Hoje
foi um dia estranho (e triste),
A mãe tinha posto o despertador para as 06:00
da manhã, mas o mostrador vermelho que foi sempre consultando durante o sono –
já de si agitado – fez-me saltar dos lençóis às 05:58. Enquanto tomava banho
dei-me conta de que o alarme do telemóvel não tocou e já eram 06:20. Isso
porque estava pré-programado para só tocar durante a semana e hoje era sábado.
Ou seja, deu-se o primeiro acaso do dia: se não tivesse tanto medo de dormir
sozinha nesta casa, e se dormisse um sono profundo e descansado, não teria
visto as horas, o despertador não teria tocado e eu teria perdido o autocarro
das 08:30 para Berlim.
Que fui eu fazer a Berlim? Ora bem, estando a
280 km da capital, a três horas de autocarro ou duas de comboio, considerei um
desperdício não visitar o outrora coração do Reich III. A viagem foi longa, não
podia cruzar as pernas que a circulação parava de imediato nem dormir
confortavelmente. A somar a isso, assim que meti um pé no metro em Richtweg,
entendi que me tinha esquecido dos phones em casa. E, nessa mesma manhã, sem
vontade nenhuma de sair da cama para ir visitar Berlim, convenci-me que não
podia morrer sem ouvir a Wind of Change
junto a um pedaço do muro. Assim sendo, palpitou-me que o dia ia correr mal.
Não depus nenhuma expectativa em Berlim,
guiava-me apenas uma certa suspeita de que não gostaria da cidade. Por isso, a
capital estava livre para me impressionar pela positiva. Aconteceu o exacto
oposto, e vi-a sob um sol de torreira que me queimou a cara e me fez arrotar
2,00€ por uma garrafinha de 0,5L de água e quase o mesmo valor por um muffin.
O autocarro deixou-me em Kaisercamm. Gravei o
nome dessa estação de metro no braço e no inverso do bilhete de metro (2,60€,
válido por duas horas). Desci em Potsdamer Platz e era suposto mudar de linha,
mas aparentemente o dito cujo Brandenburg’s gate era logo ali. Caminhei ao
longo de uma vasta avenida (tudo é grande, em Berlim), e passei por uma
qualquer comemoração de uma comunidade italiana. Os italianos foram os meus amigos
aqui da Alemanha, sem dúvida. Quando eu perguntava “fala inglês” e eles,
tristes, respondiam “no, italiano”,
eu deitava os braços ao céu e dizia “grazie
a Dio”. Quando vislumbrei a tal porta da cidade – o símbolo de Berlim –
fiquei decepcionada com o seu tamanho reduzido. Imaginava algo em grande, mas à
luz das dimensões monumentais de Roma, pareceu-me tacanho. O facto de estar a
haver um evento político – com direito a discursos em alemão e uma grande
multidão apinhada – não ajudou a bloquear a minha mente para os acontecimentos
da II Guerra Mundial. Imaginava o terceiro Reich a propor-se a conquistar a
Europa a partir daquela pequena praça. Também a águia alemã – um símbolo retro
muito à século XX, me perseguiu nalgumas esquinas.
Comprei um cachorro quente – sem batata
palha, estes tipos nem sabem fazem cachorro quente! – e uma cerveja, para não
repetir a inexperiência quanto à
Guinness, que nunca cheguei a provar enquanto estivemos na Irlanda. O cachorro
foi cinquenta cêntimos mais barato que a cerveja, e o destino desta última foi,
após o primeiro golo, uma queda livre para a vala mais próxima sob o
testemunho do Brandenburg’s gate. Pedi a um estranho que me tirasse lá uma foto
– para vos mostrar, um dia, que a mãe era muito emancipada aos vinte e três
anos – e prossegui viagem. A Catedral de Berlim não aparecia em canto algum e
comecei a olhar ansiosa para as horas, isto porque tinha cinco horas para fazer
o city
break mais stressante de sempre. Quando a Catedral finalmente apareceu,
junto à ilha dos museus, pensei: ora
finalmente cheguei à parte mais bonita da cidade, talvez ainda vá a tempo de
redimir-se. Qual quê. Procurei ângulos para uma fotografia decente dos
museus – nada, são enormes, mas de bonito pouco têm. Mega estruturas de
inspiração neo-clássica que me parece até tosca quando comparadas com as
italianas. Nem entrei na catedral, subi as escadas ao som do bramidos de uma
cigana romena contra o filho (que estava de birra, como também me apetecia
estar) e voltei a descê-las após espreitar para o interior.
Next
stop,
Alexanderplatz. Supostamente um dos hot
spots da cidade. Estive nela sem poder acreditar que aquilo fosse a famada
Alexander Platz. Cheirava a subúrbio, falta de sentido estético e
sobrevalorização aguda. Uma coisa tão banal (mas grande, e eles classificam os
monumentos como “a maior praça da Alemanha”), que já tinha prosseguido o meu
caminho quando me obriguei a voltar atrás. Ninguém acreditaria em mim quando
dissesse que a Alexanderplatz é um embuste. O que resta a Berlim se tudo me
pareceu medíocre? Voltei atrás para tirar algumas fotografias que justificassem
o meu exaspero. Nem tive de me esforçar por encontrar um mau ângulo – ângulos
bons, não os há. A Canon gemia de frustração. Três horas de viagem prometiam
qualquer coisa de grande.
Desisti do centro de Berlim e pensei que
ainda me faltava ir à parte que realmente me interessava, o último ponto da
viagem, a East Side Gallery. Quando
desci da estação dei por mim num ermo facilmente comparável a um Fogueteiro, só
que com uma mega estação no meio. Ao
menos é feio mas é em grande. Já me tinham avisado que não se trata da zona
mais bonita da cidade, mas depois de ter desgostado de tudo o resto, julguei
que poria o pé fora do comboio, espreitaria para o exterior e apanharia o
primeiro U-bahn back to Kaisercamm.
Como a sinaléctica é inexistente, quase me
perdia durante mais um bocado até lá chegar. Não há quaisquer indicações em
inglês, não há qualquer direcionamento para o turista. A língua não é
propriamente fácil e não há assim tantos cidadãos a dominarem o inglês. A cada
vez que uma palavra em germânico pautava as suas indicações, a receita para
mais deambulações sem rumo estava encaminhada.
O muro tem um significado que teria gostado
de percepcionar a ouvir a tal música dos Scorpions que mencionei. Contudo
resumiu-se a uma longa caminhada junto a uma parede colorida com bonitas
mensagens e ilustrações, lado a lado com uma cidade que mal podia esperar para
deixar para trás e para fazer “check” na lista dos locais a conhecer. A Alexanderplatz
surgia lá ao fundo (aquela torre que nem tive tempo de investigar a que se
deve, posto que decidi numa tarde ir a Berlin e planear o que ver/fazer).
Caminhei até ela. Penso que o percurso tenha durado de tinta a quarenta e cinco
minutos. Isto porque não se conhece realmente uma cidade sem lhe termos
impresso parte da sola de uns sapatos. Quando finalmente passei por um Photoautomaten, uma daquelas cabines de
fotografia de rua que te devolve vários rostos e ângulos de ti próprio a preto
e branco (o prometido), julguei que a cidade queria redirmir-se. Ia entrar e
desembolsar 2,00€ de boa vontade quando reparei que… bem, como é que posso
coloca-lo sem utilizar a asneira que me vem à mente? Já sei, utilizando a
asneira. Merda. Merda humana a repousar comodamente no assento, rodeada dos
insectos que a adoram e a afastar-me de vez de Berlim a sete pés.
Voltei para casa noutro inferno de três horas
em que nem podia cruzar as pernas a perguntar-me se terá valido a pena. O
dinheiro certamente valeu, porque paguei pouco mais de trinta euros por uma ida
a Berlim, mas e o resto? O calor, os preços inflaccionados, a fealdade geral?
Cheguei a Richtweg às 22:00. Sabia que me esperava outra noite de receios. A
mãe nunca foi medricas mas, ultimamente, tem medo do escuro. Medo do escuro e doutras coisas que não sabe nomear. Aquela casa fazia barulho. Todas as casas
fazem mas, num bloco vertical com quatro pisos e lanços de escadas em madeira,
nem o alcatifado garantia silêncio absoluto. Primeiro houve a situação das tais
vozes, tipo televisão ligada, que escolhi
assumir que foi mesmo a televisão do vizinho a causar tal susto. Em seguida, à
noite, mantinha-me estranhamente alerta, e eu até tenho facilidade em me
abstrair. Há duas noites, quando estava mesmo, mesmo a cair no sono, mesmo com
os dois pés a escorregar para o outro lado, ouvi um ruído na madeira das
escadas. Suficiente alto para me acordar, relampejou-me na ideia a impressão de que um corpo transferia o peso dum último degrau de madeira para a alcatifa cá de cima. Por
muito que precisasse de dormir, porque ia acordar cedíssimo, quem me
convenceria a adormecer sob tais condições? Mantive a minha vigília enquanto
pude. Não me lembro de adormecer. Além disto parece que a casa… respirava. Isto
é, às vezes parece que estranhas massas de ar reequilibravam as energias no seu
interior. Punha-me a olhar para um sítio fixo sem que daí adviesse nada, mas a
minha percepção e a minha visão pareciam desencontradas. Ontem à noite a
torneira da cozinha lembrou-se de pingar. Desci as escadas com à vontade, a fim
de fechá-la melhor. A parede das escadas dá directamente para uma sala cheia de
carpetes e mantas onde nunca cheguei a sentar-me. Tive de parar abruptamente porque
me pareceu que algo se estava a mexer na sala ao lado. Algo respirava e
ouvia-lhe, com o mexer dos lábios, o revoltear da saliva. Não estou louca, pensei. Todos os meus sentidos gritavam que estava
ali alguém. Tinha de estar ali alguém. Sabem quando sentem alguém se aproximar
das vossas costas? Olham sobre o ombro e é um amigo. Os meus sentidos diziam-me
que estava lá alguém. Mas nada. Subi e encolhi-me num canto, já esquecida da
torneira. Pouco depois reuni coragem suficiente para ir lá abaixo, com uma
pequena faca em punho, inspeccionar. Atrás do cortinado parecia que havia um
volume. Eu não me lembrava de como tinha deixado os enormes cortinados opacos
que vão do tecto à alcatifa quando, nessa mesma tarde, me tinha ajoelhado nela
para fazer as malas. Tive de suster a respiração e afastar os cortinados. Como
dormiria eu se não verificasse? Nada. Mas
aquele canto tinha ficado como que preso ao chão, então voltei a puxar os
cortinados. Nada. Continuava a haver um volume estranho na forma como os mesmos
se rearranjavam, e puxei uma terceira vez. Nada. Por último, sem puxar, olhei
simplesmente lá para trás. Nada. E o receio eclipsou-se por um momento. Mas não
por demasiado. A cada vez que a madeira das escadas estalava ficava em pânico.
Desliguei o computador à pressa a fim de me fechar no quarto e tentar dormir um
pouco. Duas das vizinhas ainda tinham as luzes acesas e isso passava-me algum
conforto.
A mãe, como disse, nunca teve medo de coisa
alguma. Só da solidão e da incompreensão. E agora tem medo do escuro e doutras
coisas mais. Na realidade, nas últimas semanas sentiu por mais de uma vez que
passou ao lado de uma grande desgraça. Na auto-estrada quase sentiu um anjo
negro de asas distendidas a passar ao lado do carro. Ficou desconfortável e,
uma vez mais, estranhamente alerta. Depois sucedeu qualquer coisa de mal. Em
seguida uma senhora com intenções duvidosas ofereceu-se
para cuidar da mãe em Hamburgo. Estava tão farta de procurar casa que aceitei
as suas ajudas e quase me meti na boca do lobo. Depois em Berlim, senti-me
constantemente ameaçada e pensava que uma viagem só termina bem quando pomos o
pé em casa. A prudência foi como um manto sobre os meus ombros, a tal ponto me
achei sortuda por não me ver desgraçada que já pensava que, se me levassem só a
Canon, era justo.
E assim concluí que sou uma mulher muito
abençoada, e senti-me religiosa. Tenho sido muito protegida, ultimamente mais
do que nunca, por uma estrela anónima. Ainda assim, sinto qualquer coisa de
negro a rondar, como uma sombra que me tolda os movimentos e me mantém
constantemente em vigília.
E antes de me deitar ainda recebi uma notícia
má que me pôs a pensar na vida, nas partidas, no que está para lá disso e na
sorte tremenda que tenho tido. O destino continua a lançar os seus dados – e eu
continuo no sítio aonde tenho que estar – porque marquei a viagem para casa a
tempo de ir reencontrar a minha vida e abraçar quem precisa.
Para concluir Berlim e me deixar de assuntos
que só suscitam dúvidas retóricas:
A experiência não foi das melhores, em parte
porque também viajar sozinho é desafiante, mas não tão gratificante quanto
julguei que fosse. Considerei a capital da Alemanha a cidade mais feia que
visitei até hoje, e olhem que estive em Milão (cinzenta, superficial, sem
espírito artístico), Dublin (industrial e plain)
e Hamburgo (pouco homogénea, a mistura do antigo com o moderno não funciona
bem). Bremen, em contrapartida, tem o encanto de uma fábula – e a mesma se
insinua a cada esquina. Foi este pequeno cantinho que salvou, perante os meus
olhos de curiosa, a Alemanha.
O Italiano da Sicília dizia, enquanto me
prepara um spaghetti ai funghi, que
os países do Norte têm dinheiro – as senhoras passeiam-se com saquinhos da Dior e malinhas da Louis Vuitton – mas não fazem ideia do que é a beleza e a alegria. A beleza não pode ser planeada,
ou sai gorada. A beleza não pode ser aleatoriamente plantada no centro de uma
praça, porque não depende apenas de uma fonte destaca-la. A Fontana di Trevi bem no meio da
Alexanderplatz morreria. A Piazza Navona por entre a solidez obtusa daqueles
monumentos sufocaria. A beleza está no espaço, mas o espaço é algo de amplo. A
beleza está na musicalidade de uma língua, na compleição dos rostos que a
cantam, nos gestos das gentes e nos modos das crianças.
A Berlim falta o senso estético da beleza. Da
beleza que jorra em cada esquina de Lisboa, algo de tão complexo que é mais do
que mera obra humana; é um conjunto de circunstâncias felizes. Aquele senhor,
por acaso, decidiu construir uma casa naquela esquina que, por acaso, dá para
nascente, e à sua disposição só tinha aquela pedra, que, por acaso, capta essa
mesma luz de modo especial. A mulher estendeu nessa manhã, por caso, os lençóis
coloridos da cama do filho de ambos e o padrão dos mesmos sobressai no amarelo
da fachada. Sendo por acaso primavera, as sardinheiras acabaram de florir na
varanda. Por acaso ao lado da sua casa ergue-se uma pequena igreja, por acaso o
sino está a tocar quando vamos a passar. Por acaso há outras casas por entre as
ruas casualmente sinuosas desse pequeno bairro e, quando por lá circulamos, têm
as janelas todas abertas e toca uma voz melodiosa que fala dessa palavra tão
portuguesa – a saudade. Por acaso mais adiante prepara-se o fogareiro para
assar a sardinha e, logo além, as crianças gritam e pulam e enxotam os gatos
vadios. Por sorte lá em cima há um miradouro e, depois de uma refeição
inesquecível (e barata), onde não faltou um bom vinho, afastamo-nos do
eléctrico para aceder à balaustrada e debruçamo-nos. E de lá vemos as
andorinhas esvoaçar sobre a superfície espelhada do Tejo, mesmo porque
entretanto é quase verão, e ao longe o cacilheiro. Os jacarandás explodem em
lilás por toda a parte e a cantiga da cidade despede-se sem deixar de nos
desejar um boa viagem, volte sempre.

E é por isso que a mãe voltou para o sítio ao
qual pertence.
No fundo, sempre soube que o vosso pai não
seria alemão.