Entendendo o Brasil em números,
falamos de 200 milhões de habitantes, cerca de dezoito vezes a população
portuguesa. Enquanto Lisboa alberga 500 mil habitantes, a cidade mais populosa
do Brasil, São Paulo, é casa de onze milhões. Neste momento, é possível que
tenha mais habitantes do que a população residente de Portugal.

A minha perspectiva sobre o Brasil é
um pouco semelhante à que tenho do meu país, embora, uma vez mais, um país
sirva para aprender a dar valor ao meu. As minhas ideias pré-concebidas,
contudo, vieram todas por água abaixo.
A ideia de os brasileiros serem
demasiado ingénuos, por vezes até burros, só funciona para marinheiro de
primeira viagem. O choque de mundos (primeiro e terceiro), é de tal modo
contrastante que eu própria fiz figura de idiota por todos os sítios por onde
passei. Pareceu ser tudo novo, do taxímetro aos buffets a peso. Metia-me sempre na fila errada do controlo de
passaportes, fazia as perguntas mais tolas por insegurança e estava na dúvida
em quem confiar.
A ideia de os brasileiros serem
meio malandrecos também não é totalmente verdade. Passei por uma obra, de
saia e saltos, e sim… os senhores pararam de trabalhar por um instante, mas
retomaram sem nenhum “Ó jóia…!”. Fiquei até de auto-estima em baixo. Em
Portugal haveria show de assobios, só porque sim.
A ideia de o Brasil estar povoado
de bandidos é mentira. Só me cruzei com taxistas honestos, recepcionistas
calorosos, pessoas atenciosas, profissionais, detentores de uma seriedade que
falta mesmo aos portugueses, em grande parte do tempo.
A ideia de o brasileiro ser um
desactualizado que só quer saber de chope e forró é outro pé na poça. Toda
a gente com quem falei sabia o nome dos candidatos à presidência, os partidos,
o background de cada um, quem já esteve no poder, quem se enrolou com quem,
quem foi condenado pelo quê. Apesar de serem obrigados a votar, viu-se um
interesse generalizado no panorama político e socioeconómico do país. Por cá
desconfio que se muita gente fosse obrigada a votar iria à urna só para plantar
uma cruz ao acaso no boletim.
A ideia de o brasileiro só ouvir
Michel Teló e Gabriel Valim é absurda. Quantas vezes perguntei aos meus
taxistas (todos eles maravilhosos e pessoas enriquecedoras) que música era
aquela que ia a tocar no rádio. Jazz com letras em brasileiro, blues, bossa
nova, clássicos dos anos 80. Um mimo para os ouvidos. Nem sombra do Show das
Poderosas.
Fiquei com o peito apertado ao ver o
contraste de riqueza e pobreza que cobre Salvador. Uma percentagem enorme da
população vive no limiar da pobreza, com casas sem reboco nem revestimento, de
tijolo à vista e roupa estendida numa janela sem portadas. Depois há prédios
futuristas tanto em Salvador como em Brasília que não existem nem em Lisboa,
todos com vista favela. E a favela
tem vista centro histórico e prédio ultramoderno.
O sistema de saúde é uma piada. As
pessoas morrem na sala de espera (café da
manhã e notícia na Globo; idoso morre em sala de espera de hospital em
Pernambuco). Quem recorre ao privado paga cerca de 300 reais por mês (quase
100€) e espera semanas por uma consulta. Estamos a falar de um mercado de 200
milhões de pessoas. Não de uma aldeia como Portugal.
Há um certo proteccionismo na
economia que faz disparar o valor dos produtos importados; de roupas a
tecnologia, os valores são demasiado altos para acompanhar o nível de vida da
maioria dos cidadãos. Foi-me dito e repetido que compensa mais apanhar o
primeiro avião para Miami e pagar o peso extra, e regressar com tablets, telemóveis, ténis de marca,
casacos de griffe.

A média de assassinatos semanais em
Brasília é de 18. Significa que esta semana podem morrer 2 pessoas e para a
próxima morrem 34. Um jovem estudante foi esfaqueado e morreu num dos bairros
da cidade. A mãe chorava na televisão, ninguém parecia especialmente comovido,
porque é o pão nosso de cada dia.
Os cães deambulavam pelas ruas de
Salvador, esfaimados, sem que ninguém possa
prestar-lhes atenção, porque a cidade é uma espécie de selva onde todos lutam
pela sobrevivência. Deitada na paragem junto ao paredão, uma jovem foi
levantada pelos cotovelos por um homem. Estava drogada e mal abriu os olhos
quando desapareceu por uma ruela aos tropeções.
Prostitutas e travecas inundavam o
paredão à noite, fumando e deitando olhares expectantes aos carros que
passavam. O negócio vai mal, mas há que aguentar de pé sobre os saltos, até a
manhã raiar.

Um calor que se nos agarra à pele e
que nos faz sentir peganhentos, suados mesmo que não estejamos a suar. Uma
doçura que favorece a impaciência dos mosquitos envolve-nos como mel e quando
damos por nós estamos num restaurante de referência e uma barata atravessa a
parede para se acercar do ar condicionado. “Parece uma sapateira!”, grita
alguém, e a empregada corre a ir buscar o certificado de desbaratização do
local, bem recomendado no TripAdvisor.
Quanto a Brasília, o mais monumental
dos projectos arquitectónicos do século XX, trata-se de uma cidade
relativamente segura, desde que não cruzemos os seus limites e nos aventuremos
nos subúrbios, ou satélites, como lhes chamam lá. Os transportes funcionam, o
projecto de construir uma capital foi pensado ao pormenor e não prevê
cruzamentos, as vias são circulares e permitem o escoamento do tráfego sem
aborrecimentos de maior.

E é assim, o brasileiro. Sorri, diz
bom dia. Pede que olhe pelo filho pequeno que mergulha na piscina enquanto vai
ao quarto buscar o protector. Diz-me que pague a corrida de táxi abastecendo o
carro. Sorri-me e diz que os meus olhos são bonitos. Pergunta-me que língua é
essa que estou a falar. Aconselha-me a não andar sozinha nas suas ruas, mas
acrescenta, com um encolher de ombros, que pessoalmente nunca foi assaltado,
mas conhece um caso. E em tudo isto
reside o seu encanto e o seu poder sedutor. No sobrolho de quem trabalha, na
mão calejada, no sorriso que serve o suco de uma fruta cujo nome sou incapaz de
pronunciar. Na mão que puxa o meu braço e promete proteger-me da impunidade do
seu próprio povo.
É preciso que o brasileiro pense
melhor do Brasil. É preciso que pense melhor do seu compatriota brasileiro. Que exija
mais dos seus comandantes. O Brasil é um país de gente boa, trabalhadora,
honesta (não falo dos políticos) que tem tido os capitães errados. Outra terra
próspera entregue aos loucos.
Envolvidos pela tranquilidade do mar,
iluminados pelas constelações no hemisfério sul e incomodados pela inquietação
dos mosquitos… os brasileiros são, sem dúvida, um povo nosso irmão.
O mais
nosso irmão de todos os povos.