Meus queridos,
A mãe passou por
várias dificuldades e teve vergonha de muitas situações ao longo da sua
juventude. Mas a coisa que a envergonhava mais era não ter possibilidade de
viajar. Por isso, a cada vez que a mãe larga amarras e vai conhecer um novo
cantinho do mundo (da Europa, para ser precisa), é como se me saísse a lotaria.
Nunca voltei igual de uma viagem, nem das mais pequenas, nem das repetidas. Já
vos disse que um dos momentos em que me senti mais capaz e mais orgulhosa de
mim mesma foi quando me vi sozinha na Alemanha a apanhar um comboio de Hamburgo
para Bremen, não já? E em Hamburgo conheci emigrantes sicilianos e ficámos
amigos. E em Bremen ia sendo atropelada por um ciclista brasileiro e ficámos
amigos. E ainda em Bremen comi uma berliner
ao lado de um cidadão da Algéria que me explicou os princípios do seu islamismo
de modo que compreendi o seu lado humano e admirei o seu profundo respeito à
sua religião (ou, digamos, filosofia de vida). As pessoas encontram-se a si
mesmas nessas viagens. As almas, ansiosas por se conectar, por partilhar, por
se elevar, por aprender e ensinar, entrelaçam-se por momentos. Estudam-se
mutuamente, e dão-se ligações preciosas quando saímos de casa. Ligações
fortalecidas pelo desconforto de não se ir dormir a casa nessa noite. É uma
escolha; confiar. E, quando se confia, coisas maravilhosas sucedem. (Mais tarde
alguém vos dirá que desconfiem, mas o meu papel é o de vos dizer que, sendo
espertos mas crentes, a vida tende a sorrir-nos).
A mãe regressou a
Dublin, a Roma e agora prepara-se para regressar a Paris. Contudo, nunca poderá
regressar à Tenência.
Faz este ano dez
anos – uma década -, quem sabe se não hoje mesmo, a catorze de Abril, que me
sentei sob a alfarrobeira junto à eira a ouvir o Feels Like Home da Norah Jones. O CD tinha acabado de sair e a mãe
punha-o a girar no seu discman da Sony. Estava-se em Abril, eu tinha recebido
um casaco de lã grossa azul no Natal e usava-o para todo o lado. Tinha uma
máquina analógica e tirei-me fotos – já haviam selfies naquela altura, pois sim – com campos de papoilas ao fundo.
Tinha catorze anos e começava a perguntar-me tanta coisa…
Vocês não saberão
o que é estar-se cingido às doze músicas de um CD. Não saberão o que é ter de
se conhecer todas as faixas e o ter-se orgulho de saber o número da faixa tal.
Com o tempo, o “Thinking about you” é do Feels
Like Home deixará de fazer sentido. Agora um artista lança uma música que
fica no ouvido, conhecemos essa e nenhuma outra. Não importa a carreira nem o
talento, porque tudo é efémero e se resume a um sopro momentâneo de sorte.
A mãe dedicou
este CD ao morcego caído aos meus pés, às seis da manhã, à saca de amêndoas que
a amiga da tia me deu à porta de casa, por entre lajes vermelhas, cortinas de
retalhos e vasos de barro. A mãe dedicou este CD aos exércitos de formigas que
me subiam pelas pernas, como se eu fosse parte do tronco da árvore que habitavam.
Dediquei este CD ao meu amor inocente, nunca concretizado, que combinava tão
bem com aquela paisagem. Nunca fui tão feliz como fui ali, com tão pouco.
Bastava-me o sol da manhã, seguido das infusões de vinagre que me esfregavam
nas costas à tarde, porque os dias solarengos me punham mole e eu dormia de
manhã à noite. Bastava-me apanhar amêndoas metidas em casulos de resina.
Bastava-me sentar-me sob as figueiras, estender as mãos e comer os figos
maduros, em Setembro, sabendo que odiava figos e que jamais comeria outros que
não aqueles, enquanto estava ainda molhada da ribeira. Bastava-me despir-me de
tudo – despir-me, sim – e nadar, só eu, humana, e só a ribeira, estendida sobre
a nascente fria que os meus pés afloravam. Bastava-me esconder-me sempre que
ouvia um carro a descer a colina, mergulhar mais a fundo. Bastava-me estar por
ali, desafiar-me a chegar à embarcação, devolver a achegã pescada ao rio, polvilhar
um tomate com sal e acompanhá-lo de chouriças em pão alentejano, como se manjar
algum igualasse aqueles lanches fluviais. Bastava-me estender-me no chão,
tantas vezes o fiz, sentir-me parte da folhagem ressequida do final do verão, e
depois acordar a meio da noite com formigas a dançar-me junto ao tímpano. Ou
acordar, mal o sol despertara, pegar num caderno velho e percorrer alguns
metros por entre as casinhas caiadas da aldeia até ao pontão de onde observava
o nada. Um muro de suaves colinas e céu azul, dourado e azul, pois, como se
para lá desse quadro nada mais houvesse. Nem maldade, nem guerras, nem
poluição, nem telejornais histéricos, nem política, nem a Lady Gaga, nem a
Nicki Minaj, nem pessoas que encarceram as filhas e as tornam suas amantes, nem
pais que atiram as filhas de seis anos pela janela, nem mulheres que retalham
os maridos e se livram do corpo deles em três trolleys.
A mãe gostaria
tanto de voltar a esses tempos… mas tudo o que encontraria seriam casas
fechadas, telhados desabados, as fachadas outrora primorosamente caiadas
estarão pejadas de lascas e os idosos foram recambiados para lares ou já estão
no chamado jardim das tabuletas. Em breve a Tenência será um cemitério. Parece
algo tão pequeno, uma ruína, um castro, uma povoação romana, uma Chernobyl
privada de animação, de vida, de juventude… Alguém algum dia sonhará que lhe
dediquei o Feels like Home? Because it really felt like home.