Parte IV
Verona-Trento

Quando dou por mim é hora de
partir para Trento. Não é difícil encontrar o “binário” de onde parte. Vou a
ler um romance cor-de-rosa o caminho todo, chego em menos de nada e nem tenho
de ligar à Giuliana, porque está mesmo ali, de sorriso nos lábios e parka prateado à minha espera. Abraçamo-nos e deixo-a mostrar-me o centro de Trento.
Estamos rodeadas de montanhas e de fontes que prometem um alívio do impiedoso
calor estival. Nesta altura, ao invés, há aldeias de Natal em toda a parte, com
neve falsa nos telhados, renas à porta, miúdos a gritar, pinheiros verdadeiros
iluminados, ciambelle à venda, e ainda azeite, charcutaria, queijos, licores,
sabonetes naturais e decorações de madeira para as árvores de natal.
Mostra-me o Duomo, que tem duas
escadarias enormes em cada lado da nave central, e que exibe, sobre a pedra
cinzenta do interior, pinturas medievais. Um instante antes de sair reconheço
Maria com o filho no colo, de manto azul-celeste. Comemos um strudel trentino e
bebemos um café. Como é Itália, o emprego não se contenta com "um café", e fica a olhar para mim de bloco em punho. Olho
em redor: em nenhuma mesa há dois cafés iguais em quantidade, cor, ou adições.
Uns têm espuma branca, outros devem ter leite, outros natas, outros licor,
outros são expressos e outros são cafés longos. Digo-lhe que seja criativo.
Traz-me aquilo que seriam três bicas portuguesas numa chávena alta, mais fraco
que o nosso café mas menos aguado que o Americano. Todos sorriem, são simpáticos,
falam alto, dizem “Salve”, desejam boas festas. A Giuliana cruza-se com uns
quantos amigos. A dado momento falava-me da avó. A propósito de nada. Diz-me
que a avó morreu quando tinha oito anos, mas que lhe foi tão especial que,
apesar de já ter metade da família no céu, é sempre a ela que recorre em
preces. Deixa-me à porta da Igreja de San Lorenzo e que, se tiver tempo, devo
entrar. Entretanto tenho meia hora para agradecer ao Ricardo, a voz que me
salvou a pele ontem ao cancelar a reserva do hotel de Trento sem custos. Diz
que está no bar da estação de comboios e que vou reconhecê-lo porque está a
escrever num portátil. Como não vejo bar nenhum, na estação, pergunto a um
velhote. O velhote pergunta-me que tipo de bar quero. Estou só a usar o
vocabulário que o Ricardo havia usado na sms. Digo que vou encontrar uma pessoa
que me disse que estava no bar. Ele aponta o sítio e é tão simpático que estico
a mão para agradecer. Segura-ma, afaga-me os dedos e pisca-me o olho. Vejo-lhe
um espasmo no lábio e pergunto-me: será que?... E então diz que, se estou a
mentir e preciso só de encontrar o bar, sem que ninguém lá me espere, ele pode
levar-me a outro bar que conhece onde podemos aquecer-nos os dois. Ri-me.
Tratei-o como se fosse meu avô. Vou-me embora a rir e de facto vEjo de imediato
o homem ao computador. Tem uma página do word aberta com inúmeras coisas
escritas. Chamo o nome dele, assente e ri-se. Então pergunto na brincadeira se
é escritor. Sim – mete o computador na mala e saímos dali com aquela facilidade
com que os “latinos” têm em dar-se. Andamos cinquenta metros até à Igreja de
San Lorenzo, que lhe digo que quero visitar. Pelo caminho diz-me que está a
escrever um romance sobre o tráfico de crianças durante a guerra dos balcãs.
Fico impressionada. Dentro da igreja de San Lorenzo, vêm-me as lágrimas aos
olhos. É românico puríssimo, à excepção do tecto que está caiado de branco-pérola
e raiado de estrelas. Faz sentido, porque penso em toda a gente que me salvou
do carro como estrelas. Ele entre elas. Tinha-lhe comprado uma estrela de
madeira no mercado de Natal e dei-lha. Era o momento certo. Explico porquê. Já
estamos de saída, estava a haver missa e não podemos falar. Passaram-se dez
minutos desde que o cumprimentei no bar da estação. Pergunta-me onde quero ir.
Digo que nos podemos sentar um bocadinho num banco no jardim, por entre os
azevinhos e as cabaninhas de madeira cheias de criançada. Explico que o meu
comboio é regional e daí a vinte minutos, mas que se o perder posso apanhar
outro regional com o mesmo bilhete. Então sorri-me sem ponta de vergonha e
diz-me que conhece um sítio ali perto onde podemos aquecer-nos. Respondo que
acabei de beber café. Diz-me que não era bem a isso que se referia. Que era o
destino, que era um romântico e que devíamos aproveitar para estar um bocadinho
a sós. Com graça, disse que era melhor ir apanhar aquele comboio porque estava
a ficar de noite. Tinham-se passado quinze minutos no total. Leva-me ao comboio
mas diz de imediato que tem de voltar para o hotel, está muito complicado de
reservas nesta época do ano. Fico aliviada e volto ao livro. Não demora muito
até que uma menina vestida de elfo me cumprimente. A mãe conta logo que a filha
acabou de sair da escola dos elfos com distinção. Reparo nas orelhinhas no
barrete. O comboio vem e a penúltima personagem importante do dia foi o
revisor. Vê o meu bilhete e engraça com o meu nome. Pergunta de onde sou. Fica
extasiado quando falo em Portugal. Diz que esteve lá com a mulher e que amou,
acrescentando que muitos amigos estão a ir para lá depois da reforma. Falamos
um bocado e uma vez mais o desejar felicidades (e um aperto de mãos sem maldade
mas com muita cordialidade).
- Última pergunta, Célia – diz. –
Como é que uma rapariga de um país lindo como Portugal anda com uma sweatshirt
a dizer Irlanda? Ma come mai?
Damos uma risada e ele vai-se
embora, diz “boa tarde” em português e “obrigado”. O nosso riso tinham ofuscado o das crianças por um bocado. Então, quando volto a atenção para o livro, começo
a ouvir as brincadeiras dos bimbi. Os pais dizem três, quatro, cinco vezes “Basta,
Alice!”, mas a Alice e a amiga continuam aos risinhos e aos guinchos por meia hora. Toda a carruagem estremecia com as suas passadas no corredor central, conforme jogavam à apanhada e escalavam aos bancos vazios. Não dei por saírem, mas um velhote vira-se do banco da frente e sorri-me. Diz “acho
que as crianças já saíram”. Damo-nos todos conta do silêncio na carruagem e há
uma risada colectiva. Depois conta que tem uma neta de dez anos e que corre
como um “capretto”. Ainda não fui ver o que é, mas entendi que seja um caprino.
Amorosos, os italianos… ainda que um bocado rebarbados.
Estou tão feliz. E amanhã… oh,
amanhã!
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