
família e comecei desde já a cultivar indiferença ou até irritação perante as
crianças? <span style="font-family: ".sf ui text" , serif; font-size: 13.0pt; line-height: 150%;"><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
Sempre me
imaginei rodeada de filhos. Sempre me imaginei a observá-los do canto, enquanto
o irmão mais velho passa aos outros os ensinamentos dos pais quando não estamos
a olhar. Sempre me imaginei a dizer-lhes que dividam o lanche e a falar-lhes do
avô Américo e da avó Norvinda, porque não há outros de quem falar. Sempre me
imaginei a dançar com o meu bebé lá por casa, descalça e desgrenhada, e era
quase palpável o modo como a sua gargalhada me haveria de estimular a alma à
alegria e à acção. <span style="font-family: ".sf ui text" , serif; font-size: 13.0pt; line-height: 150%;"><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
Agora não sei
de nada. Há momentos em que, seja eu ou o cão preto a uivar de longe, me vem
uma voz suspirada à têmpora: quem te dera.<span style="font-family: ".sf ui text" , serif; font-size: 13.0pt; line-height: 150%;"><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
E a certeza de
que não.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
Ao final da
tarde, a partir da rua onde vou ficar nas próximas três noites, a cinco minutos
a pé do Coliseu, tomei conhecimento de outra história desesperada de
maternidade. Uma mulher jovem, bela, que admiro e cujo percurso de vida tenho
acompanhado – ainda que à distância -, contou-me a respeito das dificuldades
que teve. Primeiro em engravidar, depois em manter os bebés seguros no útero. O
rol de noites mal dormidas, de pesadelos, de desconforto, até chegar ao ponto
de não poder lavar o cabelo nem sequer tocar na barriga, e de ter de estar
deitada sempre, excepto para ir à casa de banho, e de um duche ser para si um
luxo. Conta os dias e as horas para que os bebés estejam fortes o suficiente
para sair cá para fora, e entendi esse mundo de terror que ela está a viver. A
maternidade é tanto luz quanto sombras, embora acredite que no final tudo valha
a pena. É um sacrifício tremendo e difícil de imaginar se não tens os dedos
certos entrelaçados nos teus.<span style="font-family: ".sf ui text" , serif; font-size: 13.0pt; line-height: 150%;"><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
Da última vez
que estive em Roma, em 2013, tinha acabado de me apaixonar. Ainda não sabia que
estava apaixonada. Talvez essa coisa volátil que é o encanto súbito dependa de
um estímulo ou de um retorno. E eu tinha uns quantos olhares para acarinhar,
mas também tinha 2000 km entre nós. <span style="font-family: ".sf ui text" , serif; font-size: 13.0pt; line-height: 150%;"><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
Lembrava-me de
como, ao despedir-se de mim, me chamou a um canto da feira, guiando-me pelo
braço. E eu tinha o meu vestido azul às bolinhas e a gabardina verde. Como
italiano, tinha que reparar nesses pormenores. Depois disse-me, em tom de
confidência, que era uma pena não termos tido tempo para falar melhor. Se
tivesse insinuado qualquer coisa que fosse, qualquer cintilação rapace no olhar
que não afecto e respeito, nunca mais lhe teria dedicado um pensamento. Se
tivesse retorcido os lábios num esgar tipo "ainda temos quinze minutos e o
hotel é aqui ao lado", ter-se-iam varrido todos os preciosos momentos do
nosso entendimento. E como sou exigente, e ao mesmo tempo arrumada. E como,
para mim, amor é amor, encantamento é encantamento e sexo é sexo. E em como
nenhuma destas águas se pode misturar com azeites, e para cada estádio há uma
série de requisitos. Ele preenchia os do encantamento, quase a roçar os do
amor, mas sabíamos que não o era e nunca fingimos. <span style="font-family: ".sf ui text" , serif; font-size: 13.0pt; line-height: 150%;"><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
Não sabia,
quando pedi a um português que me tirasse uma foto na Fontana di Trevi, que
muito em breve estaria mergulhada até ao pescoço em areia movediça. Não sabia,
quando olhei o Anjo da Paz na <i>Basilica di Santa Maria degli Angeli e dei
Martiri</i>, que o anjo haveria de me amparar aí para me ir largar mais adiante, em
queda livre.<span style="font-family: ".sf ui text" , serif; font-size: 13.0pt; line-height: 150%;"><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
E pensar que,
enquanto dobrávamos a roupa nas malas, me disse: "Não, tu não gostavas de
mim nessa altura. Quando entraste no táxi olhei para ti e nem sequer olhaste
para trás". E eu "Olhei sim, e quando olhei tu não estavas a
olhar". E não disse mais nada, apenas negou com a cabeça, como se desse
desencontro de olhares se profetizasse o nosso futuro.<span style="font-family: ".sf ui text" , serif; font-size: 13.0pt; line-height: 150%;"><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
Olhando agora
para trás, e tudo é mais claro com o tempo, talvez tenha de facto gostado de
mim. E eu dei-lhe o que podia dar, e foi bonito. Foi bonito ter-lhe negado
tantos beijos soprados no<i> Skype</i>, por
achar o gesto ridículo, que, quando adormecemos lado a lado, lhos dei todos de
seguida - "Não te mexas" (<i>non
ti muovere</i>), uma dívida é uma dívida, ainda que o seja de beijos. E não te
mexeste enquanto a paguei, contando-os um a um em italiano. E as tuas mãos em
redor das minhas. <span style="font-family: ".sf ui text" , serif; font-size: 13.0pt; line-height: 150%;"><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
E agora pensar
nas nossas idades? Eu tinha vinte e três e ele vinte e sete. E eu achava-o tão
homem, tão digno, tão seguro de si - perante as inseguranças que me eram
óbvias. Sabia sempre tudo, sobre tudo. Em todas as situações me depositei nos
seus braços, porque sabia bem onde tínhamos começado e onde íamos acabar.
Estava segura, ainda que debruçada sobre o abismo. Mas agora tenho eu e as
pessoas ao meu redor esses mesmos vinte e sete anos. E não sabemos nada. Ou
sinto como se nada soubéssemos.<span style="font-family: ".sf ui text" , serif; font-size: 13.0pt; line-height: 150%;"><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
Tudo isso
serviu para que eu saiba que é possível. Que a magia acontece. Que um dia, sem
nada esperares, um homem admirável pode vir sentar-se diante de mim, enquanto
fumo um cigarro, e dizer, com a mesma seriedade com que o disseste:<span style="font-family: ".sf ui text" , serif; font-size: 13.0pt; line-height: 150%;"><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
“Que acontece se o amor da tua vida abominar fumadores?”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
Roma continua tão bonita como sempre. Mais ainda.
Sinto-me meio tosca a passear por estas ruas. Quando dou por mim, estou a
pensar que esta é a cidade mais linda que já vi. Mas também pensei isso de
Veneza, e depois de Siena, e, de modo mais contido, de Florença. É a luz. Em
Roma, é o modo como a luz dourada dança por entre moderno e antigo, monumental e ruína.
A cidade é uma recordação presente e incontornável de como tudo acaba. Nada é
eterno – nem o poder dos homens mais poderosos do globo os salvou da traição,
da doença, da morte. Engraçado que a chamem de eterna, quando Roma é a mais
primordial prova de que tudo termina. O terrorismo parece aqui uma ameaça mais real do que nas outras cidades por onde passei. O senhor que me faz o <i>check-in </i>pede-me o bilhete de identidade e explica que as autoridades andam em cima dos turistas, por medo dos terroristas. A <i>Via dei Fori Imperiali</i> virou pedonal, não circula um único carro entre o Coliseu e a Piazza di Venezia, pelo que as pessoas circulam no meio da estrada, a tirar fotos a todos os ângulos da paisagem. Porém há vários soldados de arma à anca, como que barricados em redor de carros militares. Não me lembro de Roma assim.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
O quarto é confortável, o <i>wifi </i>funciona mas o
computador obriga a quarenta e cinco minutos por acção. Entre abrir o <i>word</i> e conseguir que o <i>blogger</i> funcione, demora-me isso ou
mais. Desde a 21:30 que estou a tentar que o <i>word </i>funcione, e são 23:00. O <i>word </i>bloqueia, o <i>browser </i>bloqueia, o actualizador bloqueia, o <i>youtube </i>não me dá o <i>link</i>
para incorporar videos, etc. E limpei esta carcaça de virus há dois dias –
estava pejado deles, apesar de ser novo, ter a memória 99% vazia e só ter sido
utilizado pelas minhas irmãs em jogos e tretas tais. Se tivesse um machado, já
o teria reduzido em cacos.<o:p></o:p></div>
<span style="text-align: justify;">Amanhã em dia de trabalho em Roma. Não me ocorre uma
melhor cidade para trabalhar à segunda-feira, por si só </span><i style="text-align: justify;">giornata non grata</i><span style="text-align: justify;">.</span><br />
<div style="text-align: center;">
<iframe allowfullscreen="" frameborder="0" height="315" src="https://www.youtube.com/embed/lan6zAUA_xw" width="560"></iframe>
</div>
Céliahttp://www.blogger.com/profile/17737608801129261940noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4028446859064405647.post-36214417177067419212016-12-11T09:20:00.000-08:002019-02-13T03:50:27.383-08:00Il Viaggio in Rosa - Parte IXFirenze<br />
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
Hoje não fiz turismo nenhum. Acordei por volta das
11:00, porque ontem fiquei a ler até às três da manhã. Terminei “A Um Deus
Desconhecido” e fiquei pasmada por nunca ter dedicado um pensamento, na minha
vida, a John Steinbeck. O Hotel continua a ser mau, pelo que de manhã peguei na
roupa que tinha para lavar e fui até uma lavandaria daquelas automáticas.
Estive lá sentada uma hora, a dar os primeiros toques no “Não te Mexas” da
Mazzantini, em italiano. E depois pensei em como, não há um ano atrás, teria
contornado a questão da roupa por lavar… Vestiria outras coisas, seguramente.
Agora, apesar de ainda ter outras peças à escolha, não posso conceber andar a
passear roupa suja. Talvez porque seja eu, por fim, a responsável das lavagens
dos meus trapos.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
À hora de almoço fui ao mesmo restaurante, e o
loirinho barbudo vestido de preto estava lá. Foi uma colega que me atendeu,
pareceu-me muito jovem e tinha um sorriso amoroso. Não quis dar nas vistas,
porque a verdade é que fui lá porque a comida era boa e a um preço óptimo, fica
por baixo do meu hotel e, como hóspede, tenho desconto de 10%. Tentei ser o
mais discreta possível, até deixar cair o garfo. Nessa altura tive de ir ao
balcão pedir outro, e a rapariga sorridente ajudou-me a descobrir como se diz
(forchetto? Já não me lembro). Como eu não sabia a palavra, ela disse-me que
achava que eu era mesmo italiana, e perguntou-me de onde era. Disse-lhe que sou
Portuguesa, e ela apontou para o rapaz e disse:<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
- Olha só, fala melhor italiano do
que tu.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
E eu aproveitei para perguntar se ele não era
italiano.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
- Não, é da Albânia.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
E ele, que estava debruçado no interior da cozinha,
olhou para mim e disse-lhe, com secura:<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
- Ela não sabe onde é a Albânia,
não é?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
E eu, ainda a sorrir, admiti que
não, mas que sei que é para leste.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
Já depois de me sentar, lembrei-me
que a Madre Teresa é de lá. Terminei a refeição e fui ao balcão, mal sabendo
que apanharia três albaneses a quem fazer a mesma pergunta.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
“Como é vista a Madre Teresa no vosso país?”. O
loirinho olhou-me nos olhos: estranho que seja tão translúcida a sua pele e tão
claros os seus olhos. Não sei porque me espantou. Disse que não entendia o que
eu estava a querer saber. Depois veio a rapariginha, que me disse que não sabe
se a Madre Teresa é da Albânia, e que como veio de lá aos dois anos, mal ouviu
falar dela. Por fim vem outro rapaz, também jovem, de cabelo preto e olhos
escuros, que me olha no fundo da alma e vejo uma boa dose de desencanto nesse
gesto, e diz:<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
- Se acredito na Madre Teresa?
Acredito no meu pai, na minha mãe e na minha irmã.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
E venho-me embora, satisfeita.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
[Estou no Auditório da Cassa di Risparmio de
Florença, na via Folco Portinari, sentada perante um órgão gigantesco e um
piano de cauda reluzente, e oiço o tenor e a soprano a aquecer a voz na sala
adjacente, para lá da cortina. Reconheço uma ária do Carmen, trauteada. Uma voz
assim é um dom, mas também muito trabalho. E então ele vem – Giorgio Casciarri –,
e canta de casaco de veludo vermelho e lenço de seda no bolso, o cabelo espesso
e grisalho com risco ao meio a agitar-se a cada trejeito de cabeça. <i>La dona è mobile</i>. Entra a soprano, Elena
Cavallo, que nem dez minutos antes estava com um casaco de malha e uns óculos
de fundo de garrafa, vestida de cetim vermelho e cheia de jóias.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
Acontece um fenómeno do qual já me tinha apercebido
quando vi a <i>La Traviata</i> e a <i>Madame Butterfly</i>. É como se já
conhecesse as volutas da música. Talvez me sejam tão íntimas porque surgem em
anúncios e coisas tais. Ou talvez me lembre delas de outras andanças, porque o
certo é que são como estender a mão no escuro para a maçaneta do meu quarto:
sei exactamente onde vai estar. Quase entro em taquicardia a cada vez que as
vozes se elevam. Receio que lhes falhe uma nota. A dada altura, enquanto
soprano e tenor estão a tossicar atrás da cortina e o pianista nos entretém, o
velhote da fila da frente começa a falar em tom elogioso da soprano "<i>è una bella ragazza, una bella ragazza</i>".
Aposto que anda com um frasco de Viagra no bolso de dentro do casaco, para
estar tão seguro de si perante os amigos.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
Dou-me conta de que toda a gente dentro do pequeno
auditório tem cabelos brancos. À minha excepção, todos têm mais de cinquenta
anos. Na ária mais alegre da La Traviata, as senhoras da minha fila batem palmas
silenciosas durante toda a cantoria. Vibram com isto. Na fila da frente está um
italiano quase sem cabelo, mas que o tem pintado de preto e fraco na raíz. A
seu lado está uma senhora que tropeçou e caiu de cara em manteiga de amendoim.
Tem a cara cor de tijolo e os lábios rosa pálido. Ou é base ou <i>fake tan</i> levado ao extremo.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
Sofro a cada vez que a soprano contém a voz, e depois
quando a solta estremeço. Atinge agudos tão impossíveis que me chega a doer a
cabeça. E terminam os dois com a <i>O Sole
Mio</i>, para encanto dos espectadores.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
Têm uma elegância em cada gesto que não se vê mais,
por entre os jovens. Agora, além das calças de pintor, ouvem um <i>reggaetton</i> pesadíssimo no comboio. O som
dos auriculares deles extravasa para os meus. Perdi os meus, a propósito. Ainda
só perdi isso e um cabo USB: ontem um indiano tentou vender-me o cabo por 15€.
Aproximei-me da banca dele na rua e estudei o cabo com interesse. Quando
disparou o valor, pus-me a rir. Aquele cabo, novo, custa de 5,99€ a 9,99€, numa
Fnac ou equivalente. Quando lhe disse para deixar estar, seguiu-me pela Porta
Rossa a perguntar quanto eu queria pagar. <i>Lascia
perdere</i>.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
Por falar em ser roubada nos
preços, além do champô a 6,94€, vi um pires a 306€. Bem discutido talvez me
fizessem 300€. Cerâmica de Siena, sim senhor - até engoli em seco e de repente
fiquei muito consciente da loiça que me rodeava naquele espaço exíguo, e de
como tanto a minha mala como a máquina fotográfica ao ombro poderiam escaquear
uma daquelas dispendiosas peças. Ontem paguei 10€ por uma fatia de pizza e uma
coca-cola e, o pior, hoje, foi querer algo salgado e, depois de dar a volta ao
quarteirão, entendi que só me restava a loja de waffles e gelados abertos
àquela hora. Havia uns bolinhos sicilianos com recheio, chamados <i>cannolli</i> -
pedi um desses. Larguei 6€ por uma espécie de <i>éclair</i> tão enjoativo que foi
metade para o lixo. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
Faltam uns dias de trabalho em Roma, dois dias de
lazer em Nápoles e estarei na minha casa. A primeira coisa que vou comer é
sushi - nunca pensei, mas o meu corpo torce-se por um salmãozinho em soja. Mas
isso será depois de sufocar um bocadinho a minha <i>piccina
gattina </i>num abraço, que morro de saudades da minha mimadinha da dona.</div>
Céliahttp://www.blogger.com/profile/17737608801129261940noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4028446859064405647.post-2210044677043618392016-12-09T15:10:00.002-08:002016-12-09T15:47:04.788-08:00Il Viaggio in Rosa - Parte VIII<div style="text-align: justify;">
Firenze</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
O quarto é tão mau (claustrofóbico, frio, sem <i>internet</i>) que assim que lá entro me vem o sono e a vontade de me aninhar debaixo dos cobertores. Tive de planear a hora do banho, não é que fosse uma questão de preguiça. Estavam aí 10 graus dentro daquele quarto, pelo que pensei que por volta da uma da tarde estariam reunidas as melhores condições para empreender a dura tarefa. Só a essa hora tive coragem de me despir e de ir a estremecer de frio para dentro daquela casa-de-banho pejada de janelas, por onde correntes de ar invadem o quarto com facilidade. Além de que estou numa espécie de anfiteatro e vejo todas as janelas dos vizinhos abertas sobre ela. Mas o ilustre director desta espelunca nem sequer se deu ao trabalho de garantir a privacidade dos seus hóspedes: não há persianas. Ou seja: este hotel falha em tudo o que um hotel deveria ser. Nada de conforto, privacidade. Só se salva a limpeza.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
De manhã desci ao primeiro andar, à única sala onde há <i>internet</i>, para tomar o pequeno-almoço incluído na tarifa. O mesmo consistia de dois pães duros de pacote de supermercado, e um pacotinho de duas tostas. Duas manteigas, uma máquina de sumos e uma de cafés. De modo que pus na cabeça que ia descer e encher a barriga na pastelaria da esquina, que é também restaurante e chocolataria. Mas depois pensei: olha para ti, para a voz dentro da tua cabeça. A queixares-te do quarto, do frio, da comida. Ao menos há quarto, umas poucas paredes e comida. Se é gourmet, não é. Mas se há quem esteja pior? Com certeza. Esqueçamos a gula até à hora de almoço.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Fui à <i>Galeria dell'Accademia</i>, ver o pedaço de mármore com cinco metros de altura que o Michelangelo esculpiu no início do séc. XVI para a <i>Piazza della Signoria</i>, aqui em Florença. Parece que, quando a obra ficou terminada, os florentinos ficaram tão orgulhosos que de imediato os arredores se agitaram em tom de peregrinação, para vir vê-la. Não se sabe bem se a escultura representa um David pré ou pós vencer Golias. Apenas se sabe que tem o cenho carregado, pelo que se lhe atribui uma intelectualidade que, em última instância, foi a causa do seu sucesso. Li numa das placas em redor que, quando o trabalho foi terminado e veio à luz, os comissionadores de arte e público em geral entendido na arte clássica e neo-clássica, como estava em voga na época, escreveu que não valia a pena perderem tempo a ver outros trabalhos de escultura. Aquele suplantava-os todos. E assim continua a ser. Havia uma exposição temporária sobre pintura medieval na galeria, além da exposição permanente. Muita escultura e retábulos, muitas <i>Madonnas</i> e muitos <i>meninos Jesus</i>. Paguei 16,50€ para ver as veias da mão e do braço direito de David. E valeu a pena.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Depois corri a cidade à procura de um amaciador de cabelo. Tenho andado com tanta electricidade estática agarrada a mim que em tudo o que toco há intercâmbio de energias. Apanho choques no telemóvel, quando carrega, nos puxadores metálicos, nas portas dos táxis, nos interruptores dos candeeiros. E sem amaciador tenho de pentear o cabelo 350 vezes, em vez de 175, para que possa sair com ele à rua sem ofender ninguém, o que me põe mais cheia de electricidade ainda. Então entrei num indiano e li os preços dos amaciadores de supermercado - Fructis, Ultra Dolce (Suave em PT) e Pantene. O mais barato, de 200ml, era 6,00€. Ri-me para a prateleira e vim-me embora. Duas ruas adiante encontro o supermercado que me indicou a recepcionista do meu hotel. Fui pagar 94 cêntimos a mais pelo mesmo produto, mas desta vez sem rir - bastante séria até. Compro sempre amaciador em promoção, porque nunca o deixo acabar. Há pelo menos dois anos que não pagava mais de 1,65€ por um amaciador. Fiz questão de dize-lo ao tipo da caixa. No decorrer do dia encontrei outro supermercado, mais perto do hotel ainda, onde o amaciador custava 4,90. Ainda caro, mas fiquei com vontade de avisar a moça para não dar mais indicações parvas a ninguém. Minha rica Spar - em 2013 tinha até o cartão da Spar italiana. Ficou em casa, juntamente com o cartão de saúde europeu e o cartão da maior rede de livrarias deles, que também fiz no ano do Senhor de 2013.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Vantagens de o hotel ser tão mau: estou sempre na rua. Almocei no restaurante da esquina (o que também é chocolataria) e provei <i>pappardelle al cinghiale</i>, isto é, massa com um refogado de javali e tomate. Sempre acompanhado de vinho tinto, pelo qual se paga no mínimo 5,00€ o copo. E o moço, que era bem parecido, loiro, barbudo e com uma certa ternura no olhar e nos gestos, a perguntar-me se queria Chianti. Por um instante, as palavras <b>não ganho para beber Chianti</b> quase me escaparam dos lábios. Depois pensei que o pior do meu dia já tinha passado - isto é, tinha acabado de tomar banho no túmulo que é a casa de banho do meu quarto, e devo ter-me demorado pelo menos quarenta minutos debaixo de água. Ao menos saía quente do cano, o que foi uma surpresa num sítio pelo qual não dou nada.</div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
O amor (quase, porque não é amor)
espreita a cada esquina. Os homens arriscam sempre que vêem uma mulher sozinha.
Insinuam-se, tal e qual pavões. Ontem à noite, num café, um passarinhou ao meu
redor. Veio trazer-me primeiro a pizza. Depois o guardanapo. Depois a
coca-cola. Depois a palhinha. Depois um papelinho com a password do <i>wifi</i>. No
papelinho demorou-se, só o largando quando levantei os olhos para ele. Por fim
veio perguntar se faltava algo. Mexia-se de um modo tão teatral, sacudindo o
cabelo e balançando as mãos, que pensei, sem sombra de dúvida, que este homem é
homossexual mas ainda não o sabe. Quiçá saiba, mas talvez não seja tão fácil
ser-se gay num país em que até a terceira idade te pisca o olho. Encenou o
quebra-nozes no espaço entre a cristaleira e o balcão, e tanto dançou que quando
o café esvaziou o patrão o mandou para o primeiro andar, arrumar as mesas para
amanhã. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
Os homens para os quais eu olho
são sempre aqueles que, ou são tímidos, ou nem se detém. Geralmente têm uma
aura de controlo ao redor, movem-se no seu espaço com confiança, sem trejeitos
que denunciem insegurança ou desiquilíbrio. Não se atiram a mulheres – acho isso
asqueroso. Nada de bom pode advir disso; talvez tenha de me sentir única. E
esses homens fazem-te sentir mais uma ainda antes de te sorrirem pela primeira
vez, porque já te seguiram os passos desde que bateste com a porta e o vento
entrou contigo. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
No restaurante onde almocei, por
serem três da tarde, estava sozinha com outra italiana. A outra era mais velha
e não entendia nada do telemóvel, pelo que ele, vestido de preto inclusive no
avental, se inclinou para a conectar à <i>internet</i>. A mesa dela era mesmo em
frente à minha, e de repente começa bossa nova. <i>Oh, porque tudo é tão triste… </i>E eu paro um momento, contenho um
sorriso mas os meus olhos já tinham reconhecido as notas. Já me sentia um
bocado em casa, porque não estava à espera de ouvir português ali. Mas nesses
instantes em que ergo a sobrancelha e com os olhos prenhes de surpresa, ele
olha para mim e eu para ele. E dura um instante mais do que o necessário, pelo
que coro. Já não tenho idade para corar. Além disso ele é mais novo – e eu ando
especialmente consciente da idade. Não lhe consigo olhar mais para a cara.
Sempre que me pergunta se está tudo bem refugio-me no javali e na massa e no
copo de vinho. Se não fosse o incidente do olhar indiscreto e poderia ficar ali
mais um bocado, o restaurante é bonito e a italiana come massa com uma
elegância nunca vista, enquanto eu calculava sempre mal a quantidade de massa
que me cabe na boa e ia sentindo o molho pingar para o colo. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
Mas tenho de ir, pelo que peço
para pagar com cartão. Os dedos dele e os meus demoram-se na máquina, ambos
quentes, e quase me desmancho numa gargalhada, porque me parece tão <i>fácil</i>. Não digo chegar ao âmago da pessoa,
mas conhecer uma pessoa. Não digo despir a pessoa do que a torna consumível para a
sociedade, mas dar um primeiro passo, um primeiro passeio, uma primeira troca
de gostos pessoais. E quem sabe onde isso leva. Mas eu não deixo, nunca deixo.
E nesse momento entendo que, quando as circunstâncias forem mais favoráveis,
vou deixar. Está na hora de deixar, e com o tempo não brinco. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
Vou à casa de banho ajeitar o
gorro que comprei de manhã e olho-me. Não usei maquilhagem um dia que fosse,
mas tenho dado um jeito ao cabelo, para evitar ter de lavá-lo diariamente. Está
demasiado frio e electricidade estática no ar para isso. Ainda bem – penso,
aliviada – ainda bem que ganhei forças para tomar aquele banho naquele quarto
gelado antes de almoço, e ainda bem que ajeitei o cabelo, porque enquanto comia
e lhe mexia desprendia-se o cheiro da baunilha e da alperce. E nunca se sabe
quando podes conhecer o pai dos teus filhos. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
Li mais um pouco, depois de
almoço. Estou a adorar Steinbeck, impressiona-me a sua solenidade, o toque de
feminilidade por entre homens tão robustos. Cito a passagem abaixo, que fala do
único tipo de amor a um homem que conheço:<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<i>“ - Ignoro se há homens nascidos
fora da Humanidade, ou se alguns deles são tão humanos que fazem os outros
parecer irreais. Talvez uma divindade venha viver para a Terra, de vez em
quando. O Joseph possui força sob uma visão confusa, tem a calma das montanhas
e as suas emoções são tão selvagens, ferozes e vivas como os relâmpagos, e tão
destituídas de racionalidade quanto eu me possa ter apercebido. Quando estiveres
longe dele, tenta pensar nele e verás o que quero dizer com isto. A sua figura
crescerá até se tornar enorme, até ser maior que as montanhas, e a sua força
parecer-te-á o irresistível impulso do vento. O Benjy morreu. Não se consegue
conceber o Joseph a morrer. Ele é eterno (…) Garanto-te que esse homem não é um
homem, a não ser que seja todos os homens, e também toda a alegria e
sofrimento, anulando-se um ao outro e mantendo-se, contudo, presentes.<o:p></o:p></i></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<i>(…) Os seus olhos baixaram e não
largou a rapariga. <o:p></o:p></i></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<i>- Tu amas o meu marido – afirmou,
em voz baixa e acusadora. – Tens-lhe amor, mas tens medo.”<o:p></o:p></i></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
De tarde saí, decidi que ia ver a
exposição do Klimt e, de caminho, encontrei um cartaz a prometer um concerto
com as mais belas árias da ópera para amanhã. Se conseguir bilhete, estarei
presente. Fui até ao Auditório e disseram que tem de ser adquirido na
hora. É uma sala pequena. Também aí
quase conheci outra pessoa, fosse esta a minha cidade. Estava ao cimo das
escadas, hesitante em entrar e em fazer as mesmas perguntas que disparei à
senhora que nos veio receber. Entramos juntos e ela fala a olhar ora para um,
ora para outro. A dado momento o rapaz começa a sorrir para mim. Traz uma
mochila no braço e aproveita-se das minhas respostas. Nunca lhe ouvi a voz, mas
quando as explicações dela terminam, ele continua parado, como se agora nos
virássemos um para o outro e ele dissesse: <i>muito
bem, que tal? Amanhã vimos? </i>Rodo nos calcanhares e saio dali, fechando a
porta atrás de mim antes que ele tenha tempo de se acercar dela e eu tenha de
segurá-la para ele, como ele fez para mim, à entrada. Amanhã quem sabe o veja
no concerto, mas é outro rapaz mais novo e eu não sou daqui. Será que estou a
entrar num ciclo em que as almas solitárias encontram um caminho até à minha?
Tenho de estar atenta.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
A “Experiência Klimt” foi uma
projecção dos quadros do artista austríaco que fez sucesso no início do século
XX, portanto na Art Nouveau, no modernismo, no fechar da porta à <i>Belle Époque</i>.
A acompanhar as suas mulheres – pensando nisso, pouco explorou a figura
masculina – estalava a banda sonora. Distingui Beethovan, Carmina Murana,
Strauss, Bach. Há uma imposição da maternidade e do que esse poder
confere à mulher nos retratos do artista. Nunca vi bochechas ou auréolas
mamárias com colorações mais enternecedoras.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
E agora aqui estou, na sala
gelada do pequeno-almoço, às escuras, com a sombra do piano vertical ao canto e
todos os sentidos alerta, debruçada sobre a rua, onde os italianos ainda
passam, ainda gritam, ainda festejam.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
E não tenho dúvidas de onde vou
almoçar amanhã.</div>
Céliahttp://www.blogger.com/profile/17737608801129261940noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4028446859064405647.post-62920817302583481402016-12-09T00:48:00.002-08:002016-12-09T00:48:36.864-08:00Parte VIII<br />
<br />
Siena - Firenze<br />
<br />
Sentada na Piazza del Campo, pouso pela primeira vez os olhos em "A Um Deus Desconhecido", de Steinbeck. Sinto-me tão bem, tão em paz... Por um instante abraço tudo o que tenho junto ao peito, destacando-lhe a juventude e uma saúde quase (quase) em equilíbrio. Itália está a devolver-me a luz, a felicidade, um pouco da barriga e uma paz imensa. O sol de inverno sustém-se em mim e dou-me conta de ser o que já me disseram que sou tantas vezes: uma alma velha a valer-se da energia de alguém jovem. Pergunto-me se, nesta praça, não haverá quem se tenha cruzado comigo noutra existência. Recordo-me de como apreciei o sol de setembro na escadaria de Santiago de Compostela, sentindo-me como me sinto agora, e que veio aquele senhor ter comigo. Ou fomos um ter com o outro. E ele tirou a pulseira com a concha do caminho do apóstolo e deu-ma. Não tive qualquer dúvida de que já nos conhecíamos de outras épocas. Então, de imediato, sem me dar sequer hipótese de voltar a concentrar-me no livro, ao menos para disfarçar, um cachorrinho capta a minha atenção. Atravessa a praça suspenso da trela, impaciente, de nariz colado ao chão. Traz a dona a reboque. Passa mesmo ao meu lado, só tenho que dizer "ciao" e atira-se para os meus braços. Lambe-me a face toda, roça a cabeça na minha mão. Tudo num ápice, que a sua juventude não lhe permite que se detenha. Pergunto como se chama a cadelinha, que me diz ter três meses. Quando ma apresenta, fico a rir a vê-la ir-se embora. Lembrou-me que nem só por humanos viajam os espíritos. Arriverderci, Hillary.<br />
Decido comer alguma coisa antes de ir para a estação, pelo que quando dou por mim tenho a boca cheia de queijo. O queijo cremoso de Bergamo, cujo nome nunca descortinei, com bolor azulado nas extremidades. Mozzarella, parmesão, brie, riccotta. A cada novo prato um novo queijo, e penso nisso enquanto saboreio a massa de um ciaccino, e entendo que, apesar de o tomate ser fresquíssimo, bem como a rúcula e o brie, estou outra vez a deixar cair no colo pedaços de queijo. Comi mais queijo em sete dias do que na minha vida toda. Sou mais a miúda da massa do que do recheio, e isso herdei da avó, que come o rebordo da pizza e diz que os molhos lhe fazem mal. Talvez façam, ela queixou-se várias vezes e nunca a ouvimos.<br />
O último perfume que me acaricia, em Siena, é o de pêras. Pêras firmes e farinhentas. Tão intenso e exigente que por instantes fico desalentada, ciente de que não faço ideia de como deitar mão a uma pêra nesse momento. Penso que, se tivesse uma filha e a pudesse chamar Siena, não hesitaria. Mas a mais velha, como manda a tradição que me impus desde os dezasseis anos, chamar-se-á Eva. Tutto questo averrà, me lo prometto. Espero não sair tão defraudada da vida quanto a Cio-Cio-san.<br />
No comboio prossigo a leitura. Foi-me oferecido pelo meu patrão, e pela data que lhe imprimi a 07/12/15, demorou-me um ano a abri-lo. Pergunto o que leva alguém a escolher certeiramente um livro para oferecer a outrem. A verdade é que há religiosidade em mim, embora não nenhuma das óbvias, e ao fim de duas páginas estou rendida. E este livro está prenhe de diferentes religiosidades.<br />
Chego a Florença e com isso despacho as primeiras cento e vinte páginas do livro. Pelo caminho admiro também a paisagem da Toscana, e os ciprestes (cipressi), os campanários, os campos cultivados. Oiço Noemi a cantar "Sono solo parole", e entendo que cada canção italiana que conheço está a ter um efeito curativo e vem no momento certo. Deixo-a dizer-me que a passagem do tempo acaba por clarificar tudo. Recosto-me e chego tranquila a Santa Maria Novella. Esqueci-me, uma vez mais ao longo do dia, que é feriado. Como o hotel é a 600m da estação e a dois passos do (único, gigantesco, visceral, magnifico - no sentido florentino) Duomo, não faz sentido chamar um taxi. Faço os dois malões galgar as pedras acidentadas do piso, atropelo umas quantas pernas e finto os turistas que param para fotografar, e o coração dá uma pirueta quando revê os veios de mármore de Santa Maria del Fiore. Até aí estava plenamente feliz, mais ainda que o hotel seja a dois passos da catedral, e tenha uma varanda ímpar para a laboriosa cúpula do Brunelleschi, mas depois chego ao hotel e é um buraco. Não sou muito exigente. O meu quartinho em Siena, que me fez sentir em casa por causa da secretária, do telefone e da colcha da cama, para além daquela vista libertadora, não agradaria à maioria dos turistas a cujo conforto atendo. Mas este hotel é medonho. A vista da minha janela é para um pátio interior, mal me posso mexer, a cama é de criança, não há internet no quarto mas, o que me desolou: não há secretária nem mesinha. Vim aqui para escrever. Onde vou pousar o raio do computador?<br />
Adormeço no quartinho claustrofóbico, depois de me oferecer para pagar um suplemento e mudar para um melhor. Esqueci-me de novo que é feriado; o hotel está cheio e das ruas vem o ruído do respirar colectivo. No can do.<br />
Deitei-me vestida, porque o quarto é gelado e o espaço tão exíguo que não tive coragem de abrir ainda as malas. Acordei estremunhada, a sonhar que era pequena, molhava os lençóis e me ralhavam.<br />
Pelo silêncio lá fora, julguei que fosse madrugada. Mas não, eram 21:30 e eu só pensava em comer.<br />
Vesti o casaco à pressa, vi que estava de cabelo revirado e bochechas coradas do calor dos lençóis, olhos muito abertos por querer forçá-los ao despertar, mas saí mesmo assim, a cambalear.<br />
Aprendi mais da geografia de Florença em uma hora sozinha, do que em dois dias acompanhada. Claro que é bom tirar fotos com os amigos, rir com os amigos, vê-los irem contra a montra da Zara, julgando que é a porta automática, enquanto assistes de fora e explodes em gargalhadas. Mas sozinha e sem qualquer mapa ou orientação, sem tomar atenção a placas ou ao google maps (estou praticamente sem internet até domingo), voltei à Piazza del Duomo. Sozinha, entendi a grandeza de aquela monumentalidade ser revestida em mármore. Contemplei os rendilhados na pedra branca, os nichos em delicado mármore rosa e a solidez do mármore verde a cruzá-lo na horizontal. Está um frio de rachar, pelo que foi a primeira vez que tremi de frio na rua. Preciso de um gorro, não trouxe nenhum.<br />
Desemboquei na Piazza Signoria e vi a réplica do David de Michelangelo à porta do Palazzo. Como estou sozinha tomo atenção à numenclatura e olho para trás, a fim de tirar fotografias mentais ao sítio de onde vim. Está tão pouca gente na rua, comparativamente ao borburinho de há quatro horas, com tambores e cantorias, que sou um dos poucos gatos pingados a passar sob as galerias dos Gli Uffizi. Deito um olhar ao corredor Vasari, que os liga ao Palazzo por onde passei. Decido logo ali que vou lá de novo, ainda que o bilhete seja 16,50€, já tenha ido e esteja em contenção de custos. Lembro-me de como, aos dezasseis anos, acarinhava o sonho de trabalhar como guia neste museu específico, e em nenhum outro. Decidi que amanhã só como um panino, se tiver de ser. O importante é que a alma se alimente de arte.<br />
Vejo Lorenzo o Magnífico e outras tantas personalidades ilustres nos nichos da galeria, com os nomes cinzelados aos pés. Vespucci, Petrarca, etc. Não se pode caminhar nestas ruas sem golpes de cultura a bafejar-nos a nuca.<br />
E chego ao Arno, de onde se vê a Ponte Vecchio. Da última vez que aqui estive, por impossibilidades de internet, não pude ouvir a "O mio babbino caro", do meu adorado Puccini, enquanto a contemplava, como queria. Desta vez já chego a ouvi-la, na voz da Maria Callas. A ponte agita-se à minha chegada - vira azul, terracota, depois enche-se das cores do arco-íris e depois ainda de estrelas. Sinto que me cumprimenta. A acompanhar as projecções de luz na ponte - celebrações natalícias ou do feriado, talvez - estão as notas de um piano indistinto. Desligo a minha música e deixo que o universo me diga o que devo ouvir. Afinal, nada acontece como imaginámos. É Ludovico Einaudi, e por outra vez sei que estou onde tenho de estar.<br />
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
Céliahttp://www.blogger.com/profile/17737608801129261940noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4028446859064405647.post-53945975517835931552016-12-07T16:38:00.002-08:002016-12-07T17:19:04.760-08:00Il Viaggio in Rosa - Parte VII<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm;">
Parte VII<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm;">
Siena<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
Porque 7 é um número místico, o dia foi consagrado à beleza incontornável da
arte, foi também um dia de grandes reflexões. Ontem à noite cheguei a uma
difícil conclusão – não entendo porque me soa tão estranho, e ao mesmo tempo
tão natural. Nunca me senti atraída por uma mulher, embora sempre tenha dito
que um dia isso poderia vir a acontecer. A minha frase é “o amor não é uma coisa de
género, mas de alma”. Ainda que a alma esteja encarcerada num corpo, creio que
te prendes à alma. Claro que o corpo tem algum dizer nisso, mas na minha
opinião não tem de ser limitador de ligações. Engraçado que seja Itália a
mostrar-me estas coisas, que se calhar sempre estiveram em mim e só agora vi.
Depois de ontem ter sofrido a subir e descer escadas com os malões perante a inutilidade do
sexo masculino – posso estar a ser um pouco injusta aqui -, entendi que as
pessoas mais fantásticas que conheço são mulheres. Entendi que a maior força
está dentro das mulheres. Que quando a mulher chega a algum lado é porque lutou
mais. Que quando a mulher se preocupa com o mundo, além de que com a casa, é
excepcional, mas é também quase natural. Que quando dói à mulher, dói mais e
mais silenciosamente. Quando a mulher faz mil e uma coisas, e uma milésima
segunda coisa ainda, deve ser aplaudida. E só as mulheres podem aplaudi-la. De
algum modo, algures entre vestir o pijama e lavar os dentes, olhei para mim ao
espelho e entendi: é possível que um dia me apaixone por uma mulher. Não estou
nem a pensar no corpo, estou a pensar em tudo o resto. Houve uma mulher em
particular que me trouxe essas ideias, a de que preciso de alguém que cintile a
meu lado, e ela era jovem, interessada das coisas do mundo, falava línguas
diferentes, o cabelo goza de suprema liberdade e o queixo empertiga-se
quando sorri. Depois veio a dúvida: mas e a família, que é tudo o que quero da
vida? E com a pessoa certa (seja mulher, homem, índio, paraplégico ou autista,
anão ou gigante, engenheiro ou artista e circo) não há como não se ter uma
família. Então assustei-me, porque me pareceu tão verdade e tão claro, e
perguntei-me quantas mulheres admirei, e quantas dessas, se usassem calças e
tivessem barba, teriam sido para mim um homem digno de me ver perder a cabeça.
E entendo que se me mantiver nesta linha (a quadrada) quem sabe o amor e a
família não me passem várias vezes ao lado na vida, sem que eu saiba.
Lesbicismo à parte, a parte intelectual conta muito, e tenho-me cruzado com
mulheres admiráveis. Mas entendi que o que tanto acarinhei num grande
amor, por ser tão sólido nele e tão raro nos homens de agora, é tão airoso e
tão recorrente nas mulheres que vou conhecendo. O confronto não seria o mesmo,
embora a capitulação mudasse?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
Voltando ao lado simples das coisas: hoje estive
perante Bernini e Donattello. Tudo na maravilhosa e única catedral de Siena.
Cheguei-me à bilheteira e vi que o bilhete geral (para maiores de 26 anos,
bolas, passei do prazo há uns dias!) custava 8€. Havia uma série de
dependências a acrescentar, entre elas uma livraria, “A Porta do Céu”, um
baptistério e o museu da catedral. Pedi apenas bilhete para a catedral, em
italiano como sempre. A senhora mal me olhou. Pediu-me 2€ e vi que a livraria
estava incluída. Não entendi porquê, porque mesmo o desconto para jovens daria
em 4€. Só se paguei como estudante. Não pensei muito nisso: saí dali a sorrir e
a pensar que o universo tem modos estranhos de fazer circular os favores. Quem
sabe os 6€ que poupei aqui não tivessem destinados ao pequeno-almoço do mendigo
de domingo? Quem sabe tivesse eu virado as costas ao homem e hoje pagaria 8€
como era devido? Nunca se saberá, mas é mais reconfortante pensar assim. Fui a sorrir toda contente, porque estou a três anos dos trinta mas ainda me acham uma estudante com direito a desconto sem pedirem a identificação.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
O <i>Duomo</i> de Siena é uma obra do século XIV (espero não
me enganar, lembrai-vos que isto é escrita de memória e de opinião, e não um
tratado jornalístico), e o próprio chão foi ali posto entre 1300 e qualquer
coisa e 1500 e qualquer coisa. A cada passo pensei: este chão tem mais de
quinhentos anos. Doeu-me o pescoço de tanto que admirei o tecto. É azul, pleno
de estrelas pintadas de dourado. Em torno da nave principal e do altar
principal há uma série de cabeças debruadas na pedra a olhar-nos cá para baixo
com os olhos e a boca meio esbugalhados. Pensei “serás julgado”. E não tenho
dúvidas que sim. Os católicos dizem que é Deus que julga. Há quem lhe chame <i>karma</i>. Estou certa de que há um cordão
que nos une e que circula, faz ajustes de contas. Chamem-lhe como quiserem. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
Fui admirar o São João Baptista do Donattello, em
bronze, à esquerda no transepto. Várias vezes me perguntei: como se dá valor a
um artista? Como se eleva Donattello acima de todos os outros que também
esculpiram estátuas com o seu cinzel? É a energia. Entra-se na capela e seja a
organização do espaço seja a excelência da obra atrai a vista para as formas da
estátua. É evidente que se está perante uma coisa de maior. Tudo se dissipa
perante isso. Não vale a pena discutir. Quanto a Bernini, no lado direito do
transepto, esculpiu em mármore. Esculpiu a Praça de São Pedro, e é isso que
vejo naquela estátua. Melhor é o sol a brilhar no centro da abóbada, rodeado de
azul.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
Quando terminou a volta à igreja, quase deserta de
turistas, dirigi-me à livraria Piccolomini e fiquei de queixo caído. Tão
esmagadora quanto a Capela Sistina, embora em menor escala. Falta o brilho do
génio, mas todas as cores se encontram lá, bem conservadas e a cintilar. Sentei-me
um bom bocado a admirá-la, e depois continuei a passear pela cidade. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
Consegui comprar o <i>Não te movas</i>, da Mazzantini. Amanhã tenho comboio para Florença,
espero começar a lê-lo e entender alguma coisa.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
Tive uma conversa franca com um novo amigo. Falámos
de auto-estima, de ser-se feliz sozinho. Diz que nunca viajou sozinho. Não
consegue ir ao cinema sozinho. Eu não estou a fazer-me de forte ou de digna
quando digo que sou feliz sozinha. Não é fácil libertarmo-nos dos outros. Não é
fácil irmos ver o filme que queremos quando os outros amigos querem ir ver
outro. Não é fácil irmos para um destino de férias quando os amigos querem ir
para outro. Ou ler um livro quando os amigos querem ir sair. Ou escrever um
livro quando os amigos te convidam para a praia. Ou comer bacalhau com natas na
noite de Natal quando a avó sempre fez bacalhau cozido. Gerir isso faz parte da
vida em sociedade, e nem sempre a sós nem sempre acompanhado é o segredo para a
vida em pleno. O concerto de <i>Scorpions</i>
com os amigos, a <i>Madame Butterfly</i>
sozinha. Eu sozinha numa sala de cinema a ver um filme cor de rosa, enquanto a
amiga igualmente habituada a estar sozinha via ficção científica noutra. E por
muito que precisemos uns dos outros, e sejamos criaturas sociáveis por
natureza, acho que a sociedade do século XXI está muito afastada de si mesma. A
solidão é vista como um risco, uma doença. Coitadinha da pessoa que almoça
sozinha e ao seu ritmo, e que pede o que quer sem pensar que terá de dividir a
conta ou que terá de esconder que comeu o triplo do que se prestaria a comer à
frente de alguém. Coitadinha da pessoa que viaja para onde quer, que se ouve a
si próprio, que caminha sem pressas porque só tem de se preocupar com as suas
necessidades, e que numa cidade medieval como Siena vira para a viela que mais
lhe atrai os sentidos. Seria trágico se
a pessoa precisasse de outros para cultivar a sua própria natureza. Os amigos
podem ter interesses em comum, mas não são decalques da nossa vontade. Das
nossas aspirações.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
Há um tempo para se estar com esses amigos, ou com a
outra pessoa. Mas e o tempo para nós próprios? Para nos sentarmos a analisar os
outros? Nunca teria conhecido a estudante de literatura se estivesse com os
meus amigos, porque iria focada neles. Nunca teria passado o meu aniversário
sozinha em Veneza e a sentir lágrimas nos olhos de tanta emoção, porque teria
ficado na cidade de sempre na esperança de um telefonema, um beijo e um abraço.
De que adianta o espectáculo se sabemos perfeitamente quem está lá para nós?
Quebrar-nos-ia a relação irmos para salas de cinema diferentes e sairmos juntos
à mesma hora, cada um a comentar o seu filme? Já fiz isso e foi libertador.
Quebrar-nos-ia sair do que é o nosso papel num grupo e ir descobrir o que somos
nós para o estranho que se senta no banco da frente do comboio? Como nos
apresentamos? O que é importante mencionar e o que preferimos omitir? Isso faz
de nós o que somos agora, e não o que nos moldámos para ser perante as pessoas
de sempre. O que me assusta é que tudo isto que vivi, tudo o que foi
investimento meu em mim própria – dos livros lidos aos escritos, às horas na
biblioteca, a estas férias em Itália quando podia estar a embarcar para
Portugal em dois dias, para ir beber café ao sítio de sempre e ser a mesma de
sempre – uma estranha, uma companheira de gargalhadas, uma indesejável, uma
confidente, uma inconveniente, uma pessoa que escreve coisas, uma melhor amiga,
uma miúda com voz de desenho animado, a gaja que queria que me deixasse em paz
mas não desgruda, a miúda que entende um bocado de História, a que voltou agora
de Itália -, é que perfeito seria que encontrasse, quando a hora chegar, porque
a hora há-de chegar, alguém que tivesse vivido tão livre quanto eu, para daí
podermos entrelaçar-nos respeitando a liberdade do outro. Que teria para dar se
nunca me tivesse sentado num restaurante sozinha? Se nunca tivesse feito algo
só porque me apraz, ou se só fosse para o ginásio se tivesse lá algum amigo? Aconselho
toda a gente a procurar-se a si própria – o ginásio que lhe dá jeito, e não
aquele onde o amigo já é sócio. A sair sozinho, de olhar atento. A descobrir se
gosta mesmo do bar para onde o arrastam todas as sextas. Da cor que os colegas
de casa escolheram para a parede da sala – uma mais pequena, mais afastada do
centro, mas lilás, não será melhor? Se gosta mesmo do restaurante que os
colegas escolhem para irem almoçar. Se gosta mesmo da alcunha que lhe dão, se é
mesmo isso que dizem que é. Se realmente quer dormir com aquela pessoa, a única
que está disponível e que não move um dedo na sua direcção, que nunca responde
quando precisa de uma palavra de amistoso conselho ou que nas horas que selam o
seu entendimento se recosta para trás e fica a observar enquanto tens de
encarnar tu o papel de sedutor e nunca, nem por uma vez, o de seduzido. Será
que tem de ser crónica a minha incapacidade de me impressionar com as pessoas,
e a minha previsão <i>raio-x</i> de que a
pessoa não está à altura dos desafios não estará deslocada? Ou não será
perpetuada por essa busca obsessiva que todos têm uns dos outros? Ultimamente
tenho visto pessoas habitualmente dignas a arrastarem-se por ter alguém.
Usou-se a palavra “desespero” na descrição. Não quero que esse venha a ser o
meu retrato: quero que as viagens e os livros me valham sempre.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
É preciso alguém que esteja no café se quisermos sair
para conversar. Mas não é preciso alguém no café se quisermos sair para beber o
café e respirar a estação.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
Aborrece-me que o médico de família, que afinal é
psiquiatra mas não teve equivalência no nosso país, me tenha olhado nos olhos e
dito: “Falta alguma coisa na sua vida. Você sabe o que é, mas não quer admitir.
E é isso que a mete doente”. Não é companhia, que me falta. É amor – e a minha
definição de amor haveria sempre de incluir uma boa dose de liberdade e de
vontade própria. Falta-me viver tudo isto e depois ir dar ao mesmo troço do
caminho-de-ferro com aquela pessoa excepcional que tem sido livre, ou que
começará a ser a partir de amanhã, e que se baterá tanto quanto eu pelo direito
a fazer as coisas à sua maneira, e por estar onde quer estar.<o:p></o:p></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
E com isto tenho de ir a cada dez minutos à janela,
porque se ouvem risos, gritos, estrondos e vozes exaltadas na rua. Vou vendo se
já se mataram ou se continuam a celebrar a vida, os malucos dos italianos lá em
baixo…<o:p></o:p></div>
Céliahttp://www.blogger.com/profile/17737608801129261940noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4028446859064405647.post-80794022059356417522016-12-07T08:50:00.002-08:002016-12-07T09:49:52.763-08:00Il Viaggio in Rosa - Parte VI<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm;">
Rimini – Bologna Centrale – Siena</div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm;">
<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm;">
Siena<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
“Bologna Centrale” vem como etapa porque é uma
estação de comboio que mais parece um aeroporto com pelo menos cinco andares
subterrâneos. Havia uma série de pessoas de aspecto suspeito a oferecerem-se
para me ajudar com as malas, ou a repetirem números de linhas como se fossem
papagaios. “É para o 16-19? É? Para o 16-19? Quer uma mão com as malas?”, e
suspeito que ganham gorjetas com isso. No comboio Rimini-Bologna conheci uma
estudante de literatura. Fomos o caminho todo a falar de Pessoa e de Saramago e
de Calvino e de Tabucchi. A dado momento comentei que a achava muito jovem,
porque as italianas usam imensa maquilhagem. Acho que as espanholas ainda se esmeram
mais, mas as italianas fica pouco atrás. Nos comboios cruzo-me com toda a
gente, e muitas delas mal se lhes vê a íris por detrás da cortina de pestanas
ensopadas em rímel. Afinal tem vinte e quatro anos, não é assim tão mais nova
que eu. Tem a cara limpa e foi a casa (em Pádua) para votar. Há um referendo
para se aplicar algumas alterações na constituição italiana e ela foi responsável
o suficiente para se deslocar até casa e votar. Estava de regresso a Bolonha. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
Em todos os comboios vejo imensos jovens juntos, a
estudar e a sublinhar frases nos seus apontamentos. Os rapazes vestem-se como
aquilo que consigo apenas classificar de pintores (de paredes, com as manchas e tudo, mas sem a dignidade da profissão). Calças de algodão, largas.
Se passearmos o olhar inadvertidamente pela carruagem, vê-se-lhes os
bóxers com facilidade. Todos usam penteados a preceito, rapado aqui, modelado a
cera ou a gel ali. As parkas são quase todas da mesma marca.<i> North Wind
</i>qualquer coisa, acho. Os ténis também têm o seu esplendor, mas é nos telemóveis
que menos se vê o sinal da crise. Ainda só vi de <i>iPhone 6 </i>para cima nas mãos
deles. Não consigo acompanhar, acabei de comprar um <i>iPhone 5</i>. Sou a única
pessoa que trabalha em muitas daquelas carruagens, e curioso que seja a única
que não tenha meios para ter esses apetrechos tecnológicos. Nem um <i>iPad</i>, que
gostaria de ter para poder ler – quem me dera ter <i>e-books </i>aqui! Ao invés entro
em todas as livrarias à procura do “Non ti muovere” da Margaret Mazzantini e
não o encontro. Foi a estudante de literatura que mo aconselhou, e lembro-me de
o ter na lista de “a ler”.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
Dizia eu que a conheci na fila da estação para o
balcão da Trenitalia. Encetámos conversa com facilidade. Uma queixou-se de a fila não andar. A outra contrapôs algo, a outra sobrepôs outra coisa, e quando
demos por nós caminhávamos lado a lado em direcção à mesma linha para apanhar o
mesmo comboio, e ela dava-me inclusive uma mão com as malas. A percorrer as
carruagens, foi óbvio que nos sentaríamos lado a lado, ficou subentendido.
Achei engraçado que seja tão fácil para nós – europeus do sul, portugueses e
italianos – dar-nos. Ali fomos, durante hora e meia, a tagarelar sobre tudo.
Viagens, livros, bacalhau, estudos, propinas, literatura, política, a minha
língua e a língua dela, em que comunicámos sempre. Falar italiano permite-me
isto, e permite também que entenda de que falam os italianos. Sobretudo comida,
engraçado. Sentam-se no restaurante a falar de comida. Do que comeram, do que
vão comer e do que mais gostaram de comer na vida, e como o prepara a avó. À
entrada de uma carruagem, ouvi um italiano para duas raparigas:<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
“São de onde?”, e uma delas responde, rápido: “estou
noiva”. E ele debanda dali, à procura de uma que esteja menos comprometida.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
Tudo isto me faz rir. Outra coisa interessante é o
conteúdo das livrarias. Há os clássicos, as narrativas do momento (<i>A Rapariga
do Comboio</i>, <i>Toda a Luz que não Podemos</i> Ver, <i>Harry Potter</i>, o último volume da
trilogia do Carlos Ruiz Zafrón, um cuja autora não me lembro mas que se chama,
traduzindo literalmente, “A neve há-de proteger-nos”). Encontro Pessoa sem
dificuldade, mas não se encontra quase nada em inglês - o que há são os clássicos da <i>Penguin</i>, o <i>Eat, Pray, Love</i>, os livros do Dan Brown e do Stephen King. Quase tudo são livros
cor-de-rosa e ligeiros - <b>o amor isto, o amor aquilo</b>. Traçará isto todo o perfil de uma cultura?<br />
Muitas pessoas das minhas andanças livrescas morreriam de ressaca nestas
livrarias. Não há nada ou quase nada dos romances históricos cor-de-rosa ou dos
eróticos que em Portugal tanto sucesso fazem. Vê-se o <i>Fifty Shades of Grey</i>,
claro, mas na edição inglesa. Parece que a edição italiana não teve grande
impacto. Será porque a sensualidade é outra coisa para os italianos?
Depois vê-se Marina Fiorato e Sylvia Day, mas mesmo os destas que estão pelas
prateleiras são poucos e não me parece que gozem de grande saída ou destaque.
Não reconheço nenhum título.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
Da minha parte, leio as sinopses dos livros do Calvino,
folheio o <i>Afirma Pereira</i>, do Tabucchi, que li enquanto estudava italiano, e
encontro o <i>Venuto al Mondo </i>da Mazzantini, mas não o <i>Não te Mexas</i>. Entendo
que vou ter de o comprar em italiano, quando o encontrar, e tentar ler. Vamos ver no que dá.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
Eu e a estudante de literatura – é mais engraçado
chamá-la assim -, despedimo-nos em Bolonha e arranco para o meu “binário”, onde
me espera o comboio para Florença, e daí tenho um regional para Siena. No
<i>Frecciarossa</i> para Florença vou meio a dormitar, apenas ganhando algum alento
quando leio, no ecrã exposto aos viajantes “estamos a viajar a 285km/hora”. Não
admira que sejam nem trinta minutos de Bologna Centrale a Santa Maria Novella. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
Com dificuldade arrasto as malas pela estação de
Florença até ao sítio de onde parte o meu regional, com paragem em todas as
estações. Preparo-me para uma hora e meia de babanço contra a janela, posto que
acabei de ler <i>Viagem ao Coração dos Pássaros </i>e que, apesar de ter aberto os
dois malões na estação em Bolonha, não encontrei <i>A Um Deus Desconhecido</i>, do
Steinbeck, que é o último livro que trouxe para ler, porque os outros três
foram despachados em cinco dias. Mas aqui nada acontece por acaso, por isso a
meu lado vem sentar-se um casal que fala um inglês aberto e límpido. Começo a
roer-me de curiosidade. Não são britânicos, não são irlandeses nem escoceses.
Então não resisto e meto conversa. São de Sydney. E assim começa outra conversa
de uma hora. Tratam-se de Lucy e Richard, ela professora de Japonês aposentada
e ele … nem cheguei a perguntar o que fazia. Ela fascinou-me. Morou no Japão, fala e ensina
Japonês e conhece praticamente o globo terrestre todo. Ele ia acenando com a
cabeça, também ele culto mas ligeiramente à sombra do discurso dela. Posto que
fomos os primeiros europeus a chegar ao Japão, por via das missões jesuítas,
ela está familiarizada com algumas particularidades da nossa cultura, embora
sem nunca ter visitado Portugal. Em comparativo, é a décima quinta vez que vai
a Itália. Rumam a San Gimigniano, nomenclatura que ela, com todo o seu
conhecimento em Japonês, não consegue obrigar a língua a articular. Diz que acha que a palavra “pão”
em Japonês veio do português, porque parece que introduzimos lá a base para a
famosa “sande”. E eu falo-lhe de Obrigado – Arigato, talvez mo soubesse
explicar. Não sabia dessa associação, não pode ajudar-me. O Richard olha para
mim – quem terá mais sardas? Eu ou ele? -, e diz que se os portugueses tivessem
insistido no território umas milhas a sul de Timor, agora estaríamos todos a
falar português. É a primeira vez que um australiano (conheci alguns de
Melbourne) me diz com todas as letras “´Fomos quase colonizados por vocês”.
Também sabe do documento com a ilustração do canguru do século XVI que foi
encontrado há uns anos num arquivo qualquer norte americano.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
E, depois, a conversa estende-se para o ADN. Para o facto
de a Lucy ser meio britânica e meio irlandesa, mas ter ido viver para a Nova Zelândia
quando tinha só dois anos, e depois na idade adulta foi para o Japão. Diz que
não sabe onde foi buscar o cabelo e os olhos escuros. O Richard interpõe que
provavelmente os celtas que povoaram a Irlanda eram provenientes da Península
Ibérica, coisa que descobri há pouco tempo numa das minhas aulas de inglês – em
que ensino e aprendo na mesma medida com os meus séniores. Talvez a família
irlandesa dela tenha algo de peninsular no passado longínquo. Quem sabe…<br />
Começamos a olhar-nos como parentes, e ambas adoraríamos fazer um estudo do nosso ADN. Infelizmente, além de caro é pouco preciso. Dizer-me que sou da Península
Ibérica não basta… Espanha não é Portugal. Separa-os a história e as espadas e
a cultura. E depois há o meu avô angolano e a tetra-avó ruiva. Misturando tudo
isto, imagino que o meu ADN venha dos quatro cantos do globo. E deu nisto… Umas
quantas doenças típicas de lugares onde os raios solares chegam à terra com
diferentes obliquidades. Não podíamos ter ido pela via das imunidades?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
Quando descem, a fim de seguir para a aldeola
medieval e muralhada que defende o “melhor gelado do mundo” – é mesmo,
provei-os em 2013 –, fico sozinha na carruagem com um italiano de cabelo à
Roberto Carlos nos anos 90 que não se coibiu de nos olhar durante todo o tempo.
Não gosto que me olhem fixamente, por isso quando mete conversa comigo – já os
dois sozinhos na carruagem – finjo que não entendo. Ensaio algumas respostas tortas, tipo "O que que acha que ia acontecer se lhe desse conversa?" ou "Acha que qualquer estrangeira vos cai aos pés? Por favor, já estou vacinada. Já agora, vá cortar essa guedelha!". Depois lembro-me que as pessoas se esfaqueiam por coisas menores, e decido que vou optar por me fingir de surda ou de parva ou, para jogar pelo seguro, de ambas.<br />
Por cima do ruído dos
carris, em vez de desistir começa a fazer gestos com os dedos. Entendo que quer
um lenço e estendo-lhe um. Depois, quando vem a pergunta “de onde és”, cruzo os
braços por cima da mala e viro-me para a paisagem toscana, de súbito silenciada
e emburrecida pelos ciprestes.<br />
<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
Chego a Siena e o motorista do táxi é de Pisa.
Tagarelamos durante os dois minutos que demora a subir ao centro, e deixa-me na
<i>Via Banchi di Sopra</i>, que é a dois passos (literais) da <i>Piazza del Campo</i>, onde em Julho e a 16 de Setembro se dá o famoso Palio, uma corrida desenfreada de cavalos. Estou também<i> </i>a meia dúzia de passos da Catedral. O recepcionista que me recebe tem uns sonhadores
olhos azuis por entre pestanas loiras e compridas, e tem um travo a abandono
nos gestos. Leva a mala até ao meu quarto, e lembro-me da quantidade de vezes
que subi e desci escadas nesse dia (Rimi-Bologna, Bologna Florença,
Florença-Siena) nas inúmeras estações de comboio por onde andei. Os rapazes de
vinte anos, pálidos e de bochechas rosadas pelo frio, andam ali num engate
silencioso nos telemóveis, encostados às ombreiras das portas e com as suas
calças de pintor (inclusive meio roçadas e rasgadas) e não mexiam um
dedo para me ajudar com as malas. Foram sempre, sempre, mulheres a parar a meio
dos degraus e a perguntar se precisava de uma mão. Uma vez disse a uma, perante
uma série de matulões a teclar, que são sempre as mulheres a oferecer-se, mas
que recusava a ajuda dela, porque tinha dez minutos antes do comboio chegar para subir
dez degraus com 30kg, preferia fazê-lo por mim mesma. Ela diz-me, na simpatia que lhes é nata, que se oferecem porque se identificam. <i>Brave</i>!
Infelizmente, dentro das carruagens, tentei por várias vezes elevar os tais 30kg
acima da minha cabeça. O problema não é a força nem o peso, mas sim o quão
altos são os compartimentos para as malas. Com um metro e cinquenta as malas
ficam suspensas da minha mão (também ela eternamente de criança) e acaba por
vir um senhor de meia idade ajudar-me com resignação. Sinto-me um bocado
aborrecida por não poder elevar as minhas malas por mim mesma, mas hey… pensava
que estaria a rasgar cascalho pela Toscana adentro, e ao invés estava a viajar
a quase 300km/h num comboio feito para pessoas de dois metros. Se tivesse sabido, imagino tanta coisa teria ficado em casa… Uma mala teria bastado.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
Abro a janela e sei que terei uma tarde de trabalho
pela frente. Porém, a vista dos telhados sienenses deixa-me boquiaberta. Estive
aqui há três anos mas apenas por uma tarde. Parece-me melhor agora, com as ruas
quase vazias por ser época baixa. Só se houve falar italiano nas ruas e as
pessoas cumprimentam-se, suponho que sejam todos vizinhos e que sejam todos de cá. As
decorações de Natal são lindíssimas, há flores, árvores de Natal nas praças e coroas de natal. Os javalis, que são o símbolo da região, têm barretes natalícios, e a cada loja há chocolates e <i>panettoni </i>nas montras.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
Sou atendida no “La Costa”, na <i>Piazza del Campo</i>, por
um jovem simpático romeno, que me traz <i>penne alla bolognese </i>e um recipiente com
parmesão ralado. Já me habituei a cobrir a massa com ele. Fico a ver as poucas
pessoas que estão sentadas nos veios do chão, que é uma espécie de concha
aberta para um Palácio e para a Torre La Mangia, que vejo da janela do quarto.
Como a massa acompanhada por um vinho tinto encorpado, e arranco para me sentar
um bocadinho junto à fonte na Praça. Às sete da tarde é noite serrada.
Por um impulso estúpido, atravesso a praça e compro um maço de tabaco e um
isqueiro, para depois voltar a sentar-me no mesmo lugar. Acendo-o e
dou umas baforadas, a pensar que foram os 5,30€ mais mal gastos da minha vida.
Apago o cigarro poucos minutos depois de o acender. Soube-me pessimamente mal.
É só que precisava de algo para me acompanhar enquanto ouvia a última ária do Acto I da <i>Madame Butterfly, </i>ainda a usufruir do wi-fi do restaurante.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
Por falar na dita cuja, chegada ao hotel começo a
trabalhar – há-de prolongar-se a tarefa até à meia noite e meia – enquanto dá a
“Casa Mika” no Rai 2. É um <i>show</i> que me parece em directo em que Mika (libanês
naturalizado britânico, descubro) fala italiano e canta com convidados
(incluindo Kylie Minogue e a Chiara, e a minha canção de amor já foi o Dueto
Mika-Chiara “Stardust”. Foi ele que nos deu essa música, disse aquelas coisas parvas que as miúdas apaixonadas gostam de ouvir. "Esta música faz-me pensar em ti". Não me esforcei mais para dar banda sonora à coisa, ao menos poupavam-se as minhas canções de amor favoritas para voos mais altos. Na época o<i>
ragazzo</i> ficou muito surpreendido por eu saber a parte da letra que é em
Italiano… <i>Ma dai!</i> Quis o destino que quando eles se juntassem para cantar essa música
no programa, eu estivesse em video chamada com a minha irmã, a tentar saber da
gata, e portanto com a TV em <i>mute, </i>e também isso me deu vontade de rir). O
homem é meio estranho, mas ainda assim trabalho enquanto o oiço cantar. Parece
que está tudo em câmara lenta, até durante as danças, e chego à conclusão que esse programa
dificilmente teria grandes audiências em Portugal. No telejornal falam da
<i>Madame Butterfly</i>, que estreia hoje no La Scala, a abrir a estação lírica.
Trata-se da primeira versão escrita por Puccini, a mesma que foi um fiasco em
1904. Fantástico que seja notícia aqui, mas afinal até o antigo rei de Espanha
vem assistir. Marcelo, não foste convidado?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
Por volta das duas da manhã ainda se ouviam risos e
cantorias na rua, além de que podia ouvir-se a conversa toda dos amigos em
cavaqueira nos inúmeros bares em redor. Perguntei-me se a lei aqui não é
aplicada – ou se nem existe, por impossibilidade cultural. Até achei engraçado
e deixei que me embalassem, mas depois ouvi umas batidas ritmadas, tipo alguém
a pregar um prego na parede, e achei que aquilo já era demais. Uma coisa é não
controlares a alegria intrínseca à tua natureza e falares alto e dares risadas
na rua, outra é pregares um prego às duas da manhã. Mas depois lembrei-me que
isto é Itália, a terra do amor e das emoções à flor da pele, e percebi que que
estava a embater no tijolo laranja da região não era um martelo, mas sim uma
cabeceira de cama. Não é a primeira, mas foi a mais contida até agora. Em Brescia
a ópera – a moça era soprano – durou quarenta e cinco minutos com direito à
orquestra de voz, carnes e estrado chiadeiro. <o:p></o:p></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
Adormeci em paz, porque parece que tudo está no seu
lugar no mundo. No dia seguinte começam as férias. Dormir, ler, comer. A minha
versão de “Eat, pray, love”.<o:p></o:p></div>
<div style="text-align: center;">
<iframe allowfullscreen="" frameborder="0" height="315" src="https://www.youtube.com/embed/utVyZaEapz0" width="560"></iframe></div>
Céliahttp://www.blogger.com/profile/17737608801129261940noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4028446859064405647.post-27257975692782279962016-12-04T14:33:00.000-08:002019-02-13T03:43:15.987-08:00Il Viaggio in Rosa - Parte V<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: inherit;">V<br />
<br />
Verona-Venezia<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: inherit;">Hoje fiz anos. Vinte e sete.
Sinto-me velha, mas obrigo-me a pensar que a vida pode começar num
dia qualquer, e que juventude não é sinónimo de mais vida, bem como
velhice não tem de ser significado de menos vida. Continuo a sentir que a minha
vida ainda não começou, embora tenha cada vez mais episódios para narrar. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: inherit;">Tinha um bilhete para as 09:26
Verona-Veneza, mas se há coisa que já entendi é que o que se diz é verdade: não
se pode pedir direcções em Itália. Mandam-te para a esquerda, depois para a
direita, depois de novo para a esquerda. E entretanto ficas a ver o autocarro
ir-se embora. Também não é fácil meteres um plano em marcha, porque a decisão
mais simples é interrompida pela miríade de distracções que estão sempre a
atirar-se para o teu caminho. Decidi que merecia um pequeno almoço a preceito,
mas dois passos em direcção à<i> pasticceria</i> e um mendigo atravessa-se à
minha frente. Traz um terço de plástico branco entrelaçado nos dedos, um boné
verde e a barba tem alguns dias, mas não está completamente desgovernada.
Pede-me cinquenta cêntimos, para comprar um pão. Não tenho trocos nem tenho
companhia para o pequeno-almoço, pelo que acabo por convidá-lo até ao
estabelecimento que está logo ali, num dos ângulos da Piazza Vittorio Veneto.
Senta-se cá fora, na esplanada, apesar de soltarmos baforadas de fumo branco a
cada palavra. Não se deve sentir bem-vindo no meio de tanta gente a beber cafés
e a comer <i>ciambelle </i>no interior. Peço dois cappuccinos, a sandes que
ele escolhe e um brioche, que é um croissant, mas vá-se lá entender…<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: inherit;">Engole o <i>cappuccino</i> enquanto
escalda, e não preciso de dizer nada para que me conte a sua vida toda. É
“químico orgânico”, trabalhava na Alemanha mas teve de voltar por causa da
doença da mãe. Não arranjou trabalho em Itália e faltavam-lhe uns meses de
serviço na Alemanha para ter direito a reforma desse país. Ficou sem nada.
Acrescenta que é obrigado a gastar dinheiro em lâminas porque já lhe têm batido
na rua quando tem a barba grande. Culpa a polícia: diz que se o vêm com a barba
grande julgam logo que é um terrorista. Dá-me um papel rasgado ao meio com o
número de telefone e diz que, se lhe escrever com a minha morada, me manda um
cartão com uma foto de São Miguel Arcanjo. Não tive coragem de lhe dizer que
não acredito nesse tipo de arcanjos.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: inherit;">Perco o autocarro – é domingo, o
pé dói-me tanto que não posso pousá-lo no chão e ando a jogar às escondidas com
os autocarros. As instruções nas paragens não são claras, as pessoas apontam em
direcções diferentes e discutem quem tem razão. Por parvoíce, comprei o bilhete
a partir de Porta Vescovo, mas estou melhor servida de transportes a partir da
Porta Nuova, pelo que decido seguir para lá, mesmo porque o outro autocarro não
passa. Na estação noto que o meu comboio já partiu há meia hora, pelo que me
meto na fila para os balcões da Trenitalia e tento resolver. Dizem-me que posso
usar o mesmo bilhete, desde que vá até à Ponte Vescovo para apanhar um qualquer
regional que vá para Veneza. Largo 1,75€ e sigo viagem para a linha 6, onde me
sento meia hora num banco metálico e gelado, a ler Sylvia Plath e a
perguntar-me como saberei que comboio para na Porta Vescovo, quando todos são
anunciados pelo seu destino final. Reflicto sobre as informações que o senhor
simpático do B&B me tem dado. “Menina, um táxi aeroporto de Verona-centro é
20€”. O taxista pediu 35€ e disse que eu estava maluca (não entrei, claro).
“Menina, o autocarro urbano é 1,10€”. Foi 2,00€. "Menina, de Porta Nuova a Porta
Vescovo são 0,30€". Foram 1,75€. Acordei, portanto, chateada com os italianos.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: inherit;">A dado momento, farta de esperar,
abordo um maquinista. Diz que daí a dez minutos há um regional para Veneza a
partir de onde estou, que raio vou fazer até Porta Vescovo? Então rasgo o
bilhete e 1,75€ ao meio e fico ainda mais chateada. Durante o percurso termino
“A Campânula de Vidro” e nunca vem o revisor pedir o bilhete. Penso que trouxe
três livros, comprei um quarto no aeroporto e no terceiro dia já despachei
dois…Que raio vou ler nos outros dias?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: inherit;">Chego a Veneza e, dois minutos
depois, maravilhada pelas vielas, perco-me. Se não me doesse tanto o pé, era
até engraçado. Havia setas a apontar em ambas as direcções com o mesmo destino.
Fiquei confusa. Perdi a conta ao número de vezes que a ruela estreita, onde as
varandas de ambos os lados quase se tocavam, culminava numa vista privilegiada
para o<i> Gran Canale</i>. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: inherit;">[Quando tinha 7 anos, andava a
dar uma novela chamada Por Amor. Nos primeiros episódios, mãe e filha (na
ficção e na vida real), estavam juntas em Veneza. Fiquei com aquela imagem em
mente, mas também com a sensação de que isso não seria para mim. Que não teria
direito a essa espécie de prazeres, como viajar. Mas cá estou, vinte anos
depois, sentada em São Marcos a admirar os leões alados. Os olhos são sabem bem
onde pousar. Estou feliz por estar aqui, a beleza traz sanidade à alma.
Não sinto que Veneza (ou sequer Verona) seja a cidade do amor. Só vejo turistas
com <i>selfie sticks.</i> Então pus-me a ouvir a Zizi Possi a cantar essa música, que
ficou sempre associada ao sonho que tinha de Veneza. Toda a Itália é um sonho,
mas esta cidade é realmente algo de transcendente. É um labirinto que oferece
um sorriso a cada esquina. Roupa estendida e malas de pele absurdamente caras.
Uma mistura de grandeza e decadência estranha. Uma pomposidade em cada
gondoleiro, mas a crise económica no país. Menos pessoas nos restaurantes e
mais a comerem <i>foccaggie</i> pela rua. Menos pessoas a passear de gôndola
e o olhar enfadado dos condutores, de camisola riscada branca e preta, mais
pessoas no barco motorizado turístico. Menos cristais de Murano e máscaras
venezianas à venda, mais lojas com artigos chineses que vejo à venda em toda a
parte. O turismo democratizou-se. As pessoas que compram <i>selfie sticks</i> e
que apalpam os seios da Giulietta não têm uma única pista do porquê das coisas.
É cansativo descobrir. Hoje aqui amanhã noutro sítio. Mas eu tenho as
aspirações de infância a animarem-me os passos. E por isso, mesmo que cá
regresse, esta vez será sempre especial. Lembrou-me que as coisas acontecem uma
de cada vez e que, se cultivarmos o desejo e formos pacientes, um dia podemos
dar por nós na Praça de São Marcos sem saber como açambarcar tanta beleza e
tanto detalhe com o olhar.]<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: inherit;">Regresso a Verona no comboio
certo, depois de fazer o passeio de 45 minutos pelo <i>Gran Canale</i> e de admirar a
ponte Rialto como deve ser (metem a linha do comboio no ecrã cinco minutos
antes e ele partir, o que é óptimo numa estação como Santa Lucia, com 23
linhas, sobretudo quando cada passo nos arranca um esgar de dor). Fui sempre a
ouvir a mesma música e a reflectir em como ter crescido tão atenta aos ideais
dos anos noventa me moldou para o futuro. Na altura, as pessoas das novelas
eram minimamente decentes e andavam vestidas. Viajar era coisa de ricos e o
casamento era para a vida. Fiquei uma romântica incorrigível por causa dessa
imposição de “obstáculos = final feliz”. Ainda assim, não senti que Veneza seja
a cidade do amor. Senti, sim, que deve ser especial perdermo-nos por aquelas
vielas com o amor da nossa vida. Mas até a selva africana deve ser interessante
com o amor da nossa vida ao lado. E ser picados pelo mosquito da malária ou
perseguidos por crocodilos no Nilo também me parece bem mais suportável nessas
circunstâncias. Pelo caminho apetece-me escrever, mas não tenho papel. Há muito que a vontade de escrever não me espicaçava deste modo. Vou tratar disso nos dias que tiver de férias.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: inherit;">Ao chegar a Verona dou-me conta
de que o pé me dói mais do que nunca. Amanhã vou ao médico, não faço nenhuma
ideia do que possa ser. Não parti nada, não sei nem como aconteceu. Há anos que
tenho o cartão de saúde europeu, mas desta vez ficou em casa. A dado momento do
percurso olho para o lado, para a pessoa que segue em pé a meu lado, e entendo
que é o mendigo do pequeno-almoço. Desfaz-se de novo em agradecimentos e volta
a pedir-me que lhe escreva a fim de poder enviar-me o postal do São Miguel
Arcanjo. Olha-me por detrás dos óculos de míope e decido que lhe vou escrever,
parece-me que gostaria de receber uma carta. A quem pertence a morada, não sei.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: inherit;">Amanhã a aventura continua com
várias paragens, se tudo correr bem durmo em Rimini depois de um dia com as
malas a reboque e o pé que mal posso pousar no chão. Mas já não sei de nada…
Neste momento, se fosse parar de comboio à Áustria já não me espantava muito.
Itália tem esse efeito nas pessoas, parece-me. Uma pessoa perde a direcção e
acaba por encontrar-se a si mesma. Onde irei dar amanhã?</span><o:p></o:p></div>
Céliahttp://www.blogger.com/profile/17737608801129261940noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4028446859064405647.post-365828756334345292016-12-03T14:08:00.001-08:002016-12-03T14:34:43.921-08:00Il Viaggio in Rosa - Parte IV<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
Parte IV<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
Verona-Trento<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgfsaYp7JLLZcxEwxmDdq1-dMs566KqD3jjf2_yY0juDdwCd35WuaSFJbstaiFFQxWbAXAPqddFUcUnCcCuWNDEQk1vO9qF1Q-AAzJJLBxk_0MG3OQhlRLSBTTWyRrR4ImqFVHIPH0p3Ww/s1600/15355694_1344466398905804_5950738926684302101_n.jpg" imageanchor="1" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgfsaYp7JLLZcxEwxmDdq1-dMs566KqD3jjf2_yY0juDdwCd35WuaSFJbstaiFFQxWbAXAPqddFUcUnCcCuWNDEQk1vO9qF1Q-AAzJJLBxk_0MG3OQhlRLSBTTWyRrR4ImqFVHIPH0p3Ww/s320/15355694_1344466398905804_5950738926684302101_n.jpg" width="320" /></a>A primeira vez que sorri hoje foi
quando passaram por mim, no centro histórico de Verona, dois homens a
cantarolar. Reconheci logo a música e não pude parar de cantá-la o resto do
dia. “<i>Parlami d’amore Mariù, tutta la mia vita sei tu…Gli occhi tuoi belli
brillano…</i>”. Já ontem estacionei o carro numa praça em Brescia junto a uma
fachada de onde, a partir das janelas abertas, me chegou a voz de uma cantora
de ópera em ensaio. Depois, junto ao <i>Duomo</i> de Verona, um senhor de idade
apertava o casaco no pescoço enquanto cantava ópera. Sozinho, no seu caminho,
mas a cantar. Os nossos olhos cruzam-se, faz um sorriso e continua a cantar. E
hoje estes dois, lado a lado, a cantar Achille Togliani. Pego no telemóvel e
que se lixe a bateria. Tenho de ouvi-la. Vou a sorrir o resto do percurso. Como
o mercado de Natal se estende por toda a cidade, com os miúdos a celebrá-lo de
gorro e com gritos histéricos, compro uma <i>ciambella</i> com creme de ovo e dois <i>Baci</i>
e vou a lambuzar-me alguns metros, desde a Piazza Erbe à casa da Giulietta. Um
corredor de acesso está totalmente coberto por marcadores e post-its a
prometerem amor eterno. O pátio onde está a suposta varanda é pequeno, e
algumas lojas também lhe dão acesso. Uma das lojas vende lembranças de Natal e
promete uma vista fantástica da varanda a partir do seu primeiro andar. Eu
busco refúgio debaixo de uma varanda, ao cimo de uns poucos degraus. Estão a
cair uns chuviscos de água a caminho de se tornar neve. Estão dois graus e a
atmosfera tem uma neblina branca. Estou muito consciente de que há montanhas
por perto. Como a <i>ciambella</i> que a senhora insistiu em aquecer para mim. Sabe-me
pela vida, e ainda mais porque, mais interessante que a janela da Giulietta são
as pessoas que se apinham por baixo, a tocar na sua estátua de bronze. Ambos os
seios já demonstram desgaste. Parece-me absurdo que esteja ali uma peça com
tamanha elegância, tamanha dignidade no amor, e que as pessoas cheguem de
telemóvel em punho para a apalpar e pôr a língua de fora ou fazer bico de pato
para as fotos. Incomoda-me de tal modo que não me detenho por mais de dez
minutos. Apanho uma Giulietta loira na varanda com a minha Canon e sigo o meu caminho. Custa-me
pousar o pé direito no chão. Ontem doía um pouco, mas hoje dói mais. Devo ter
torcido ao descer do autocarro. Ao final de tantos anos finalmente preciso do
cartão europeu de saúde, mas desconfio que ficou em casa. Cada passo dói cada
vez mais, e entendo que deveria estar quieta. Mas não posso: não vou deixar de
ir admirar a Arena. Lá a encontro depois de muito indagar, porque todos os
restaurantes e tabacarias a mencionam, mas não se vê a estrutura em parte
alguma. A Arena não é mais que outro Coliseu, mas neste há o festival de Ópera
de Verona. O meu maior sonho artístico é poder ouvir ver <i>Turandot </i>lá, em Agosto. As fotografias prometem uma atmosfera de
conto de fadas. Custa a imaginar os italianos em silêncio, mas suponho que
durante as duas horas que dura a composição do Puccini, consigam.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
Quando dou por mim é hora de
partir para Trento. Não é difícil encontrar o “binário” de onde parte. Vou a
ler um romance cor-de-rosa o caminho todo, chego em menos de nada e nem tenho
de ligar à Giuliana, porque está mesmo ali, de sorriso nos lábios e parka prateado à minha espera. Abraçamo-nos e deixo-a mostrar-me o centro de Trento.
Estamos rodeadas de montanhas e de fontes que prometem um alívio do impiedoso
calor estival. Nesta altura, ao invés, há aldeias de Natal em toda a parte, com
neve falsa nos telhados, renas à porta, miúdos a gritar, pinheiros verdadeiros
iluminados, ciambelle à venda, e ainda azeite, charcutaria, queijos, licores,
sabonetes naturais e decorações de madeira para as árvores de natal. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
Mostra-me o Duomo, que tem duas
escadarias enormes em cada lado da nave central, e que exibe, sobre a pedra
cinzenta do interior, pinturas medievais. Um instante antes de sair reconheço
Maria com o filho no colo, de manto azul-celeste. Comemos um <i>strudel trentino</i> e
bebemos um café. Como é Itália, o emprego não se contenta com "um café", e fica a olhar para mim de bloco em punho. Olho
em redor: em nenhuma mesa há dois cafés iguais em quantidade, cor, ou adições.
Uns têm espuma branca, outros devem ter leite, outros natas, outros licor,
outros são expressos e outros são cafés longos. Digo-lhe que seja criativo.
Traz-me aquilo que seriam três bicas portuguesas numa chávena alta, mais fraco
que o nosso café mas menos aguado que o Americano. Todos sorriem, são simpáticos,
falam alto, dizem “Salve”, desejam boas festas. A Giuliana cruza-se com uns
quantos amigos. A dado momento falava-me da avó. A propósito de nada. Diz-me
que a avó morreu quando tinha oito anos, mas que lhe foi tão especial que,
apesar de já ter metade da família no céu, é sempre a ela que recorre em
preces. Deixa-me à porta da Igreja de San Lorenzo e que, se tiver tempo, devo
entrar. Entretanto tenho meia hora para agradecer ao Ricardo, a voz que me
salvou a pele ontem ao cancelar a reserva do hotel de Trento sem custos. Diz
que está no bar da estação de comboios e que vou reconhecê-lo porque está a
escrever num portátil. Como não vejo bar nenhum, na estação, pergunto a um
velhote. O velhote pergunta-me que tipo de bar quero. Estou só a usar o
vocabulário que o Ricardo havia usado na <i>sms</i>. Digo que vou encontrar uma pessoa
que me disse que estava no bar. Ele aponta o sítio e é tão simpático que estico
a mão para agradecer. Segura-ma, afaga-me os dedos e pisca-me o olho. Vejo-lhe
um espasmo no lábio e pergunto-me: será que?... E então diz que, se estou a
mentir e preciso só de encontrar o bar, sem que ninguém lá me espere, ele pode
levar-me a outro bar que conhece onde podemos aquecer-nos os dois. Ri-me.
Tratei-o como se fosse meu avô. Vou-me embora a rir e de facto vEjo de imediato
o homem ao computador. Tem uma página do<i> word </i>aberta com inúmeras coisas
escritas. Chamo o nome dele, assente e ri-se. Então pergunto na brincadeira se
é escritor. Sim – mete o computador na mala e saímos dali com aquela facilidade
com que os “latinos” têm em dar-se. Andamos cinquenta metros até à Igreja de
San Lorenzo, que lhe digo que quero visitar. Pelo caminho diz-me que está a
escrever um romance sobre o tráfico de crianças durante a guerra dos balcãs.
Fico impressionada. Dentro da igreja de San Lorenzo, vêm-me as lágrimas aos
olhos. É românico puríssimo, à excepção do tecto que está caiado de branco-pérola
e raiado de estrelas. Faz sentido, porque penso em toda a gente que me salvou
do carro como estrelas. Ele entre elas. Tinha-lhe comprado uma estrela de
madeira no mercado de Natal e dei-lha. Era o momento certo. Explico porquê. Já
estamos de saída, estava a haver missa e não podemos falar. Passaram-se dez
minutos desde que o cumprimentei no bar da estação. Pergunta-me onde quero ir.
Digo que nos podemos sentar um bocadinho num banco no jardim, por entre os
azevinhos e as cabaninhas de madeira cheias de criançada. Explico que o meu
comboio é regional e daí a vinte minutos, mas que se o perder posso apanhar
outro regional com o mesmo bilhete. Então sorri-me sem ponta de vergonha e
diz-me que conhece um sítio ali perto onde podemos aquecer-nos. Respondo que
acabei de beber café. Diz-me que não era bem a isso que se referia. Que era o
destino, que era um romântico e que devíamos aproveitar para estar um bocadinho
a sós. Com graça, disse que era melhor ir apanhar aquele comboio porque estava
a ficar de noite. Tinham-se passado quinze minutos no total. Leva-me ao comboio
mas diz de imediato que tem de voltar para o hotel, está muito complicado de
reservas nesta época do ano. Fico aliviada e volto ao livro. Não demora muito
até que uma menina vestida de elfo me cumprimente. A mãe conta logo que a filha
acabou de sair da escola dos elfos com distinção. Reparo nas orelhinhas no
barrete. O comboio vem e a penúltima personagem importante do dia foi o
revisor. Vê o meu bilhete e engraça com o meu nome. Pergunta de onde sou. Fica
extasiado quando falo em Portugal. Diz que esteve lá com a mulher e que amou,
acrescentando que muitos amigos estão a ir para lá depois da reforma. Falamos
um bocado e uma vez mais o desejar felicidades (e um aperto de mãos sem maldade
mas com muita cordialidade). <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
- Última pergunta, Célia – diz. –
Como é que uma rapariga de um país lindo como Portugal anda com uma sweatshirt
a dizer Irlanda? <i>Ma come mai?</i><o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
Damos uma risada e ele vai-se
embora, diz “boa tarde” em português e “obrigado”. O nosso riso tinham ofuscado o das crianças por um bocado. Então, quando volto a atenção para o livro, começo
a ouvir as brincadeiras dos <i>bimbi</i>. Os pais dizem três, quatro, cinco vezes “<i>Basta,</i>
Alice!”, mas a Alice e a amiga continuam aos risinhos e aos guinchos por meia hora. Toda a carruagem estremecia com as suas passadas no corredor central, conforme jogavam à apanhada e escalavam aos bancos vazios. Não dei por saírem, mas um velhote vira-se do banco da frente e sorri-me. Diz “acho
que as crianças já saíram”. Damo-nos todos conta do silêncio na carruagem e há
uma risada colectiva. Depois conta que tem uma neta de dez anos e que corre
como um “capretto”. Ainda não fui ver o que é, mas entendi que seja um caprino.
Amorosos, os italianos… ainda que um bocado rebarbados.<o:p></o:p></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
Estou tão feliz. E amanhã… oh,
amanhã!<o:p></o:p></div>
Céliahttp://www.blogger.com/profile/17737608801129261940noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4028446859064405647.post-51919437859294534012016-12-03T13:16:00.002-08:002016-12-03T14:11:28.485-08:00Il Viaggio in Rosa - Parte III<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: inherit;">Parte III<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: inherit;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: inherit;">Brescia – Verona<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: inherit;">Se tudo tivesse corrido de acordo
com o previsto, o subtítulo seria “Brescia-Trento-Bolzano”. Ao invés, consegui
pegar no carro com relativa calma. Estacionei no centro histórico de Brescia e
fiquei tão orgulhosa de ter metido o carro entre outros dois numa rua em
movimento que quase tirei foto. Só não o fiz porque estava demasiado frio para
tirar as mãos dos bolsos. Itália é sempre bonita, e mesmo em Brescia havia uma
fonte maravilhosa. Reconheci-a da foto do hotel, a preto e branco nos anos
vinte, onde surgia com a água a pender em pingentes de gelo. Não me pude deter
porque tinha reuniões marcadas. Visitei os clientes – sempre muito simpáticos,
falam de Portugal com carinho. Falam na crise em Itália, falam nos estragos que
o voo Ryanar de Bergamo tem causado, porque as pessoas arranjam-se sozinhas
para viajar. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: inherit;">A meio da manhã insiro um novo
endereço no GPS e vejo que é uma morada a 45 minutos do centro histórico de
Brescia, na direcção de Milão. Entendi que algo estava mal, porque sabia que
tinha organizado as visitas de modo a tornar as deslocações cómodas. Entendo
que não posso fazer esse desvio porque ainda tinha várias outras reuniões a
200km daqui. Arranco para o escritório da Avis a fim de devolver o malfadado
GPS que me ia matando na primeira noite. Demoro meia hora a dar com o sítio
(que segundo o GPS era dali a 10 minutos) e não mo aceitam. Ao telefone haviam
dito que não havia problema, em pessoa dizem-me para o deixar juntamente com o
carro em Siena no dia de entregá-lo e explicar a situação. Entretanto liga o
cliente do escritório a 45 minutos a dizer o que eu já imaginava – que o GPS
estava bêbedo e que ficam no centro histórico. Dá-me outra morada (nº 100) e
arranco. Daí a quinze minutos, conforme planeado, paro na rua que me havia
dado. Porém a rua termina no número 38. Decido parar o carro e atravessar uma
avenida enorme (onde o trânsito se faz à italiana – carros, motas, pessoas de
bicicleta) e descubro que do outro lado a rua tem outro nome. Já não é a mesma.
Telefono ao senhor e entendo que inventou aquele número de porta. É um milagre
que o GPS me tenha levado até ali. Estaciono o carro e a máquina come-me 2,40€
por uma hora, e o arrumar fica com mais 0,60€ sem factura só porque tenho
demasiado medo que se vingue no carro alugado. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: inherit;">Falamos durante um bocado e
entendo que é hora de partir para Trento. É hora e meia de viagem na
auto-estrada e às quatro e meia o sol põe-se. Não quero conduzir de noite
porque é ainda mais aterrorizador. Então despeço-me e arranco, com o GPS
instalado no banco do pendura sobre uma pilha de livros e documentos, a fim de
ficar facilmente no meu ângulo de visão. Não demora muito para que eu entenda
que o Google maps do iPhone está mais perdido do que eu. Manda-me virar à
esquerda numa rotunda, como se não fosse rotunda, e mais adiante manda-me
encostar à direita e manter-me à direita, quando vejo que estou a meter-me para
a auto-estrada em direcção a Milão, quando deveria ir para a direcção à
esquerda, que seria Veneza. Entro na auto-estrada para Milão porque é tarde
demais para voltar atrás. Agarro o ticket. O GPS diz para sair na primeira
saída e voltar a entrar em Brescia. Assumo que fui eu que ouvi/vi mal. Saio, o
ticket dá 0,60€ só pela brincadeira. Volto a entrar em Brescia. Volto a sair
para a auto-estrada. Volta a mandar-me para a direita, para Milão. E eu
convencida que a direcção nunca poderia ser essa, meto-me para Veneza (era a
direcção certa) na esperança que ele abra a pestana e actualize o percurso.
Durante os primeiros dois ou três quilómetros insiste que devo sair. Depois cala-se e diz que tenho
37 km nessa estrada (A4) antes de virar para a A22 em direcção a Trento.
Respiro fundo. Meto-me na faixa do meio sempre que há faixas de aceleração à
direita. A certo ponto decido que me vou meter atrás de um tolleyzeco que vai a
70 na auto-estrada e sigo assim a minha vida, em tranquilidade, durante vinte
minutinhos. Mas é sexta-feira e a auto-estrada está cheia de camiões. Começam a
acumular-se atrás de mim. A ultrapassar-me e ao trolley. A dado momento tenho
quatro ou cinco à minha esquerda, o trolley à frente, um camião cujos faróis
emolduram perfeitamente o meu retrovisor, coladíssmo a mim, e carros a entrarem
na faixa de aceleração à esquerda. Mentalizo-me que vou morrer e pergunto-me se
disse tudo o que devia a quem devia dizê-lo. Começo a pensar se fiz tudo o que
podia pelas minhas miúdas, lembro-lhe de alguns detalhes práticos e legais que
poderia ter tratado. Ganho coragem e, por uma brecha, safo-me pela esquerda.
Fujo dos camiões, assim que posso meto-me na faixa mais à esquerda e vou a
rasgar caminho. Para trás ficam os camiões e as suas buzinadelas. Lembro-me de
ter travado a dado momento, quando o de trás se colou praticamente à minha
bagageira, porque tinha acelerado tanto para fugir dele que estava em cima do
trolley. Quando dou por mim tenho os olhos húmidos de lágrimas. Prometo-me que
choro mais tarde, já vou hiper tensa, só me falta chorar e não ver nada. Além
disso, tenho um Audi encostado a mim, a querer passar-me por cima, e tenho de
arremeter para a direita. O Audi lá vai, desaparece num ápice. Se eu ia a 110
ele seguramente vai a 150. Por fim surge a saída para Peschiera, o sinal da
estrada de saída da auto-estrada ordena um máximo de 40km/h, mas eu vou a 70 e
o carro atrás do meu vai de novo colado e a apitar. Passo pelas caixas para
pagar, estendo uma mão à senhora com o dinheiro enquanto olho para o GPS e vejo
um cruzamento (manda-me virar à esquerda) e olho para a frente e vejo outra
rotunda… <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: inherit;">Tento ler o nome da cidade para
onde o GPS me manda, a fim de encontrar a saída na rotunda. Nada. Engano-me,
quando dou por mim estou de novo na auto-estrada e na mesma direcção de onde
vinha. A faixa de aceleração está prestes a terminar, tenho um carro atrás de
mim com prego a fundo e da esquerda vários carros passam a voar. Lembrando-me
de outra experiência, entendo que se a faixa terminar tenho de parar, não me
posso atirar para a frente dos carros que vêm da esquerda. Mas o que está atrás
de mim já vai a apitar e eu ainda só dei um cheirinho no travão. Atiro-me atrás
do carro que acabou de passar, antes que o novo passe. Corre mais ou menos bem
para mim, que já estou a circular. Mas o carro à frente do qual me pus apita, e
o que vinha atrás de mim na faixa de aceleração também fica a apitar. E eu
entendo que não sou me vou matar, como vou levar alguém comigo. E é então que
decido: perante o próximo erro, tenho de desistir. Não posso insistir mais.
Tentei o mais que podia. Arrisquei mais do que o meu tempo, a minha vontade, a
minha energia. Arrisquei a minha vida porque, até esse momento, não tinha
entendido que estaria realmente em risco. Mal pus os pensamentos em ordem,
passaram dez minutos e a primeira saída que me surge diz “Verona Aeroporto”.
Verona é onde era suposto estar no dia seguinte. No dia seguinte era suposto
guiar de Trento para Verona. Entendo que é um sinal. No aeroporto à rent-a-car.
Logo, posso desfazer-me do carro lá. Posso pedir ao hotel onde ia ficar que me
acolha uma noite antes. Ligo ao hotel de Trento, em pranto, e explico que não
consigo. Não dá. Não tenho modo de chegar lá, lamento imenso. Ele diz que
entende. É a voz de uma estrela ao telefone. Diz-me que a minha decisão é sábia
e que é o proprietário do hotel. Vai cancelar tudo sem gastos. Se pudesse, ia
buscar-me, mas é longe. Se pudesse, reconfortava-me, mas é longe. Agradeço.
Diz-me que não sabe mexer com certas tecnologias, que cada um tem as suas
dificuldades. Lá porque toda a gente guia, não significa que seja fácil. E
lembro-me de coisas que me são fáceis mas que nem todos conseguem fazer, como
escrever. Então a voz dele acalma-me e consigo delinear um plano na cabeça: vou
entregar o carro. Depois vou pegar nos malões enormes e ligar ao hotel de
Verona. Depois vou pedir desculpas às pessoas que ia visitar. Vou visitar uma
delas no dia seguinte de comboio, se me deixar. À outra vou mandar um postal
com uma graça qualquer. Vou apanhar um autocarro e vou para o hotel. Fico lá
nos próximos dias, a respirar e a organizar os próximos dias. Certo que será
mais difícil andar de transportes públicos com as malas, mas não será
impossível.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: inherit;">No instante em que assino a
entrega do carro, a vida começa a fazer sentido. A senhora oferece-se para ir
ela buscar o carro ao parque onde o estacionei. Fala comigo como se fosse filha
dela e elogia-me a maturidade. Digo-lhe, aos soluços (aqueles do pós-choro),
que achava que era mais capaz. Ela diz-me que o importante foi a maturidade com
que assumi que não conseguia. Que o resto paciência. Explico que esperei, a
todo o instante, que alguém me viesse tirar o carro da mão e me proibisse de
conduzir, pelo bem de todos. Diz-me que trabalha no aeroporto mas que tem medo
de aviões e nunca andou de avião. Nem sei o nome dela… <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: inherit;">As peças começam a encaixar-se.
Primeiro o aeroporto é-me oferecido. Depois a senhora ruiva e amorosa do rent-a-car.
Primeiro o senhor não sabe mexer em telemóveis. Só sms e chamadas. Depois a
senhora que vê os aviões a passar mas nunca andou neles. Dois anjos. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: inherit;">Em seguida o hotel diz-me que tem
vaga, se quiser posso ir um dia antes e ficar por três noites. Explica-me que
só tenho que apanhar um autocarro, e depois outro. Em meia hora estou no hotel.
Entro no aerobus tão contente que as malas não me pesam nada. Apesar de o
motorista me oferecer ajuda, subo a maior. Vou a rir-me. Há um dia e vinte
horas que não me ria (é o tempo em que tive o carro, segundo o recibo).
Sento-me perto do motorista e a primeira rapariga que entra, com todo o
autocarro livre, escolhe sentar-se ao meu lado e participar na conversa. Vamos
a rir-nos os três até ao centro de Verona. Ele diz-me que está “naquele buraco”
de conduzir sempre o mesmo percurso há vinte e cinco anos. A rapariga diz-me
que veio trazer o pai ao aeroporto e que vai voltar para Bolzano. Está
stressada, é bonita mas tem muito rímel. Tem os olhos húmidos e diz que está
muito cansada. São tão simpáticos e ficam tão contentes por eu adorar Itália…
quando desço do autocarro em Verona Porta Nuova, tenho um a levar-me a mala
enquanto eu levo a outra e o terceiro me espera do passeio a sorrir. “Vieni,
vieni”. Oiço as palavras do Pinkerton para a Madame Butterly. <i>L’amore non uccide, ma da vita!</i> O senhor
motorista aponta o sítio exacto de onde sai o próximo autocarro, e em trinta
segundos o mesmo chega e eu arranco.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: inherit;">Nessa noite caminho quinze
minutos até ao centro de Verona. Na Piazza del Duomo, admiro a fachada da
catedral. E de repente a estátua de um anjo aponta a porta. Lembro-me da minha
escultura de anjo favorita, a que está logo à direita quando se entra na Igreja
de Santa Maria degli Angeli e dei Martiri, em Roma. Emociono-me. Estou onde
tenho de estar.</span><o:p></o:p></div>
Céliahttp://www.blogger.com/profile/17737608801129261940noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4028446859064405647.post-66529913842735537242016-12-01T13:22:00.004-08:002016-12-03T13:17:49.486-08:00Il Viaggio in Rosa - Parte II<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
Parte II - Brescia</div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
Estou a ficar uma cagona com a
idade. Conduzir tira-me da minha zona de conforto. Não estou habituada e não
lido bem com a imprevisibilidade. Não sei onde estou e inquieta-me ser eu a
disturbar o fluxo do trânsito. Tenho sorte – muita sorte – por não entrar em
pânico e por manejar mais ou menos bem os carros. Posso pôr as mudanças tarde,
e etc., mas quando me sinto no limiar dos nervos consigo segurar o volante mais
um bocadinho até poder parar e respirar ou chorar ou seja o que for. Tenho de
procurar o lado positivo disto. Tenho estado atenta e saio com relativa
facilidade dos problemas em que me meto. Hoje tive de guiar quarenta e cinco
minutos na auto-estrada. A cada instante dizia-me que faltavam menos km.
Faltava menos tempo. Fui quase sempre na faixa do meio, mentalizada de que os
outros hão de me contornar por onde entenderem. Numa saída da auto-estrada, fui
para as máquinas dos camiões para validar o bilhete. Tenho sempre de sair do carro porque a minha mão
não chega à máquina. O senhor atrás foi simpático, esperou e entendeu de
imediato que eu não fazia ideia do que estava a fazer. São muitos anos na
estrada, suponho. Noutra saída afastei-me da direita porque estavam a entrar
carros de uma faixa de aceleração. Depois o GPS disse que a minha saída era já
ali, e tive de me meter para a direita meio à bruta. Coitada da rapariga que me
apitou. Juro que os nossos carros ficaram a meio braço de distância. Não
acredito no Deus das igrejas, mas sei que tenho uma estrela. Sempre tive. Obrigada,
estrelinha. Sei que estás aí a todas as horas. A minha família tem uma espécie
de maldição em cima, mas há essa força boa a contrariar tudo e a pedir-nos
calma e fé. Vou ter fé que amanhã vou conseguir guiar três horas com
serenidade. Vou fazer planos para parar a meio, porque ir ali hirta uma hora já
foi demais. Detesto guiar à noite, não vejo nada. Além de que vou sempre com a
impressão de que as minhas luzes estão mal. Não devia ter ido ao <i>google</i> ver os símbolos, porque agora
percebi que estiveram mesmo mal. O lado bom é que serão só quatro dias a
conduzir, e um deles já passou. Agora faltam três dias, só. Mais ou menos oito
horas na estrada e acabou-seo meu suplício. Sempre gostei da ideia de conduzir
e sempre tive um certo desprezo às pessoas que não conduziam por medo. Achava
(e acho) que os medos são para ser ultrapassados. Porém o medo não é
propriamente uma coisa racional. Só não posso deixar que me paralize.
Entretanto, mal posso esperar para largar o raio do carro e ficar sozinha com 10kg
em cada mão nos transportes públicos…<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
Assim que isto acabe, duvido que toque num carro tão depressa. Acabou-se-me o encanto pela condução. Admiro todas as pessoas que se metem ao volante de um, à mercê de todos os malucos que por aí andam, sem a mais vaga ideia do que estão a fazer. Como eu.</div>
Céliahttp://www.blogger.com/profile/17737608801129261940noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4028446859064405647.post-92103929416627109892016-11-30T13:47:00.000-08:002016-12-03T13:17:33.140-08:00Il Viaggio in Rosa - Parte I<div style="text-align: justify;">
Parte I - Bergamo</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Como sempre, sentar-me num avião dá-me um sono sobrenatural. Adormeci antes da corrida final e nem me lembro de tirar as rodas da pista. Devo ter dormido durante três quartos da viagem. Depois acordei e os percalços começaram.</div>
<div style="text-align: justify;">
Para poder ler pedi um café - já sentia a moínha de uma grande dor de cabeça a agigantar-se. Depois entornei o copo de café sobre o meu casaco e o moçoilo que ia ao lado. Tirou um lenço do bolso e estendeu-mo com prontidão, aproveitando para dizer que os portugueses dizem constantemente obrigado. O restante tempo de voo foi passado meio a analisar-lhe as mãos - mãos de homem bonitas são mais raro do que possa parecer, e este precisava de um jeito nas unhas.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Aterrei em Bergamo sob um frio de gelar ossos. As malas, embora juntas não pesem mais de 25kg, são dois monos cheios de coisas frágeis que trago uma em cada mão. Atravessei a alça da mala de senhora ao pescoço. Meio afogada por isso, pelo cachecol, pelo casaco e pelas malas, cheguei ao balcão de rent-a-car. Enquanto assino os papéis dou-me conta de que os dedos me estão a tremer. Estou aterrorizada. Não costumo conduzir - explico ao senhor. Quase queria que ele me tirasse os papéis da frente e dissesse "minha menina, você não pode sair daqui com o nosso carro". Mas não... mete-me a chave na mão e faz-me assinar uns papéis, o irresponsável. Depois de muito repensar, concluo que vou precisar de um GPS. O valor é absurdamente caro, mas não vi grande alternativa. O GPS vai ajudar a evitar um desastre potencializado por uma condutora como eu andar perdida na estrada. Saio dali com a chave do carro e indicações para o parking, a tentar mentalizar-me que vai correr tudo bem e que o meu chefe não me vai assassinar por causa do gasto extra do GPS. Não encontro o parking e gelo enquanto dou duas ou três voltas ao perímetro do aeroporto. Já irritada, porque as malas são um pesadelo, dou com o sítio. Olho para um carro, convencida que é aquele, e quando clico na chave para o accionar é o do lado que reluz. Uma miniatura de carro com o aspecto mais frágil que já vi. Foi a primeira vez que aluguei um carro que vinha com uma lista de mossas. Tudo o que tenho a fazer é não acrescentar nenhuma. Ou bater só onde aquelas já estão.</div>
<div style="text-align: justify;">
Arranco com o carro depois de preparar tudo. GPS a postos dá 20 minutos de estrada até ao hotel. Tudo bem, vinte minutos é a via rápida. Eu consigo. Ganho coragem e saio dali para a via rápida, depois de circundar o parque duas ou três vezes para me habituar ao carro. Dizer que ia aterrorizada é pouco. Quando me apercebi que o GPS estava apagado pior ainda. Tento seguir as placas para Bergamo, sabendo que teria que parar algures para me orientar. Engano-me na saída e vou para Seriate. Quase causo dois ou três acidentes, mas os italianos são inesperadamente civilizados ao volante. Sou eu que arranco buzinadelas e travagens bruscas. Paro porque me apercebo que vou a chorar e que não vejo nada. Choro um bocado com a testa contra o volante, como se vê nos filmes. Já entendi porquê. Pergunto-me a quem vou pedir ajuda. Quem vai ajudar-me ali? Não deixo que a crise dure muito porque passaram quase três horas que aterrei e estive sempre a vinte minutos do meu destino final. A cabeça explodiu, a enxaqueca instala-se a preceito mas eu decido que vou ligar a net e seguir o GPS do telemóvel. Apesar de me ter perdido logo, parece que cortei meio caminho. Estou a dez minutos do hotel - em pânico - mas quase em segurança. Arrisco. Onde vou pôr o telemóvel de maneira a que o veja? Pouso-o e oiço a voz da senhora em Português a debitar indicações. Acalma-me tanto que me sinto abraçada. Respiro fundo e vou fazendo o que me manda fazer, passando por obras na estrada e por motas viradas e equipas de socorro a levantar motociclistas do chão. Está tudo escuro e calmo. Quando dou por mim cheguei ao estacionamento. Depois de umas voltas largo o carro, respiro fundo e posso gozar a dor de cabeça. As rodas das malas prendem-se em cada pedra do centro histórico da cidade, e demoro três vezes o necessário para chegar ao B&B, que era logo do outro lado da estrada. A estacionar está o rapaz em cima do qual despejei o café. Não me vê mas reconheço-lhe o nariz e os óculos. Ó mundo pequeno! Já no check-in, o Gigi diz-me que a mulher dele faz anos no mesmo dia que eu. Como o B&B se chama "A Torre", o meu quarto é o último ao cimo. Não há elevador a aliviar os quatro lances de escada estreita. O Gigi, felizmente, dá uma mãozinha com as malas. Consigo sorrir.</div>
<div style="text-align: justify;">
Vou ao bistro do lado - cujo jazz me chama de longe - para buscar conforto numa refeição italiana. A cozinha está fechada e dizem que me vão trazer umas fatias de pão e presunto. Quando dou por mim tenho uma tábua com um porco inteiro à frente, feito salami e prosciutto. Só queria uma bucha...</div>
<div style="text-align: justify;">
Apesar do bolor, o queijo é bom. Já a polenta (?) é difícil de entender. Parece a textura de migas de pão e só consigo identificar um ingrediente: milho. Nunca tinha ouvido falar em tal coisa. Oiço a senhora levar quase tudo para trás (era presunto para quatro homens) e queixar-se que tinha avisado que era demasiado. Dói-me demasiado a cabeça para rir.</div>
<div style="text-align: justify;">
Preciso de me rir. Não consigo - ainda não -, mas para me acalmar prometo que amanhã vou visitar as agências todas a pé. Vou evitar aquele volante até à hora de almoço.</div>
<div style="text-align: justify;">
Penso que se conseguir meter um pouco de humor nisto, tudo vai correr bem. Tudo vai acabar bem.</div>
Céliahttp://www.blogger.com/profile/17737608801129261940noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4028446859064405647.post-30538881363997914942016-11-27T14:02:00.001-08:002016-11-27T14:09:07.398-08:00Carta aos meus filhos #102A mamã sente-se fraca e desinspirada. Costumo viver de paixões e nenhuma me tem pulsado nas veias. Fui à ópera e estremeci. Foi um pouco de emoção num coração hibernado. É-me involuntário. Madame Butterfly é de uma beleza que dói na alma. Se se tiver uma, os pelos da nuca eriçam-se todos quando os dois amantes cantam a Notte Serena. Só para depois ele a levar ao suicídio.<br />
Não me apetece escrever. Mas tenho sempre e a todo o instante de manter a cabeça ocupada. Por isso vejo filmes. Consegui avançar um pouco n"A Campânula de Vidro" da Sylvia Plath. Mais famoso que o livro que ela escreveu é o modo como, dois meses depois de o publicar, meteu a cabeça no forno a gás. Estou na parte em que a depressão da sua personagem principal - Esther, depressiva, vai começar a fazer terapia com choques eléctricos. Esther inventa um pseudónimo quando começa a escrever o seu livro. Elaine. É-lhe importante que mantenha o mesmo número de letras do seu nome. Seis. Sylvia. Esther. Elaine.<br />
<br />
A mamã faz vinte e sete anos daqui a uma semana. Vou estar sozinha. Nunca se sentiu mais sozinha na vida. Mesmo quando estava sozinha no passado, sabia que nào estava sozinha. E a mamã procurar por estar sozinha a vida toda. Mas não só. E o abandono momentâneo só se compara ao de ver a mãe a sair pela porta da avó, com um irmão pela mão e outro pela anca, enquanto eu ficava a dizer adeus no corredor e a avó me puxada para dentro e dizia que não havia dinheiro para pagar a conta da luz. Às vezes ia até ao patamar vê-los desaparecer na esquina. A mãe tinha um blusão de cabedal. O irmão também, e tinha os cabelos compridos e encaracolados, apesar de ser um rapazinho. A mamã está num momento em que tudo me parte o coração. As lágrimas têm surgido, mas como consolo. Enquanto forem alívio a mamã fica satisfeita. Aceito qualquer coisa que me alivie as dores.<br />
A mamã vai ficar dezoito dias sozinha. Foi uma escolha minha, mas agora parece-me que vou ter que lidar com coisas maiores que eu. Como conduzir e estacionar. Pior que seja num país onde nada se respeita na estrada. A mamã nunca teve medo de nada. Mas agora tem. Por enquanto consegue deitar o pé à embraiagem e sacudir esse medo. No outro dia, viajando no banco de trás de um uber, o motorista diz que, a nível pessoal, fez Ponte Vasco da Gama/Marina de Vilamoura às oito da noite em quarenta minutos. A família esperava-o, mas podia ter chegado só o telefonema do Inem e o funeral de caixão fechado.<br />
A mamã tem medo. Gostava que vocês estivessem cá para ser forte por todos. Mas a mamã jã não tem porque ser forte. A mamã ...<br />
Está desinspirada. O médico de clínica geral que me atendeu a propósito da faringite leu o título do livro que ando a ler. Perguntou-me porque ando a ler coisas sobre uma mulher depressiva. Leu a minha ficha no computador. No final disse que é psiquiatra e para não acreditar na totalidade em mal-estares psicológicos apenas baseados em questões fisiológicas. Ele disse "falta algo na sua vida". E a mamã dizia que está tudo bem. E ele dizia "não, falta algo e você não quer dizer o que é se não desmancha-se em lágrimas, mas sabe bem o que é".<br />
A mamã tinha esperança que houvesse cura sem felicidade. Porque assim podemos travestir a nossa realidade como quisermos. Mas se me exigem uma jóia verdadeira para que tudo fique bem, eu não posso. Não depende de mim e eu não posso depender de outrem.<br />
Tudo acontece por um motivo. A mamã não sabe se vai escrever mais livros. Do momento onde estou, parece-me que se olhar para o futuro não vejo mais livros. Não vejo mais amores. Não vejo filhos. Não é que a mamã esteja triste ou no escuro. Às vezes da luz vê-se melhor. A luz traz a escuridão. Como um grande amor pode trazer só desgostos.<br />
A mamã precisava de um planeta novo, onde se exilar. Por enquanto vou para Itália, e apelo à civilidade dos condutores e ao universo para que me devolva a chispa da inspiração. A partir daí acredito que possa construir uma estrada de tijolos amarelos e, quem sabe, escapar-me daqui.<br />
<div>
<br /></div>
Céliahttp://www.blogger.com/profile/17737608801129261940noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4028446859064405647.post-40047364079100016102016-11-13T16:22:00.000-08:002016-11-14T03:31:48.581-08:00Carta aos meus filhos #101<div style="text-align: justify;">
De vez em quando vêm ondas de dor. De ansiedade. A mamã tem tido sonhos maus. Tenho sonhado que tem AVCs. É um sonho assustador. Sinto o sangue a fluir de um lado para o outro do meu cérebro, como ondas a rebentar dentro da minha cabeça. A mamã sonhou que acordava depois de uma dor atroz e me diziam que tinha ficado um dia sem sentidos. Os tempos são estranhos. Talvez não seja o mundo que está pior (a eleição do Trump deixa-me indisposta), talvez sejam os sonhos e a esperança e as ilusões que ficam para trás. Vou chegar aos trinta sem me reconhecer. As minhas prioridades ficaram de cabeça para baixo. O amor é a última delas. A mamã agora passa o dia com as mãos enterradas no alguidar da roupa lavada, a cheirar o detergente na ponta dos dedos. Estende e apanha roupa. Até cozinhei nestes dois dias.</div>
<div style="text-align: justify;">
O trabalho não pára: deixa-me doente e impotente. Ontem tive de tomar uma coisa para me acalmar. Não posso fazê-lo todos os dias: não quero ser uma aleijada, uma dependente. Tenho muito que fazer - ainda não tirei um Mestrado nem fiz voluntariado em África. Ainda não vi a Turandot nem outra ópera na Arena de Verona. Por falar em arena de Verona... A mãe está quase a fazer vinte e sete. Vou festejá-los sozinha, com livros e arte. A mamã precisa de descobrir o refúgio dentro de si própria. Nunca como este ano a vida me afastou tanto das pessoas que amo. Parece que estamos todos fadados a ficar longe uns dos outros. Talvez seja verdade, e se for a mãe deixará de lutar. Não vou gastar mais energia com pessoas que já manifestaram que lhes sou indesejável.</div>
<div style="text-align: justify;">
O momento: estamos a viver para o momento. A entregar-nos ou a lutar por pessoas que não têm qualquer valor para nós, e às quais nos confiamos com os impulsos de uma qualquer paixão porque sabemos que nunca nos serão nada. Que não têm como nos magoar. Que podemos dar só um bocadinho de nós, mostrar-lhes só o lado que queremos e ocultar o resto. A parte que aqueles que nos amaram por completo mais acarinharam: os nossos medos, defeitos, imperfeições. As coisas sagradas estão debaixo do tapete. Estamos todos a despir-nos de tudo para podermos nadar para longe. Sem âncoras, sem pesos, sem olhar sobre o ombro.</div>
<div style="text-align: justify;">
Hoje, enquanto dobrava roupa, a mamã entendeu uma coisa:</div>
<div style="text-align: justify;">
O dia chegaria em que estaria sentada, frente a frente, e não iria sentir nada. Nada. Em que iria vê-lo pelo que é. Um outro corpo. Uma outra vítima da evolução. A mamã esperou tanto que esse dia chegasse, e quando chegou nem um enterro digno lhe fiz. Mas chegou. Doía tanto que a mamã acabou por deixá-lo ir. O que matou tudo foi o total e completo desapego por mim. Pelo que me é sagrado. Como daquela vez em que o meu pai se viu livre de um livro meu. Não mediu as consequências: não podemos pisar naquilo que é mais precioso para o outro e esperar que fique tudo igual. Foi um momento de viragem. A mamã andou zangada umas semanas, a culpar-se pelo tempo perdido. A perguntar-se porque o perdi. O que vi nessa aura, afinal? E agora perdoei-me. Perdoei-me e perdoei-o. E sinto-me suficientemente bem para, enquanto dobro a roupa, lhe desejar boa sorte com os assuntos do coração. Sorri e pensei "boa sorte, meu amor". "When love and trust are gone, I guess this is moving on". Mas não significa que a pessoa não tenha sido o maior, o mais trágico, o mais sangrento amor que jamais terás. O mais negro e o mais luminoso em simultâneo. Com isto faço-lhe o funeral: tempos houve em que trazia luz para a minha vida; em que éramos luz um para o outro. A mamã está convencida de que ele gostava de mim, sabem? Não uma sombra do que eu gostava dele. Mas houve amor nos olhos dele, em algumas ocasiões. Talvez duas pessoas com bom coração não tenham porque não ter afeição uma pela outra. E depois eu puxei-nos para o teste final - nem sequer houve reflexão por trás. Foi pura imprevisibilidade. E acabou tudo, como nesse momento quis que acabasse. Ansiei por dar um último capítulo à estória, e o mesmo veio sem que eu pudesse antecipá-lo. Ainda bem: tudo acontece porque tem de ser. Amores maiores acabam quando o fogo se extingue, e o fogo extingue-se por falta de oxigénio. Por isso esta cidade fechada deu-nos a liberdade que precisávamos. O alívio que ele queria. Fui-me embora do quintal dele. <i>No more love letters, no more love.</i></div>
<div style="text-align: justify;">
O meu coração já estava feito em cacos há muito tempo. Há muito que merecia melhor do que esta história. Era bonita uniteralmente. Seria bonita se eu dissesse que este homem esperou por mim dezanove anos, como o marido de uma aluna minha. Mas não: eu seria o marido que esperou.</div>
<div style="text-align: justify;">
A mamã quer ser a primeira escolha de alguém, acha que merece isso. E pensar que a felicidade já esteve ao alcance dos meus dedos e que não fui uma actriz suficientemente boa e que, mesmo feliz:</div>
<div style="text-align: justify;">
- Se ele entrasse por essa porta, deixavas a comida a meio e ias-te embora com ele, se to pedisse.</div>
<div style="text-align: justify;">
Se a felicidade voltar a sentar-se comigo num restaurante em Sintra, vou garantir-lhe que não. Não vou a lado nenhum. Porque o amor não é tudo e tantas vezes até atrapalha. E porque este morreu e eu nem sequer fui ao funeral. Estava ocupada a estender roupa.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Por isso, e em nome dos momentos plenos de luz que vivemos, que sentia que nada abalaria o meu amor por ele e em que dentro dele havia um carinho que não nos deixaria velejar para demasiado longe um do outro, digo, com sinceridade:</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Vai e sê feliz.</div>
<div style="text-align: justify;">
(E já não consigo conceber terminar com ", meu amor").</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Agora só desejo sair depressa daquela fase de que fala uma canção tradicional irlandesa:</div>
<div style="text-align: justify;">
<i>- I wish, I wish</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>I wish in vain.</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>I wish I had my heart again.</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
Céliahttp://www.blogger.com/profile/17737608801129261940noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4028446859064405647.post-42143636205271351612016-10-31T01:29:00.003-07:002016-10-31T09:13:00.293-07:00Carta aos meus filhos #100 <div style="text-align: justify;">
<div style="margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">
<span style="font-family: "Century Gothic", sans-serif;">A mamã está a tentar. De certo modo, está até a conseguir.
Apesar das intempéries, estou numa boa fase. Posso entrar numa livraria e
comprar o livro que quiser. Posso comprar chocolates na bomba de serviço. Posso
ouvir a música que quero. Estou sozinha - e é uma solidão agridoce. A mãe não
sente falta de outro corpo cá em casa. Nem consigo imaginar como seria dividir
o sofá com outra pessoa. Talvez seja bom, ou talvez te anules e passes a ser só
um apêndice do outro. A mamã sente que a gravidade da Terra puxa os corpos para
se tornarem apêndices de outros. A mamã acha até que as pessoas não sabem o que
fazer de si próprias, nem consigo próprias. É vital que haja outro, um outro,
que nos arranque a nós e nos leve a sair. É vital que te moldem para fora daquilo
que és. A mamã vê pessoas que não têm qualquer interesse na vida, nem garra,
nem paixão. Pessoas que andam ao sabor da maré ou das sms e da agenda de outro
alguém. A mamã esforça-se para que isso não lhe aconteça, e para que a minha
vontade, os meus desejos, aquilo que eu sou, e que amo, e que me dá alento,
permaneça sobre todo o resto. Só me apaixonam as pessoas completas. As pessoas
que não se acomodam no que é confortável, as que têm planos, corações em
erupção, sopros de inspiração. A mamã está farta de pessoas desinspiradas. A
mamã vê que caminhamos nas ruas empedradas de Lisboa em horas pouco
recomendáveis, mas que os nossos corações, por falar em corações, deambulam no
firmamento. Divagam, iludem-se, entregam-se a quem apresentar mais obstáculos. Adoramos
que nos digam que não. Adoramos que nos deixem à espera. Quando acontece, e
disso estamos certos, há-de saber melhor. Há-de saber a conquista. Estamos
enganados. Até isso sabemos, se tivermos coragem de ver melhor para dentro de
nós. Tudo é temporário, tudo começa ao balcão de um bar e termina nas redes
sociais. Tudo se resume ao quão fácil é escrevermos uns aos outros, sem que
nada se diga e sem que nada de nós se dê. É fácil prometer-se o que se sabe que
não se vai cumprir. O coração da mamã está aninhado e não se quer mexer. Não é
bem preguiça. Se surgir alguém que valha a pena, sei que consigo que se mexa.
Talvez não queira. Talvez seja uma escolha. É o caminho mais difícil, sabem? Em
cada esquina está alguém. A mamã não consegue dar dois dedos de conversa a
ninguém sem que se sinta de férias de si mesma.</span><span style="font-family: "Century Gothic", sans-serif;"><o:p></o:p></span></div>
<div style="margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">
<span style="font-family: "Century Gothic", sans-serif;">A mamã vai voltar a sítios que me são muito importantes. Vou
ver arte - e a arte alimenta-me o espírito como nada mais. Observo a escultura
e sou esculpida por ela. Admiro o vermelho do Raffaello e sou tingida por ele.
A mamã quer essa vida, que abracei por me trazer tantas satisfações: a dos
livros, do jazz, das viagens, da boa comida e do vinho. A mãe gosta de se
reinventar, sem abandonar tudo o que já foi. A mamã gosta de ter planos e de
ser ela a traçar rumos. Não me importo de seguir a escolha dos outros, se for
também a minha escolha.</span><span style="font-family: "Century Gothic", sans-serif;"><o:p></o:p></span></div>
<div style="margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">
<span style="font-family: "Century Gothic", sans-serif;">A mamã não costuma beber chá, mas peço e faço muitos chás.
Há uma janela ínfima de tempo em que o chá está no ponto. Entre o estar muito
quente e o estar frio, há cinco minutos em que me dá prazer beber chá. O resto
sobra. Ando sempre a lavar anéis de cafeína das minhas chávenas esquecidas na
secretária.</span><span style="font-family: "Century Gothic", sans-serif;"><o:p></o:p></span></div>
<div style="margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">
<span style="font-family: "Century Gothic", sans-serif;">Só sei que é uma época de conciliação. Se calhar é uma época
de conquista, em que somos todos estrategas e queremos saber até onde podemos
ir com as armas que temos. Somos todos cavalos selvagens nesta idade, as crinas
ao vento e um coice a cada sobressalto. Podemos correr até ao horizonte, e para
lá dele. E ao invés ficamos dentro da cerca, unidos uns aos outros, ou à
silhueta dos outros, à distância, ou à sua sombra, depois de partirem.</span><span style="font-family: "Century Gothic", sans-serif;"><o:p></o:p></span></div>
<div style="margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">
<span style="font-family: "Century Gothic", sans-serif;">Filhos, não se tornem o objecto de consolação ou a arma de
arremesso de alguém. Apostem no que querem fazer, e que vos deixa de coração em
sobressalto. A cada vez que a mamã pega num microfone, no autocarro, perante
cinquenta italianos, a mamã tem medo, mas a mamã vence. Há dois dias tive três
sinais de que estava onde tinha de estar:</span><span style="font-family: "Century Gothic", sans-serif;"><o:p></o:p></span></div>
<div style="margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">
<span style="font-family: "Century Gothic", sans-serif;">Primeiro perguntei a uma senhora de onde era: é de Verona.
Depois perguntei a outra senhora do grupo de onde é: também de Verona. Disse
que vou lá passar o meu aniversário. Perguntou-me qual era o dia.<span class="apple-converted-space"> </span><b>É o dia do aniversário dela,
também. </b>Depois o motorista disse-me que Veneza é a sua cidade
favorita, aquela onde regressa sempre com o mesmo entusiasmo. Desta vez, e não
sem receio, a mamã vai partir a toda a velocidade para lá da cerca. E sem
apêndices para trás: serei eu, a arte, a aventura, os livros.</span><span style="font-family: "Century Gothic", sans-serif;"><o:p></o:p></span></div>
<br />
<div style="margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">
<span style="font-family: "Century Gothic", sans-serif;">O único inconveniente é o cheiro dele no colarinho da
camisa. Fora isso, não há abalos no meu equilíbrio.</span><span style="font-family: "Century Gothic", sans-serif; font-size: 11pt;"><o:p></o:p></span></div>
</div>
Céliahttp://www.blogger.com/profile/17737608801129261940noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4028446859064405647.post-30254180684231961902016-09-19T15:34:00.001-07:002016-09-20T17:41:21.172-07:00Carta aos meus filhos #99<div style="text-align: justify;">
A mamã sente que este capítulo da minha vida está a chegar ao fim de tantas formas...</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Está tudo a encaminhar-se para o fim, umas coisas de modo mais literal que outras...</div>
<div style="text-align: justify;">
O orgulho tem sido o grande protagonista desta fase. O orgulho e a teimosia, e uma necessidade sobrehumana de me elevar acima de mim mesma e de me encontrar lá em cima. Sabem, não foi intencional mas a mamã perdeu demasiado tempo com becos sem saída. A mamã quis, durante longos anos, ver luzes ao fundo de túneis intermináveis. Neste momento, sentei-me dentro do túnel, arrastei os pés por sobre os carris e acariciei o ferro, cheirei a ferrugem. Chegou a hora de colocar a possibilidade de que talvez o túnel só me leve mais fundo, mais para o escuro, mais para o frio, mais para baixo. E tenho de decidir se volto para trás, para a realidade distante e estéril em que vivia antes da promessa de todo o resto. Estive tanto tempo no escuro que julgava ser capaz de distinguir sombras na penumbra. A mamã conhece os ângulos da ferrovia e a humidade das paredes do túnel, conhece-lhe o ruído do saibro conforme caminho, convencida de que a passgem seria longa mas valeria a pena. A mamã cansou-se. A mamã sabe que ainda não é tarde demais. A mamã é jovem, independente - sou independente, quantas pessoas podem dizer isso? - e, se tiver mesmo de ser, amanho-me sozinha (amanhar = remover escamas e espinhas até tornar o peixe comestível). A mamã hoje abriu uma garrafa de um azeite bem caro que me foi oferecido e banquetei-me dele. Depois, no caminho da cozinha para a despensa, fi-lo dançar no ar e escaquear-se no chão. Porquê? Porque haveria de criar todo um ritual em torno do azeite, prová-lo molhando o indicador no gargalo, chamar as minhas irmãs e incitá-las a fazer o mesmo, fazer pasta à italiana q.b. e celebrá-lo com mangericão, porque tive de aquecer pão no forno e molhá-lo no azeite e nos orégãos e lamber os dedos do azeite e dos orégãos, se depois o azeite acabou por entre cacos, no chão, a escorrer numa lentidão agonizante por entre as lajes que foram escrupulosamente limpas poucas horas antes? Porquê? Porque é um azeite bom demais. Porque valeu a pena. Porque fiquei sem o azeite mas tinha de ser. É tudo tão absurdo quanto o grito que lancei quando o vi no chão, a ensopar tudo, e me soube impotente.</div>
<div style="text-align: justify;">
A mãe está farta de estar no escuro a sonhar com a luz. A mamã quer fazer amor a ouvir a <i>I Put a Spell on You</i> da Nina Simone. A mamã quer saber que não mais terei de virar as costas àqueles que amo - àqueles que amei tanto e de modo tão tosco, tão ingénuo, tão crente, e depois tão amargurado, tão desencantado, tão contrariado. A mamã precisa de se convencer de que dando meia volta e saindo por onde entrei volto à luz. E tenho de aprender a viver com o facto de que perdi tempo no túnel. Mas, enquanto lá estive, banhei-me no azeite, amansei os medos com ele, ainda lhe sinto o perfume, ainda me recordo da qualidade inegável no rótulo, do brilho dourado, do modo como valeu a pena acender o fogão por ele.</div>
<div style="text-align: justify;">
A mamã está a dizer disparates, mas estão a fazer tanto sentido quanto fez lamber o braço quando o azeite deslizou da ponta dos dedos por ele abaixo. Não desperdicei uma gota do azeite que o universo me havia destinado. O resto não era meu, e quando já era derrame no chão, não podia rebolar-me nele sem perder a dignidade e manchar a dele.</div>
<div style="text-align: justify;">
A mamã anda a trabalhar demais, mas felizmente os sentimentos são um bom Norte. A mamã é, a todas as horas, ciente de que o nosso corpo, a nossa cabeça e o nosso coração querem coisas muito diferentes, e em mim parece que os três discordam mais no que em muitas outras pessoas. A mamã desceu a barragem do Carrapatelo, são trinta metros de água a descer e vinte minutos em que a tua vida dependente de engenheiros, da obediência de um rio e das condições do cruzeiro. E, olhando para o cimo, para a força com que a parede de pedra maciça e o portão de ferro continham a água, que ainda assim se derramava sobre as nossas cabeças, entendi que racionalismo algum contém o rio. Ele há-de infiltrar-se sempre em todas as brechas, em todas as fraquezas da solidez do material. Se lhe derem tempo, umas décadas talvez, ele desfaz o mérito da pedra e do ferro e reencontra o caminho para o seu leito. Assim que possa, aquele rio há-de esvair-se de volta ao outro, que é o mesmo, e que repousa trinta metros abaixo. Não tem como o rio não querer fazer parte do mesmo rio, ainda que o que o dilacera interponha altitudes e depressões entre os dois. Chamem-lhe gravidade; ou amor.</div>
<div style="text-align: justify;">
A mamã tem noção das coisas inevitáveis da vida, até hoje só me cruzei com duas, ambas trágicas, a seu modo necessárias, e também sublimes pela sua importância incontornável: o amor e a morte. A mamã é impotente perante ambas. </div>
<div style="text-align: justify;">
Deixo que a Nina Simone me convença de que talvez a perfeição exista, talvez exista um motivo para tudo e talvez o azeite volte a escorrer pelo meu braço, se eu não tiver tanto medo que tudo acabe no chão.</div>
Céliahttp://www.blogger.com/profile/17737608801129261940noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4028446859064405647.post-5893846980538688692016-09-09T01:02:00.002-07:002016-09-09T06:48:45.387-07:00Carta aos meus filhos #98<div class="MsoNormal" style="line-height: 18.0pt; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm;">
<span style="font-family: "century gothic" , sans-serif;">A mamã estava em paz
e agora está confusa…</span><span style="font-family: "century gothic" , sans-serif;"><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 18.0pt; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
<span style="font-family: "century gothic" , sans-serif;">Entendi que cheguei à
faixa dos vinte e seis, quase vinte e sete anos, e ainda há muita mentira por
aí. Não percebo como é possível que se minta e se distorça a realidade. Não
entendo qual o objectivo, além de aquele de se amassar os sentimentos dos outros.
Não percebo qual a gratificação que pode advir de se contar uma mentira e ver a
vida do outro desabar por causa de nada. Ou de vê-lo repeti-la e
ridicularizar-se. A mamã sente que se afastou, mas afastei-me pouco. Tudo
encontra um caminho até mim, e é difícil isolar-me do núcleo e tapar os
ouvidos. Mas a verdade é:</span><span style="font-family: "century gothic" , sans-serif;"> </span><i><span style="font-family: "century gothic" , sans-serif;">eu não quero saber</span></i><span style="font-family: "century gothic" , sans-serif;">. Bastam as inseguranças de cada um, as
desconfianças íntimas, para distorcermos a realidade dentro de nós. Quando isso
acontece, costumo dirigir-me a quem me causar dúvida e tentar mitigá-la. Ao
final de dez anos a colocar dúvidas, as pessoas aborrecem-se e tens de te calar
e aprender a viver com elas ou simplesmente tapas os ouvidos e vais morar para debaixo de uma pedra. Tens de viver com a possibilidade de que sejam verdade. E as
mentiras que contam não são coisas simples, não é sobre quanto se pagou por um corte
de cabelo. São coisas que interpõem pontes entre as pessoas, que estalam o
verniz da confiança e que acabam com amizades num estalar de dedos. Mas o que a
mamã entendeu, além de tudo, é que o meu próprio desgaste me torna vulnerável.
Se não estivesse sempre à espera que uma tragédia se abatesse sobre a minha
cabeça (se não saísse sempre da sala antes que os outros saiam e me abandonem),
a última mentira não se teria afundado tanto no meu coração. A mamã não entende
o que se passa. Não se pode acreditar em nada nem em ninguém, porque as fontes
que chegam aos outros também vêm contaminadas. A mamã só queria poder estar
longe e não ouvir nem ver nada. Estar com os outros tornou-se penoso; termino
os encontros a conhecê-los menos do que antes, porque as versões nunca se
concertam e tu não podes, simplesmente, interromper a pessoa a meio do relato do seu jantar e perguntar "ouve lá, disseste mesmo que sou uma cabra mimada?"</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 18.0pt; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
<span style="font-family: "century gothic" , sans-serif;">Pior, além dos rumores falaciosos, há as mentiras piedosas, as
mentiras destrutoras e as mentiras s<i>ó porque sim</i>. O esforço para se estar no pódio e se ser aceite é quase ridículo de tão empenhado... Porque é tão importante que se tenha alguém ao lado? Que se esteja a viver a vida dos outros (travestida de<i> </i></span><span style="font-family: "century gothic" , sans-serif;"><i>viver a própria vida</i></span><span style="font-family: "century gothic" , sans-serif;">)? A mamã está a ver as pessoas que sempre considerou puras a pôr a touca de banho para mergulhar na pocilga. E ainda dizem que não cheira tão mal como pensavam. <i>Temos de aceitar as pessoas como elas são</i>. Certo; mas daí até permitirmos que joguem com a nossa realidade, com a nossa verdade, vai um mundo de princípios. E há o ser chato, o ferver em pouca água, o beber demais, o não dizer uma palavra de conforto quando se sabe que estás na merda, mas depois há o inventar que o teu marido estava fechado no carro com a secretária. Como pode isto ser aceitável? </span><span style="font-family: "century gothic" , sans-serif;">Não se pode confiar num suspiro, num boa noite, num “estás boa?”.</span><span style="font-family: "century gothic" , sans-serif;"> </span><span style="font-family: "century gothic" , sans-serif; line-height: 18pt;">A mãe vê pessoas a
descobrir mentira atrás de mentira e, ainda assim, a deixarem-se ficar.</span><span style="font-family: "century gothic" , sans-serif; line-height: 18pt;"> </span><b style="line-height: 18pt;"><span style="font-family: "century gothic" , sans-serif;">Porquê?</span></b><span style="font-family: "century gothic" , sans-serif; line-height: 18pt;"> </span><span style="font-family: "century gothic" , sans-serif; line-height: 18pt;">Estaremos tão sozinhos assim que nos submetemos a tudo? Quando foi que os
laços tão fortes que nos uniam se enredaram de tal modo que tivémos de cortar
tudo à tesourada? É impensável sairmos da selva de cinzento para respirarmos um pouco e repensarmos tudo à luz da distância?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 18.0pt; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
<span style="font-family: "century gothic" , sans-serif;">A mamã fumou mais cigarros esta
semana do que no ano todo… E a avó está doente, é um atentado contra ela que me
refugie na janela a tentar que a nicotina e o alcatrão organizem as ideias que
não encontram prateleira nos meus miolos. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 18.0pt; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
<span style="font-family: "century gothic" , sans-serif;">É bom que o amor venha e se derrame
sobre a cabeça de todos até nos deixar encharcados, se não as ervas daninhas
vão arrancar-nos de vez uns aos outros.</span><span style="font-family: "century gothic" , sans-serif; font-size: 13.5pt;"><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 18.0pt; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
<span style="font-family: "century gothic" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 18.0pt; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
<span style="font-family: "century gothic" , sans-serif;">~<b>sometimes you gotta burn some bridges just to create some distance.</b></span><span style="font-family: "century gothic" , sans-serif;"> </span></div>
Céliahttp://www.blogger.com/profile/17737608801129261940noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4028446859064405647.post-46993778273945011132016-09-05T15:54:00.001-07:002016-09-05T16:17:29.933-07:00Carta aos meus filhos #97<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;">
<div style="line-height: 18pt; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">Meus
queridos,<o:p></o:p></span></div>
<div style="line-height: 18pt; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">
<br /></div>
<div style="line-height: 18pt; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">Não se
vivem tempos fáceis, mas a mamã está tranquila. Entre outras coisas,
tranquiliza-me o facto de poder olhar-me no rosto com a consciência de que
nunca, em dia algum da minha vida, me desviei do meu caminho para desvirtuar o
de outro, ou para lhe causar dissabor. Casualidades acontecem, mas a intenção
forja a alma, e a da mamã está lavada. Experimento uma paz e uma libertação por
que há muito ansiava, e chegou-me pelos caminhos tortuosos que a vida toma para
nos conduzir para aquilo que temos de ser.<o:p></o:p></span></div>
<div style="line-height: 18pt; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">
<br /></div>
<div style="line-height: 18pt; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">Não
entendia ao certo a sensação que se apoderou de mim nas últimas semanas,
durante as quais trabalhei tanto, enquanto o mundo se divertia. Mas não advém
mal ao mundo que o mesmo se divirta, porém a mãe vê as pessoas arrancarem os
braços a outros e usarem-nos para coçar as costas, e isso, tempos houve,
corroía-me as entranhas.<o:p></o:p></span></div>
<div style="line-height: 18pt; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">
<br /></div>
<div style="line-height: 18pt; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">Esta
mulher que não acredita em deus nem na canonização de<span class="apple-converted-space"> </span><i>super stars</i><span class="apple-converted-space"> </span>tem vivido um estado de lucidez que
espero que não tenha fim. Sinto-me quase<span class="apple-converted-space"> </span><i>religiosa</i>,
e a religião é a minha, pelo que não cometo atentados contra os meus
sermões. Estendi-me sob o<span class="apple-converted-space"> </span><i>Dark
Sky</i><span class="apple-converted-space"> </span>e analisei os movimentos
ao meu redor. A paz inundou-me e criei um espaço dentro de mim que servirá de
refúgio a todos os desafios que se avizinhem. Quando vejo uma estrela cadente,
a minha ideia é uma apenas;<span class="apple-converted-space"> </span><i>que
ela não sofra</i>.<o:p></o:p></span></div>
<div style="line-height: 18pt; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">
<br /></div>
<div style="margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">Todo o
resto é um circo para o qual a mamã não quis comprar bilhete. O circo está na
cidade e sou obrigada a ouvir o riso das crianças. À noite, as luzes do circo
cruzam o céu e a mamã tem de se lembrar que os palhaços e os figurantes são
representados por pessoas que não costumavam usar máscara. Mas há pessoas que
cedem às oportunidades, e por isso trouxeram a máscara para a cabeceira da
cama, e durante anos convenceram-se de que era um acto irreflectido, sem
consequências, jamais a usariam. Mas ela estava lá, e, quando o instante se dá,
é só cobrir o rosto e saltar para o palco. A mamã nunca chegou a comprar
nenhuma máscara, por isso é pouco provável que venha a usar uma. <o:p></o:p></span></div>
<div style="margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">Se a mamã
pensar bem, o que a invade é uma espécie de ternura, quase compaixão. A mamã
sabe que uma pessoa toma muitas formas sob o efeito da dor - e a dor pode ser
muita coisa, pode ser até a incapacidade de darmos um passo e dirigirmo-nos
ao sítio no qual sabemos que podemos ir buscar ajuda - mas nem todos os
desconfortos justificam todas as condutas, e o que define uma pessoa é a
capacidade de recusar morfina quando se propôs a aguentar. Mas a mamã não
quis uma vida de faz de conta, nunca mentiu a si nem a ninguém a respeito das
coisas do coração, nem quis as coisas por querer, nem enfrentou dilemas
morais. <o:p></o:p></span></div>
<div style="margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br />
A mãe acredita que algumas coisas são sagradas. Uma delas é o
"amigo". Não é deus, não é santo isto, não é rosário aquilo. Isso é
comprar-se indulgências, uma vez mais mascarar-se de benevolente. Para a mamã,
a sacro-santidade está apenas sitiada nesse substantivo. E a mamã pode até
perdoar as ofensas que lhe façam - e aqui volta a recordar-se que não é
católica, mas às vezes apropria-se do palrar da classe -, mas não consegue
conceber faltas de carácter. Uma falha de carácter é uma luz muito intensa num
rosto. Num qualquer rosto; o defeito surge e a partir daí não dá para fingir
que não existe. Quando isso acontece, a mamã faz cálculos de cabeça e entende
que o universo é demasiado pequeno para tanta hipocrisia. Constrói um muro e
recusa-se a olhar para as trincheiras. Porém tenho de me recordar que criaturas
há que caminham sobre a terra sem um único elo sagrado, e apenas me resta
lamentar que os valores do espírito nunca as tenham bafejado, e que assim sendo
padeçam das fraquezas dos animais.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">
<br /></div>
<div style="margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">Vivemos
uma época em que, se uma pessoa dedicar uma década a outra, é acusada de ser
doente mental e obcecada. Se outra pessoa sofrer um desfile de reveses do
coração é considerada sana, livre, desejável, moderna (e ser-se moderno é
sinónimo de algo positivo). Uma pessoa tem de valer-se de toda a sanidade que
encontre para não enlouquecer, mas o importante é que se saiba que se está
dentro de uma caverna, que há um mundo lá fora, e que algumas sombras sabem que
são sombras, enquanto outras se julgam luz. Enquanto se observa as sombras
a dançar na parede da caverna, reflecte-se sobre o infortúnio que é o não se
saber que se é sombra. O importante é sabermos, a todo o instante, que tudo passa
e o efémero passa mais veloz ainda.<o:p></o:p></span></div>
<div style="line-height: 18pt; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">
<br /></div>
<div style="line-height: 18pt; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">De
repente ocorreu-me como explicar…<o:p></o:p></span></div>
<div style="line-height: 18pt; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">
<br /></div>
<div style="line-height: 18pt; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><b>Somos
todos uma grande árvore de fruta.<span class="apple-converted-space"> </span></b>Pode ser
uma pereira; em termos estéticos somos uma pereira. Mais pesados na base que no
topo; isto é, mais densos no corpo que no espírito. Crescemos todos nas mesmas
circunstâncias e partimos todos do mesmo útero, se bem que uns com mais acesso
ao sol do que outros, sendo a água e a seiva as mesmas. Penso que sejam os
elementos o que afecta mais a uns do que a outros, e de repente veio uma
ventania sem igual. Aqueles a quem o sol estival estonteia, foram os primeiros
a ser postos à prova. Caem por terra as promessas e os pequenos sacrifícios da
irmandade.<o:p></o:p></span></div>
<div style="line-height: 18pt; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">
<br /></div>
<div style="margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">A
tempestade sacudiu a pereira e algumas pêras caíram, amassadas, no húmus. Essas
não tinham escolha; a natureza delas era débil. Não são essas as culpadas pelo
enfraquecimento da pereira. A árvore, na sua consciência geral, sabia que
seriam as primeiras a entaramelar-se a respeito da própria existência, e o
equilíbrio fora criado a despeito dessa falha. É certo que aquelas pêras seriam derrubadas
ao primeiro golpe dos elementos.Como as abelhas, e as abelhas têm ferrões, pelo
que o universo não pasma quando o usam. <o:p></o:p></span></div>
<div style="margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">Outras
continuaram seguras, mas não conseguiam desviar a vista do que se passava junto
ao calor da terra, junto à azáfama das folhas ressecadas. Começaram a sentir-se
pesadas no seu pender dos ramos. As outras pareciam-lhes mais livres e sem
âncora, e quem sabe debaixo se visse melhor o céu e a noite estrelada.<o:p></o:p></span></div>
<div style="line-height: 18pt; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br />
À segunda rabanada caíram mais algumas, porque haviam afrouxado o abraço ao seu
sustento, porque um momento de descuido as apanhou e a gravidade não funciona
no sentido inverso, por muito que a vontade almeje inverter o curso do
movimento.<o:p></o:p></span></div>
<div style="line-height: 18pt; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br />
As que se mantinham nos ramos começaram a sentir-se isoladas, desejaram poder
juntar-se de novo às outras, reencontrá-las noutras circunstâncias; então
soltaram-se da Mãe, soltaram-se da Terra, soltaram-se do que nelas era divino e
sagrado e jogaram-se no nada. Abandonaram aquilo que haviam sido criadas para
ser, e tudo o que fora promissor nelas até aí. Aterraram por entre
insectos e outras coisas rastejantes, e esse é agora o seu novo<span class="apple-converted-space"> </span><i style="line-height: 150%;">habitat</i>. <o:p></o:p></span></div>
<div style="line-height: 18pt; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br />
A mamã espera que as pêras que ficaram na pereira se segurem. Espera que não se
deixem cair, que não cobicem a leveza da descida. Não se sintam sós. São tão
poucas, e tão preciosas... Não se iludam sobre a possibilidade de, ao cair,
deixarem de dever algo à árvore. Não pereçam; na queda começa a decomposição. Uma
pêra que se soltou da árvore jamais será pereira de novo. <o:p></o:p></span></div>
<div style="line-height: 18pt; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br />
Não se deixem impressionar pelo facto de a ventania ter levado frutos tão
robustos. Basta um dedo a acariciar o volante para a esquerda, quando se fecha
os olhos, e o carro desfaz-se contra o<span class="apple-converted-space"> </span><i style="font-family: "helvetica neue", arial, helvetica, sans-serif; line-height: 150%;">rail</i><span class="apple-converted-space"> </span>da auto-estrada. <o:p></o:p></span></div>
<div style="line-height: 18pt; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">
<br /></div>
<div style="line-height: 18pt; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">É assim
que a mamã vê a luxúria travestida de amor, e a leviandade travestida de
liberdade. E as pessoas travestidas de seguras e auto-conscientes, quando estão
é cegas pelos faróis que se avizinham, em sentido contrário, enquanto deambulam
na beira do caminho.<o:p></o:p> E,
quando o feixe incide sobre as suas cabeças, e todos os olhos se voltam, chamam
à cena aquilo que aos outros soa puro, para com isso expiar a sua fealdade.<o:p></o:p></span></div>
<div style="line-height: 18pt; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">
<br /></div>
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><o:p></o:p>
<o:p></o:p>
<o:p></o:p>
</span><br />
<div style="line-height: 18pt; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">
<span style="font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">O vento
aquieta sempre. E quando o vento soprar tranquilo, e o sol voltar a ser ameno,
e a folhagem acariciar a fruta no seu resfolegar, a árvore recupera o esplendor
e o resto já foi varrido pelas estações. E então tenho de me lembrar que não
sou cristã. Sou uma mulher sem deus e sem religião. E a alegoria da árvore
torna-se mais perversa ainda.</span><span style="font-family: "Century Gothic", sans-serif; font-size: 13.5pt;"><o:p></o:p></span></div>
</div>
Céliahttp://www.blogger.com/profile/17737608801129261940noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4028446859064405647.post-17379352338347212352016-09-03T04:22:00.002-07:002016-12-07T09:27:27.177-08:00Carta aos meus filhos #96<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "helvetica neue" , "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Boa noite do Monte da Estrela,</span></div>
<br />
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "helvetica neue", arial, helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
<br />
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "helvetica neue", arial, helvetica, sans-serif;">A mamã aprendeu tantas coisas, hoje! Mesmo nos períodos em que seria de esperar que me esquecesse de mim e que me desligasse do universo, a magia acontece e a vida chama-me.</span></div>
<span style="font-family: "helvetica neue" , "arial" , "helvetica" , sans-serif;"><div style="text-align: justify;">
A mamã está num sítio lindo e especial, em plena comunhão com a natureza, e tem um encontro marcado com as estrelas para daqui a umas horas. Vim para aqui não por minha livre descoberta, mas foi-me indicado e ontem a voz desta mãe especial chamou-me. Meti-me no primeiro autocarro e zarpei. Vim encher os olhos de ouro e escutar a natureza na sua respiração.</div>
</span><span style="font-family: "helvetica neue" , "arial" , "helvetica" , sans-serif;"><div style="text-align: justify;">
Hoje aprendi que podes ter três filhos, morar em Lisboa, estudar gestão e comprar um monte alentejano. E depois podes pegar nesse monte e torná-lo numa casa de turismo rural, abrir as tuas portas a quem vier e ser feliz. Primeiro descobri que estamos numa área do planeta chamada "Dark Sky", um observatório do firmamento de acordo com a NASA. Do centro do pátio vejo poeira celestial, um dos braços da Via Láctea, e estamos sob a sua alçada. Vi duas estrelas cadentes (e ainda nem me deitei para admirar o cosmos) e fui regada juntamente com o relvado, mas até isso me fez feliz. </div>
</span><br />
<br />
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "helvetica neue" , "arial" , "helvetica" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "helvetica neue" , "arial" , "helvetica" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "helvetica neue" , "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Comi figos com mascarpone enquanto descobria que se coloca carne no vinho, durante a fermentação: se fossem outras pessoas quaisquer, não acreditaria.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "helvetica neue" , "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Contudo estou rodeada de pessoas bem formadas, que encetam explicações que eu, por estar no limite da exaustão, não consegui seguir em todas as suas estações. Mas disseram que o vinho, ao fermentar, é como se entrasse em erupção. O mosto ferve sobre si próprio, queima, e o insecto que caia lá é deglutido, assim como o é a carne (borrego por ex.), que me garantiram que é fermentada com o vinho do Porto, por ex. A mamã há-de ler isto mais tarde e pensar: que raio? Mas ouvi-o e vou investigar, porque é polémico a tantos níveis, sobretudo naquele em que não se poderia eliminar esse passo, se isso significa acabar com a qualidade como a conhecemos.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "helvetica neue" , "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Aprendi que os fenícios faziam vinho em cânforas, e as uvas não eram pisadas mas revolteadas com um pilão enorme (......) e os romanos faziam igual. Ainda aprendi que o álcool intoxica e quem pisa uvas fica inevitalmente bêbedo, pelo que tem de cantar e apoiar-se em quem o ladeia, a fim de não dar um mergulho no vinho e jazerem por lá, esquecidos. Em Mira d'Aire há grutas com morcegos enormes, e na selva Moçambicana havia um senhor que tinha uma osga obesa chamada Óscar, e o Óscar certificava-se de que os mosquitos da malária, dengue, etc., acabavam a nadar no seu suco gástrico. A mamã ficou a conversar sob as estrelas com pessoas interessantes, e bebeu vinho caseiro e um bagaço alentejano que se pega aos lábios e os deixa doces. A mamã hoje bebeu bagaço e gostou, mas aqui chamam a essa bebida translúcida "a mãe do vinho". </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "helvetica neue" , "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Hoje a mamã sentiu a humidade do Alqueva no ar, e foi como estar de volta em Salvador da Baía, em que a atmosfera está tão saturada que o céu desaba sobre nós sob a forma de chuva ao final da tarde. Aprendi que o som do silêncio é, na realidade, o dueto das cigarras e dos grilos, e que há quem reclame nos hotéis rurais da sinfonia desses bicharocos.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "helvetica neue" , "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Aqui há uma gata selvagem que se roça na porta da cozinha e que janta ensopado de borrego. Não deixa que ninguém lhe toque, mas segue à frente do prato e choraminga como uma normal gata de casa. Só aparece à hora de jantar. Há uma cabra preta chamada Estrelinha, que vou conhecer amanhã, e que é amistosa. Há também uma raposa que ronda a casa, mas que não ataca as galinhas. Gosto de imaginar que a hei de ver, porque gosto tanto de raposas... E esta anda aqui, fortuita, e talvez o instinto lhe diga que eu quero ser amiga dela, e que eu sei que o essencial é invisível para os olhos.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "helvetica neue" , "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Ofereceram-me bagaço e uma cigarilha e senti o aroma a baunilha elevar-se no calor estival, enquanto uma e depois outra estrela colapsava no horizonte. Disseram-me que os charutos necessitam de no mínimo 80% de humidade para serem bem conservados, e que essa temperatura é a ideal em Cuba, onde podes só metê-los no armário sem te preocupares. Noutros cantos do globo mandas fazer a tua caixa de charutos (madeira não envernizada) e convém teres termómetros de temperatura e humidade embutidos. Se o charuto ficar demasiado seco, tens de regá-lo. Antes de o fumares, leva-lo junto do ouvido e sentes o resfolegar do tabaco, dentro. Se não ouvires nada é porque está demasiado húmido, tem de secar um pouco. Quando fumas dois terços do charuto, podes mergulhar o restante em conhaque. Por essa altura a temperatura está tão alta que tens de o arrefecer, ou a qualidade perde-se de vez. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "helvetica neue" , "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Quanta ciência, a do relvado que não deve ser regado durante o dia quando estão trinta e oito graus no ar, porque na terra estão quarenta e cinco e a água causaria um choque térmico e depois aqueceria, apodrecendo as raízes das plantas. Deve regar-se tarde, à noite, respeitando a natureza e os seus ciclos.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "helvetica neue" , "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Raposinha, vens visitar-me? Daqui a nada espero ver-te...</span></div>
Céliahttp://www.blogger.com/profile/17737608801129261940noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4028446859064405647.post-67061390681493463882016-08-07T12:48:00.001-07:002016-08-07T12:54:23.926-07:00Carta aos meus filhos #95<div style="text-align: justify;">
<span style="color: white; font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 16px;">Meus queridos,</span></div>
<div style="color: #454545;">
<div style="text-align: justify;">
<span style="color: white; font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
</div>
<div style="color: #454545;">
<div style="text-align: justify;">
<span style="color: white; font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">Hoje a tia Ana contou-me que teve de ajudar a avó a tomar banho. Há alguns dias, eu própria me havia oferecido, porque ela disse que tem dificuldades a entrar e a sair da banheira, e a chegar às costas também. A avó recusou a minha ajuda, porque ainda se lembra de quando eu era pequena e tão curiosa e apegada a ela que não queria separar-me durante os quinze minutos que lhe durassem o banho. Plantava-me do outro lado da porta e tentava espreitar, mas ela cedo se apercebeu dos meus intentos e tapava a fechadura. Sob o vestido da avó, nota-se a deformação da omoplata, que parece projectar-se para fora. Como poderíamos saber? A tia Ana diz que acha que quando a avó for "velhinha" vai ter uma corcunda, mas só do lado direito. Querida Ana, não podemos dizer-lhe que nos escaparam todos os sinais. A magreza, as dores, a perda de energia nos últimos tempos. Há dois anos, quando comprei a casa, a avó ajudou-me a lavar todas as janelas. Há um ano, quando demorava três horas contadas a limpá-la ao sábado, a avó insistia em ajudar-me e tratava do meu quarto com celeridade. Há seis meses a avó dizia que não conseguia ajudar, pedia um perdão indevido e dizia que ao menos levava o saco da roupa para lavar na sua máquina, posto que não comprei ainda uma. Agora a avó, que vinha todos os dias à minha casa, só vem duas vezes por semana. O agora escapa-se por entre os dedos, porque esta demana a avó só veio uma, por lhe custar a caminhar, e pede à tia Ana que leve o saco com os meus lençóis, porque tem dores se tiver de suportar o peso.</span></div>
</div>
<div style="color: #454545;">
<div style="text-align: justify;">
<span style="color: white; font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
</div>
<div style="color: #454545;">
<div style="text-align: justify;">
<span style="color: white; font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">O tempo está a passar depressa demais, mas é verão e isso cria a ilusão de que está tudo bem. As pessoas estão de férias, vão para a praia, sorriem e combinam jantares. <b>Uma pessoa que me vê todos os dias, e que já me viu pior, fez questão de me dizer, há dias, que agora se nota mesmo que ando feliz e sem preocupações.</b> Agarram-se às pequenas desgraças do quotidiano para intervir, para sentir que fazem algo pelos outros e que não vivem só de si e para si. Mas a verdade é que é difícil imaginar uma reviravolta destas, e por isso a mamã tem sido deixada mais ou menos de lado nas preocupações de quem me rodeia. Haverá quem diga que o faz por feitio, outros porque imaginaram que eu preferiria ficar sozinha com a dor e a dimensão do que se aproxima. Outros, talvez quem realmente importe, simplesmente não sabe como lidar com isso, como assistir ao sofrimento ao meu lado, e receie evocá-lo. Acreditem: eu não quero assistir à desolação que se aproxima para quem me é mais querido, e não haverá escolha. De qualquer modo, o que importa é que é nas impiedades da vida que fazemos as contas ao que temos, e quem sabe a mamã andasse a calcular tudo mal há demasiado tempo. Serve para que saibamos quem está ao nosso lado, quem sua e chora por nós, e quem só o faz pelas aparências, porque de certo modo é esperado que se importe. Por isso, meus queridos, preparem-se que a crueldade de algumas verdades vem nos momentos em que estamos de joelhos, e sabermos assimilá-las aí é de valor. Em boa verdade, prefiro não pensar no assunto que magoa, mas suponho que haja outros meios de estarmos lá quando somos precisos.</span></div>
</div>
<div style="color: #454545;">
<div style="text-align: justify;">
<span style="color: white; font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
</div>
<div style="color: #454545;">
<div style="text-align: justify;">
<span style="color: white; font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">A mamã tem um plano, e esse plano é uma tábua de sanidade. Tomei as decisões certas na vida, e isso garante-me que estou onde deveria estar. Em breve tudo mudará e a mamã sabe o que fazer. O único obstáculo será o de ver a avó a sofrer, porque para a dor dos que amo não estou preparada. Não tinha pensado que o fim se aproximasse com as botas das sete léguas, nem que acarretasse tanta agonia.</span></div>
</div>
<div style="color: #454545;">
<div style="text-align: justify;">
<span style="color: white; font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
</div>
<div style="color: #454545;">
<div style="text-align: justify;">
<span style="color: white; font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">Hoje vi uma fotografia de uma criança na<i> internet</i>. É a página pessoal de uma mãe italiana e trata-se de uma menina com aspecto de adulta e ares de traquina. Uma combinação que mexeu com o meu coração e que me lembrou que muitas coisas boas estão por vir. A mamã acredita, mas o instinto e a intuição apertam-me as entranhas neste momento, e de certo modo assistir ao dia-a-dia despreocupado dos outros é-me demasiado penoso.</span></div>
</div>
<div style="color: #454545;">
<div style="text-align: justify;">
<span style="color: white; font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
</div>
<div style="color: #454545;">
<div style="text-align: justify;">
<span style="color: white; font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">A mamã nasceu para chegar onde quiser, porque até hoje nem as pernas nem as mãos e nem a cabeça me falharam quando empreendi uma viagem. Os recursos sempre foram escassos, mas a vontade sempre me deu uma maior envergadura de asas, e o universo sabe que não me acobardo perante desafios. E a mamã quer cruzar na vida o caminho que a levará a uma praia de seixos escuros, com relevos de um verde-musgo ao longe, e haverá uma casinha com telhado de duas águas, uma horta, alguns gatos em suprema liberdade e segurança e um cão. E, algures dentro dessas paredes, os vossos risos e os risos do vosso pai. E o vosso pai é um homem grande, um homem que me merece e que eu mereço, e virá quando eu souber o meu valor e aquilo a que preciso de abdicar para chegar lá.</span></div>
</div>
<div style="color: #454545;">
<div style="text-align: justify;">
<span style="color: white; font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
</div>
<div style="color: #454545;">
<div style="text-align: justify;">
<span style="color: white; font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">A vida e a morte caminham lado a lado e às vezes entrelaçam as mãos, e a mamã tem de seguir a estrada sem fraquejar. Não desespero, não vacilo. Tudo passa.</span></div>
</div>
<div style="color: #454545;">
<div style="text-align: justify;">
<span style="color: white; font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span></div>
</div>
<div style="color: #454545;">
<div style="text-align: justify;">
<span style="color: white; font-family: Helvetica Neue, Arial, Helvetica, sans-serif;">Até já,</span></div>
</div>
Céliahttp://www.blogger.com/profile/17737608801129261940noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4028446859064405647.post-56295992851376393062016-07-18T12:03:00.003-07:002016-07-18T12:10:56.511-07:00Carta aos meus filhos #94<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
Meus queridos,<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
Uma má notícia causou um tremor de terra sem precedentes na vida da mamã. Nunca é bom
sinal ser-se chamado ao oitavo piso do Hospital Garcia de Orta, mas é mais
difícil ainda quando se vai acompanhar alguém que se ama e a quem se deve
tanto.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
O médico estava na
posse dos inúmeros exames que a minha avó realizou no último mês, e embora não
tivéssemos grandes ilusões quanto às notícias que íamos receber, as mesmas poderiam
ser más ou péssimas. Como a vida se tem rido de nós nos últimos tempos, o
médico pareceu entusiasmado e <b>anunciou que tinha uma notícia boa e uma má para
nos dar</b>. A boa era que as várias amostras da biopsia analisadas até agora deram
negativo para cancro. A má era que isso significa que a biopsia tem de ser
repetida. <i>Há esperança</i>, disse.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
Entretanto
perguntou-nos porque faltámos ao exame da medicina nuclear no Champalimaud, ao
que informámos que comparecemos, segunda-feira passada conforme combinado. O
médico descobre então esse novo exame no computador, e pede alguns minutos para
o ler. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
Ao primeiro
suspiro a verdade atingiu-nos. Quando a explicação veio, a mamã sentiu que pela
primeira vez em anos perdeu o controlo sobre a expressão, e o que se seguiu foi
uma luta interior para manter a avó calma, enquanto eu própria entrava em pânico e o
mascarava de boa-disposição.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
O médico disse que
a senhora que me ofereceu o livro da <i>Branca
de Neve,</i> quando eu ainda nem sabia ler, tem esse horror espalhado não só no
pulmão direito, como se suspeitava, como pelos ossos da caixa torácica. Isso
explica as dores. Quadros oncológicos com dores não é bom sinal, e aí
informou-nos que o estado é avançado. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
Como a mamã nunca tinha
dedicado realmente dois minutos a pensar na doença do século, acabou por fazer
algumas perguntas disparatadas. A pior de todas foi “<b>E hipóteses de cura?</b>”. E
depois lembrei-me que estávamos a falar de <b>cancro. </b>O inominável. A doença que as pessoas têm vergonha de admitir que têm, como se fosse contagiosa ou um castigo divino por alguma falta que tenhamos cometido. A doença que causa arrepios quando é proferida numa divisão, a mesma que tem tantos eufemismos e que nenhum deles é menos assustador.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
O médico
prosseguiu com as explicações sobre as terapias à nossa disposição, e como eu
devia parecer-lhe um tanto animada e sorridente, olhou-me nos olhos e frisou
que estamos a falar de<b> cuidados paliativos</b>.
A terra voltou a tremer, e a avó apertou-me a mão com força. Ela não entende
muito do que se estava a dizer, mas entendeu que a morte está a bater-lhe à
porta como um temporal, e que tudo o que podemos fazer é usar os braços para
impedir que entre de rompante, mas as forças acabarão por faltar e ela há-de
entrar. Tudo o que se faça agora é para adiar esse momento o mais possível, e
para que a avó viva descansada, feliz, se possível, e cumpra a sua missão aqui
na Terra, pela qual tem dado tudo de si. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
Quando eu era
pequena, tinha ataques de pânico ao imaginar que a avó desaparecia. Talvez seja
o que as crianças sentem em relação à mãe numa certa idade, quando as coisas
nos começam a ser preciosas e a mãe é-o mais do que tudo (sem querer diminuir
os pais). Eu sentia que se a avó morresse eu ficaria desamparada. O eixo da minha
vida girava em função dela e das rotinas dela. Desde o ir às compras de manhã
(a avó chama “lugar” à mercearia), até ao recostar-se nas almofadas a ver a
novela da noite e a comentar a história, como se houvesse uma chispa de
realismo naquelas ficções. Vinte anos depois sinto o mesmo. Não tenho sido
boa o suficiente para ela. Não sou paciente o suficiente com ela. E que egoísta sou ainda, que queria
que ela me desse mais, quando agora é a minha vez de dar a ela. Queria que me
desse colo e que um dia vos desse colo. Agora já não consigo sentar-me no colo
da avó, ela está demasiado magra para suportar o meu peso, mas tempos houve em
que o seu colo era o mundo, e agora imagino-a como a um Deus no tímpano de uma
catedral, e eu redonda, enrolada em mim mesma, sobre os seus joelhos. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
Quem sabe a avó pudesse
ficar com vocês às vezes, uma manhã ou uma tarde, e fazer-vos água de arroz ou
xarope de cenoura, conforme a maleita que vos atingisse. Queria ouvi-la a
dizer-me para não vos deixar andar descalços, ou usar as expressões só dela,
como “as crianças andam todas desgargaladas”, o que significa que não vos
protegi o pescoço em dias de frio. E chamar-vos-ia de "o menino" ou "a menina", porque ela é assim, e eu não sou. Hei de chamar-vos "o miúdo" ou "a miúda", mas vocês haviam de precisar dessa outra voz na vossa vida. Ou a avó diria para irmos “pedir ao Brotas da farmácia”, o que significa que não há meio de poder satisfazer um pedido, ou tantas outras que agora não me
lembro, porque não absorvi tudo o que podia enquanto podia. </div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
Quem me dera poder
ouvir as suas observações sobre os vossos traços, sejam eles quais forem. Se
ela não vos conhecer, só os céus sabem a espécie de coisas espirituosas que
ficam por dizer. Segundo a avó, eu era “rabina”, “cachondinha da barreira” e “enxertada
em corno de cabra”. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
<b style="line-height: 150%;"><i>Avó, espero mesmo que venhas a ser a primeira pessoa a pegar nos meus filhos ao colo</i></b><span style="line-height: 150%;">, e a
ensinar-me o que fazer com os dentes deles quando começarem a romper, e como
vesti-los, como alimentá-los, como aliviá-los da febre. Se um dia for abençoada
com a graça de ter um filho, saia ele do meu corpo ou da minha vontade de ser
mãe, gostava tanto de saber o que vais dizer!… Se sair do meu corpo, és tu a
mulher com quem gostaria de comentar as diferenças nele, e são as tuas
histórias sobre o mesmo momento que quero escutar. Gostava de saber a tua
opinião sobre o nome deles, os tais que há tantos anos tenho em mente e que
talvez nunca venhas a proferir, e ver o amor atravessar gerações de ti para
eles… Lembro-me do modo como sorrias para a Ana quando ela era bebé, e de como
ela, como eu, se apaixonou por ti acima de qualquer outra pessoa até chegar à
idade em que se começa a distribuir os afectos por estranhos. Se um dia tiver a
sorte de ser mãe, gostaria que o meu filho saísse do meu seio para o teu peito, antes de visitar o abraço de qualquer outra pessoa. Os teus braços, agora tão frágeis, foram em tempos os mais
robustos que conheci. Se não fores tu, quem vai falar das pessoas que ficaram
para trás, e que enterraste, e que ainda vivem nos nossos que estão por vir? Que
outra pessoa poderá fazer isso por mim?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
Tudo isto significa que nos tempos vindouros terei de estar a teu lado, dar-te todos os beijos que te recusei durante anos, porque nunca soube amar com doçura e sempre houve um quê de bicho em mim que te feria. Tenho de deixar-te ver as novelas portuguesas sem repetir que não se aprende nada com aquilo, porque o que importa é que vão distrair-te do que se está a passar.</div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
Perdoa se continuo
à espera que me valhas; como disse, é hora de eu te valer a ti. E, respondendo
à tua pergunta de quando tudo isto começou, quando o teu instinto te disse que
as pessoas só partem quando já não são necessárias e me olhaste angustiada: “Eu
já não faço falta, Célia?”. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
Fazes, avó. <span style="font-size: large;">Fazes
muita falta</span> – por isso vamos acreditar.<o:p></o:p></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
Céliahttp://www.blogger.com/profile/17737608801129261940noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4028446859064405647.post-44872831260947509042016-07-06T15:09:00.001-07:002016-07-06T15:13:05.909-07:00Carta aos meus filhos #93A mamã está a aprender a viver sem amor.<div><br></div><div>Hoje Portugal foi classificado para a final do Euro 2016. Passaram doze anos desde que nos vimos em tal posição. Folheei o meu último livro publicado e encontrei um bilhete do Santiago Bernabeu, fevereiro de 2014. Foi aí que testemunhei o meu último relance de amor. Mas mais puro ainda, em Novembro do ano anterior.</div><div><br></div><div>A mamã, de camisa de dormir de algodão, estendida ao lado dele. Tinha-lhe oferecido o meu segundo livro, mesmo sabendo que ele não teria como o ler. Como ele era um homem solene, especial, demorou muito sentado na beira da cama, com ele entre os dedos, a estudar-lhe o peso, a capa, e a tentar deslindar o significado de algumas das palavras na sinopse. Afinal, os nossos antepassados falavam Latim.</div><div><br></div><div>Depois, respirando fundo, agradeceu. Estendemo-nos sobre a colcha, eu a escrever-lhe a dedicatória interminável que me pediu - quem me dera poder ler agora essas palavras, só para me dar conta de que também os afectos vêm e passam, e de que o que brotou de mim tão forte e se pôs sem resistência poderá voltar a acontecer quanto a outros homens solenes.</div><div><br></div><div>Mas falava-vos de amor. Se a mamã pudesse descrever o amor num momento - e mesmo sendo este um amor de momento, de circunstância, que serviu de bálsamo a um outro maior - a mamã pegaria nesse serão, porque outros semelhantes não os houve.</div><div><br></div><div>Deitada de barriga, acedi a ler-lhe um excerto do livro na língua em que foi escrito. Deitado de costas, ele ouvia o português a ecoar nas paredes de um quarto em silêncio, numa cidade em silêncio, e ostentava um sorriso na suavidade dos lábios. Ouvia, não entendia, mas ainda assim sorria. E a mamã leu um parágrafo, dois, uma página, duas, e ele não tirava os olhos dessas palavras desconhecidas, assim como não tirava o sorriso de condescendência do semblante, e a mamã daria tudo para ser assim feliz de novo.</div><div><span style="font-family: 'Helvetica Neue Light', HelveticaNeue-Light, helvetica, arial, sans-serif;">Há quanto tempo um beijo não significa alguma coisa? Um beijo pode ser outro modo de fazer ecoar-se a alma nos outros.</span></div><div><span style="font-family: 'Helvetica Neue Light', HelveticaNeue-Light, helvetica, arial, sans-serif;">E hoje falou-se de beijos.</span></div><div><span style="font-family: 'Helvetica Neue Light', HelveticaNeue-Light, helvetica, arial, sans-serif;">E de tudo o que me dói, isso é o que me dói mais.</span></div>Céliahttp://www.blogger.com/profile/17737608801129261940noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4028446859064405647.post-30752420575274582932016-06-15T15:56:00.000-07:002016-06-16T02:22:05.209-07:00Carta às minhas filhas #92<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
Hoje vou escrever
sobre o amor, o sexo e os homens. Em 2016, se uma mulher gostar de um homem
durante demasiado tempo, e ele não retribuir o sentimento, ela é uma rejeitada.
Há-de ser vítima de risos, de dedos apontados, de piadas atrás de piadas. Os amigos que tiverem pena, não quiserem partir-vos o coração, vão dizer que vai acabar tudo bem. Quem tiver predilecção pelas pequenas crueldades, vai rir-se e esfregar-vos na cara o nome da sua última conquista e as posições em que têm dormido juntos. <b>Tudo isto deve ser ignorado: afastem-se do ruído e sintam o que a vossa consciência já sabe.</b></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
Como
sei que serão fortes, se isto acontecer convosco, agarrem-se ao facto de
saberem que <u>um grama de amor genuíno é o vosso maior triunfo e tesouro</u>, mais
raro no mundo do que o petróleo pelo qual tantos esgrimam. De certa forma, o tipo que amarem é um privilegiado. Mal o dele se não se dá conta disso e ainda sai pelas ruas a queixar-se que está tudo perdido porque as pessoas são incapazes de amar. Ou talvez seja uma daquelas pessoas tão obcecadas com ser diferentes que se perdem de si próprias e deixam de saber reconhecer o bem quando este lhes é dirigido.</div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
<b>Muitas vezes, isso
será o vosso único consolo.</b> Saberem que são capazes de amar quando tantos se
sentem perdidos quanto a afectos. Não condenando quem se apaixone <i>muito</i>, ou com <i>facilidade</i>, ou
quem tenha várias relações “assumidas”, toda a gente acha mais natural que uma
rapariga de 25 anos tenha tido cinco namorados do que achará se souber que teve
cinco “casos”. É a fronteira da menina decente para a perdida. Mas pior pode
acontecer.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
Se vocês forem
persistentes o suficiente para lutarem pelo que querem, podem até acabar por
ser felizes nas entrelinhas. A vida tende a enviar prémios de consolação, de vez em quando. Podem acabar por entender que, por muito que o
amor a essa uma pessoa seja sagrado e por isso difícil de arrumar para o lado,
há todo um horizonte mais além. Se forem honestas convosco próprias e com os vossos
desejos, saberão sempre quando é hora de dizer sim e quando é hora de se
negarem. Saberão a quem fechar a porta e a quem convidar para o vosso santuário. <b>NÃO DEIXEM DE SE DIVERTIR PORQUE ALGUÉM TEM MÁ OPINIÃO DE VOCÊS</b>.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
Se alguma vez puderem ter cinco minutos com a pessoa que desejariam que ficasse
convosco para o resto da vida, não hesitem. Se forem mulheres modernas,
aprendam a lidar com o depois: <b>não deixem de arriscar por medo de não serem capazes de viver convosco depois de uma decisão tomada, e não deixem de viver com base nos medos e nos limites que tinham estabelecido para vocês mesmas</b>. Ultrapassem-no com graça e perdoem-no por ser
mais fraco e menos subtil na hora de arrumar os cacos. Perdoem-no se sentirem que o ofenderam naquilo que ele achava que o
fazia forte: a resistência. Se ele for um homem inteligente, em breve vai descobrir que tudo na vida é imprevisível. Que tudo muda de rumo. Que as promessas de ontem serão quebradas deste ou do outro lado. Que, no final, alguém tende a ficar com os dois pássaros a voar e um par de mãos vazias para contemplar. É matar ou morrer. Quando um relance de felicidade passa, segurem-na!</div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
Perdoem-no se, depois de confrontado com a vossa
honestidade e a vossa abertura a tudo o que é bom na vida, vos chamar de vacas. Ou
vos mandar calar a boca. Ou não vos olhar nos olhos. Pode acontecer. Por isso perdoem-no se ele se tiver convencido de que
a vida dele deve seguir para Este e vocês forem um farol a Oeste. Que devem a um homem que vos falta ao respeito quando lhe deram tanto? </div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
<u>Desistam dele
quando a estrada chegar ao fim para vocês</u>, e não porque todos os outros vos
pediram (às vezes imploraram) que o fizessem. Orgulhem-se de terem estado lá. Dois, três, cinco anos,
quase uma década. Duas, três, a vida toda. Não importa o quanto. ORGULHEM-SE de vocês próprias por
buscarem satisfação no que a vida estende à vossa frente, sobretudo quando não
criaram as oportunidades, quando não forjaram momentos, mas os mesmos vos foram
estendidos porque vocês os mereciam. Ou porque <i>estava escrito, e tudo tem um motivo na Ordem das coisas. </i>Cinjam-nos com as duas mãos. </div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
Sejam exigentes e generosas convosco
próprias. Há um limite de lágrimas que uma pessoa pode chorar por outra. Um
oceano deve bastar. É vosso direito e vosso dever o pegar nas vossas horas e fazer delas o que quiserem.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
Só se dêem a quem
vos respeitar e a quem tenha também algum respeito próprio – ou a quem quiserem dar-se, nem que seja se para poderem sorver os
recantos desses minutos na memória, pelo resto dos vossos dias, até que a sanidade vos falte.</div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
<b>Uma mulher
sozinha não está só.</b> Tem o seu vinho e o seu jazz. Tem o seu companheiro da meia-noite,
nem que seja o respeito próprio quando as portas se fecham. A mulher tem tanto direito à vida no Oriente
quanto aqui, no Ocidente. E está acorrentada em todas as latitudes. A sociedade ainda não parou de julgá-las. Eu mesma já
dei por mim a julgá-las. Reflectindo no assunto, julgo mulheres que abdicam da própria dignidade para matar a fome do corpo. Mulheres que dormem com os homens por quem os corações das
amigas batem; mulheres que não se coíbem de saciar as vontades à frente da
filha menor num espaço público, mulheres que não se conhecem a si próprias e se apaixonam quatro vezes num ano.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
Sejam confiantes.
Parem de repensar na cabeça o que poderiam ter feito melhor para ter sido
aceites pelo tal. <b>Que se foda o tal.</b> Se fosse mais bonita. Se tivesse mais
dinheiro. Se fosse doutra religião. Se não tivesse gatos. Se não tivesse
barriga. Se não tivesse o nariz torto. Se tivesse outra família. Se não fosse tão impulsiva. Se não fosse loira quando ele prefere morenas...<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
O homem que está
guardado para vocês – e tudo acontece por um motivo, reafirmo – vai fazer-vos sorrir. Vai
chegar e vai fazer-vos sentir-se bem instantaneamente. A mamã sabe que é possível. A mamã já viu o destino a tecer estas malhas várias vezes. O
homem que vos merece – aquele que Gabriel García Márquez diz que nunca vos fará
chorar – jamais vos chamaria de putas. Jamais o insinuaria. Jamais, em momento
algum, o pensaria. Por ter-vos tão alto, por vos louvar - há um certo fado, uma certa queda para a tragédia, em ser-se mulher - eleva todas as outras mulheres também. O homem que é vosso, e sempre foi, está feliz por saber que passaram pelos vossos dias em pleno. Jamais levantará a voz para dizer uma palavra que seja contra o nosso género; e se levantar fará rapidamente um parênteses para vocês e para a mãe.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
Vão tentar cingir-vos ao código de ideias deles. Vão tentar ver-vos sozinhas, presas às normas e ao que é
esperado para uma menina de família, para uma menina de boa-educação, para uma
menina católica, para uma menina que não bebe, não fuma, não fode, não usa mini-saia. Vão perguntar-vos quando arranjam alguém, sem saber que estão livres para arranjar quem quiserem. </div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
Não fiquem na prateleira para sempre, enquanto os homens procuram arrumar as
ideias na cabeça e andam por aí a rebolar de bêbedos e a beijar umas enquanto
apalpam outras, sob a indulgência e o riso fácil da plateia. <b>Dêem uma machadada na prateleira.</b> </div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
Não sejam uma mulher que não pode dar-se ao homem que deseja sem que seja uma vaca. Sobretudo se esse homem não concebe que a mulher em questão o quis sempre em todos os dias da sua vida, com ou sem o apimentado do desejo sexual. Se ele vos chamar de vacas, ergam a mão e façam-na estalar na cara dele. <i style="line-height: 150%; text-align: center;">Só porque algumas são mesmo e os traíram. Ele que seja maior que isso, que ultrapasse! Que aceite que o erro foi sobretudo seu, porque não é lá muito bom a julgar pessoas e as pessoas tendem a trazer a sua natureza à superfície.</i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: center;">
<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
Saibam que fizeram
tudo o que tinham a fazer – e que isso basta de consolo. A mamã aprendeu isso mesmo. Foi uma lição importante. Amor é coisa de sorte mas sexo é coisa de pele, e por enquanto é feio que uma mulher seja menos do que virginal. Ou comprometida. Não se neguem coisa alguma por um princípio que vos impuseram. </div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
Respeitem-se a si próprias, não façam favores
nem fretes. Não percam a dignidade. Fiquem ao lado de quem vos chama bonitas
com o olhar, e que com isso não esteja a falar dos vossos olhos nem dos vossos
seios. Enquanto esse não vem...<o:p></o:p></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: center;">
Dou-vos uma palmadinha nas nádegas e fico a ver-vos sair do quarto:</div>
<div class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0.0001pt; text-align: center;">
<div style="line-height: 150%;">
<b><span style="color: white; font-size: large;">Vão: sejam felizes.</span></b></div>
</div>
<div style="text-align: center;">
<iframe allowfullscreen="" frameborder="0" height="315" src="https://www.youtube.com/embed/N6y5pJv91xo" width="420"></iframe></div>
Céliahttp://www.blogger.com/profile/17737608801129261940noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4028446859064405647.post-38215288697735297852016-05-29T15:52:00.001-07:002016-06-16T02:22:24.309-07:00Carta aos meus filhos #91<div style="text-align: justify;">
A mamã anda a trabalhar muito. Mas é um trabalho bom, cheio de desafios e de trocas de conhecimento. Por exemplo, hoje aprendi que o revestimento das paredes do jardim de Inverno da Rainha Maria Pia é ágata. É importante descobrir o que é especial, único, diferente em cada cantinho a que levo os turistas. Hoje a mamã tentou ser o mais honesta possível acerca do nosso país. Para o bem e para o mal. No final, os americanos disseram que se nota que tenho muito orgulho no meu país, sem que com isso deite abaixo o que é dos outros.</div>
<div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
</div>
<div>
<div style="text-align: justify;">
Hoje a mamã aprendeu que o mais importante é ligarmo-nos aos outros. A comunicação é chave. A ferramenta foi o inglês e a boa disposição. Enquanto me davam palmadinhas no ombro e diziam que tenho uma "positive vibe", estas pessoas não sonham o quão mal a mamã chegou a estar. Mas já não estou. E isso é evidente para quem está comigo uma tarde.</div>
</div>
<div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
</div>
<div>
<div style="text-align: justify;">
Então a mãe tem trabalho muito. Mas não tem escrito. Para tudo há uma hora.</div>
</div>
<div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
</div>
<div>
<div style="text-align: justify;">
Agora a mamã gostava de pôr Etta Jones a tocar baixinho, de vestir um pijama confortável e de descansar das infinitas horas deste dia no ombro do vosso pai. E depois adormecer, sem uma preocupação no mundo.</div>
</div>
<div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
</div>
<div>
<div style="text-align: justify;">
<i>At last, my love as come along...</i></div>
</div>
Céliahttp://www.blogger.com/profile/17737608801129261940noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4028446859064405647.post-80713429524695145202016-02-21T05:48:00.001-08:002016-02-23T13:05:36.536-08:00Carta aos meus filhos #90<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm;">
<b>Quando o amor depende do número de gatos</b></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="line-height: 150%;">Ontem à noite, a minha avó de 83 anos que está de visita a
Portugal disse-me:<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="line-height: 150%;">- Tens gatos??? Livra-te dos gatos. Dão-te cabo da casa, destroem-te
o sofá e os cortinados. Mete-os mas é na rua *força de expressão*.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="line-height: 150%;">Ao que outro alguém, que também me é muito próximo, reforçou:<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="line-height: 150%;">- Tens noção que com gatos em casa nenhum homem te quer?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="line-height: 150%;">E foi ao ouvir ecoar o velho cliché de que os homens <b>temem a presença dos gatos</b> (não
encontro outro modo de colocá-lo), que comecei a remoer neste ponto.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="line-height: 150%;">Com que então, um homem que me conheça (uma mulher de 26 anos
sem um nariz demasiado grande, licenciada, com trabalho efectivo, casa própria,
três livros publicados e a falar, além da sua língua nativa, inglês, italiano e
francês) vai pôr travões ao amor porque tenho dois gatos?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="line-height: 150%;">A sério que existe a possibilidade de um dia alguém me dizer “eu
ou os gatos?”. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="line-height: 150%;">De que modo incomodam, afinal, os gatos? Porque andam por cima de tudo? Sinceramente acho
mais nocivo um homem com consola em casa. Porque os gatos ainda se sentam no
nosso colo e nos fazem companhia, estejamos com quem estivermos, agora a
consola só serve para o chamado “sai da frente!”.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="line-height: 150%;"><b>Porque é que as mulheres que traem, enganam, mandam os homens
à merda e faltam aos funerais das suas mães podem vir a ser felizes e eu não,
porque tenho gatos? Porque é que as que amarram os cães no poste do quintal
(mas ao menos têm cães, não gatos) acabarão por encontrar “o amor” e eu não?</b><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="line-height: 150%;">E que “amor” é esse que impõe condições? “Olha, se não te
livrares dos gatos não esperes que viva contigo”. “Olha, se não trancares os
gatos, não esperes que vá à tua casa”. Ou elas para eles: “Olha, se não limpares os pêlos do
lavatório, é melhor ires morar sozinho”, "Olha, se não puseres qualquer coisa que disfarce o teu cheiro a chulé nos sapatos, é melhor ires embora". "Olha, se não aprenderes a mudar lâmpadas, não me serves para nada". "Olha, se já só vais lá com Viagra, podes pôr-te a andar".<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="line-height: 150%;">Eu sei que o nosso século é mesquinho e cheio de manhas e
modas, mas porque é que é aceitável que se tenha um <i>bull dog</i> francês (e atenção que gosto de cães), com mau hálito,
força bruta e poder destruidor, que rói, mija e ladra, e os gatos, por causa das
unhas e dos pêlos, já não o são? Os cães não largam pêlos? Os cães são melhores
amigos do que os gatos? Depende da noção de amizade. Acredito que uma pessoa
reservada possa ser tão boa amiga quanto uma que atravessa o bar de dentes arreganhados para nos abraçar. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="line-height: 150%;">Tenham tino. Há um limite para a sanidade que talvez se contabilize
pelo número de gatos; como em tudo na vida é preciso conta e medida. Mas não me
venham dizer que sou solteira porque tenho gatos. Estou solteira, sim, porque não
aceito um amor poucochinho. Nem um amor que imponha condições. Ou é tudo, ou
sou muito feliz no “nada”.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="line-height: 150%;">E qualquer homem que pudesse abrir a boca para me meter no
lugar-comum da mulher solteira com gatos, pode muito bem ir dar uma volta ao
bilhar grande. É evidente que sofre de uma miopia grave.</span><br />
<br />
Parece que só me sobram os homens medíocres. Um Julio Cortázar, um Salvador Dalí, um Picasso ou um Matisse. Estou feita...<br />
<span style="line-height: 150%;"></span><br />
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<span style="line-height: 150%;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi5XXb1O5d2tQ-rpBa20MA50mMYAJcZDdAvpChs-pERSD0xiFhlqxG8DxDM1_GdOSclvVU5vT8Sd9g5xFfTY7aCrRRbELRBJggTsSCCXTXip9jZPBeAiPmnQUUDritDZ5CRFtLyFj9hyphenhyphenP4/s1600/Julio+Cort%25C3%25A1zar+33.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="213" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi5XXb1O5d2tQ-rpBa20MA50mMYAJcZDdAvpChs-pERSD0xiFhlqxG8DxDM1_GdOSclvVU5vT8Sd9g5xFfTY7aCrRRbELRBJggTsSCCXTXip9jZPBeAiPmnQUUDritDZ5CRFtLyFj9hyphenhyphenP4/s320/Julio+Cort%25C3%25A1zar+33.jpg" width="320" /></a></span></div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<span style="line-height: 150%;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh4Or3pAOyK-kMlwJggBY27EgBW-nh9jFGzoSTs85-BmTntUkX0KYP1FEQ0QC75_OhVp_i_EeWNnuzjshv1PE-d7EKLWEVyzUbkmv12yW-mWz6C1fDNr7pget7dNQvWlGJV5EvhZRAygQ8/s1600/150505-artists-cats-01.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh4Or3pAOyK-kMlwJggBY27EgBW-nh9jFGzoSTs85-BmTntUkX0KYP1FEQ0QC75_OhVp_i_EeWNnuzjshv1PE-d7EKLWEVyzUbkmv12yW-mWz6C1fDNr7pget7dNQvWlGJV5EvhZRAygQ8/s320/150505-artists-cats-01.jpg" width="238" /></a></span></div>
<div style="text-align: center;">
<span style="line-height: 150%;"> <a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgbPwxtf5AGjdYGoDEV81GfV1idPuHo-EPNgsrbO-R6pSHi3yf3-sj57LoTr3bmmhWnOYWSWWhMoTTvv4n_WzJXuZ61s2nZpE1L93rphdzl6_ofpfvObI2ztFTHYpCT4TySOwLqV_wsHSM/s1600/150505-artists-cats-07.jpg" imageanchor="1" style="line-height: 150%; margin-left: 1em; margin-right: 1em; text-align: center; text-indent: 35.4pt;"><img border="0" height="218" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgbPwxtf5AGjdYGoDEV81GfV1idPuHo-EPNgsrbO-R6pSHi3yf3-sj57LoTr3bmmhWnOYWSWWhMoTTvv4n_WzJXuZ61s2nZpE1L93rphdzl6_ofpfvObI2ztFTHYpCT4TySOwLqV_wsHSM/s320/150505-artists-cats-07.jpg" width="320" /></a></span></div>
<div style="text-align: center;">
<span style="line-height: 150%;"> <a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiuBoGdtbQRRBi-L-983ZA3E2Ec88nBHDMhIPDZuN6YP68uUiY3QeEHOT5JkGCiw0YUQGmv9m1AxTGqkHxHZ2auQy7IAe4lS9nqpgED5osuqN_2lE0wB8hE70MLgBwzHLFXYT2KN7ynmQA/s1600/picasso.jpg" imageanchor="1" style="line-height: 150%; margin-left: 1em; margin-right: 1em; text-align: center; text-indent: 35.4pt;"><img border="0" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiuBoGdtbQRRBi-L-983ZA3E2Ec88nBHDMhIPDZuN6YP68uUiY3QeEHOT5JkGCiw0YUQGmv9m1AxTGqkHxHZ2auQy7IAe4lS9nqpgED5osuqN_2lE0wB8hE70MLgBwzHLFXYT2KN7ynmQA/s320/picasso.jpg" width="317" /></a></span></div>
<span style="line-height: 150%;"><span style="font-size: 12pt;"><o:p></o:p></span></span></div>
Céliahttp://www.blogger.com/profile/17737608801129261940noreply@blogger.com6