Queridos,
Hoje a mãe perdeu-se por meia hora algures
entre uma estação cujo nome não sabe dizer e outra à qual deveria chegar mas
cujo nome também não sabe dizer. Pesando os acontecimentos do dia e dos últimos
tempos, sentiu essa desorientação como uma suprema liberdade. Perdermo-nos
significa não sabermos onde temos os pés. Para onde vamos? Como retornar ao
nosso caminho? E a mãe saiu do metro, perdeu o autocarro que devia apanhar e,
num ímpeto de fé, meteu-se no primeiro que apareceu. Pensou “com sorte, leva-me
aonde quero ir”. E, sentada de frente para as janelas que passavam os arredores
como um filme em tela verde e cinzenta, golpeado por rasgos do final do dia,
sofreu os altos e baixos do desconhecido e do vagamente familiar. Hoje deu por
si a pensar sobre felicidade, casa,
religião, o sentido da vida. Desde que chegou que tem procurado os sinais. Sabem, quando estão num sítio
e não entendem ao certo como foram lá parar mas, de repente, uma rádio próxima
toca a vossa música favorita e vos reconcilia com o universo? A paz transmitida
é de quem sabe que está onde deve estar. E, embora vivendo na casinha nº5 – e o
5 significa muito para a mãe, porque somos cinco irmãos – a mãe não voltou a
receber sinais sobre estar no sítio certo. Ou, até hoje, não tinha voltado a
receber. E o que aconteceu hoje para me reconciliar com a minha vida e para me
passar a confiança necessária para entrar num autocarro desconhecido sem saber
onde iria aportar?
Bremen é uma cidade lindíssima. Fiquei encantada
e envergonhada com a minha ignorância quanto à arte e à História germânicas. A
Catedral inebriou-me e a história dos músicos enterneceu-me. Mas a certeza de
que hoje estive onde o destino quis que estivesse foi o que aconteceu quando a
hora de voltar ao comboio se aproximou. A mãe conseguiu voltar – apenas guiada
pelo se sentido de orientação – quem diria que tenho um? – para Bremen Hbf
(estação central). Depois de percorrer todas as montras com os olhos, meteu-se
numa espécie de self-service de bolos
e bebidas quentes mesmo em frente à estação. (Porquê ali e não noutra das
dezenas de montras que inspecionei?) Faltava uma hora e meia para o meu comboio
e, por isso, comprei uma berliner e
um café (uma aguadilha, na realidade) e sentei-me à janela. Um senhor alemão veio apoiar os cotovelos na minha mesa (alta) e começou a debitar coisas conhecidas em Espanhol e contou-me que viveu 8 anos em
Alicante. Sentei-me a comer enquanto o funcionário me dizia que os espanhóis
não gostam de estrangeiros e lhe pareceram rudes. Entretanto outro senhor, de
barba comprida e um estranho chapéu preto na cabeça (que pareceu careca sob as
malhas), vem sentar-se ao meu lado em silêncio e ouve discretamente a nossa
conversa. Às tantas os dois começam a falar da América em alemão e sou
excluída. Oiço o alemão dizer: mas você
não bebe álcool, e o outro senhor anui. Pouco depois o alemão desaparece e
fico sozinha, a comer a berliner com
recheio de doce de amora ou framboesa e a conversar com o senhor que não bebe álcool. Fala mal Inglês,
diz-me, porque não aprendeu na escola. Eu acho o seu discurso claro e os seus
olhos pacíficos, a escola da vida é infalível. E assim passei ali a hora e
meia que faltava para o meu comboio a pensar: olhem para mim, com um metro e
cinquenta, sozinha na Alemanha e a conversar tranquilamente com um muçulmano –
o bicho papão mundial, segundo a comunicação social. Jovenzinhas, fujam!
O senhor contou-me que é muçulmano, da Argélia
e, com um tom conciliador, perguntou-me o que acho dos muçulmanos, o que ouvi dizer deles? Então explicou-me que
tem que se sentir os outros com o coração. Que, o que quer que seja que uma religião
ou um governo professem, sabemos sempre dentro de nós o que é certo e o que é
errado. Respeitam os animais, não comem cão nem gato, adiantou, não são como os
chineses. Nem comem animais como o porco ou a cobra, nem bebem o seu sangue.
Elucidou-me, por exemplo, no que diz respeito à poligamia. Os homens da sua
religião não o fazem por luxúria. Fazem-no por generosidade. Porque um homem,
quando tem posses, deve ajudar uma mulher. A primeira mulher tem outro
estatuto, mas a segunda pode ser uma viúva com filhos. Ou alguém que, por algum
motivo, não casou quando era esperado. Alguém que precisa de apoio e ele
estende-lhe esse braço. Porque não ajudá-la se tem meios para o fazer? Se não
tiver meios de a sustentar é até imoral acolhê-la como sua mulher. Pus-me a
pensar que tantas vezes o homem ocidental leva da mulher ocidental (por acordo
mútuo) o mesmo que o homem islâmico leva da mulher islâmica, e sem lhe dar nada
em retorno. Tantas vezes nem um telefonema nem um post-it, quanto mais uma casa e alimento. Talvez seja por me sentir
desamparada, mas achei que tudo aquilo faz imenso sentido. Ninguém é perfeito,
afinal de contas, e muito menos uma cultura, sociedade ou sequer civilização
são perfeitas.
Fez notar que o importante é não julgar,
respeitar, e sobretudo tentar compreender. Informar-se, não ouvir falar, mas procurar saber. Aprofunda o discurso dizendo-me que um pai tem sempre
um filho favorito perante o seu coração. Também o marido muçulmano não sente o
mesmo por todas as esposas, mas não lhe é permitido trata-las diferencialmente,
assim como também não o fará perante um filho. Diz-me que acha que tudo seria
mais complicado só com uma mulher – quase
como se dissesse que no amor entre duas pessoas, uma passa a ser o mundo da
outra e, se a relação deles desmoronar (se um morrer, digamos), o mundo
desmorona também. Acrescenta que o argumento de que as mulheres, então,
também deveriam ter vários maridos, não faz sentido. Não faz sentido porque a
mulher é receptáculo de protecção e não fonte dela, é gerente de receitas e não
geradora das mesmas. Quando essa mulher tivesse um filho – pois que seria um
útero para várias sementes – quem seria o pai? Por muito patriarcal que seja
esta visão, eu entendi. Chama-se tradição, e também a tourada é respeitada e é
abominável. Porque não abrir um pouco mais a mente? Serão essas mulheres
escoltadas por uma arma até ao “altar”?
Adianta que a imagem de violência,
terrorismo, maus-tratos para com mulheres, não é ilustrativa de grande parte do
islão. São sim o retrato de situações que nem o Deus deles aprova, mas que
alguns indivíduos praticam. Mas em cada religião há elementos bons e maus, e
Deus (Alá) criou o mundo e não se deve criticar as coisas como ele as fez, ou
critica-se a obra superior. Não se deve rir dos outros nem falar nas suas
costas, ou gozamos com a obra de Deus (que eu traduzo por – com a ordem das coisas – nada nem ninguém é
perfeito e todos temos telhados de vidro).
Fala-me de gratidão – tem saúde, tem
trabalho, vive há vinte e dois anos na Alemanha e acha que é como viver noutro sítio
qualquer - porque o importante é ser-se feliz e casa é onde nos sentimos bem –, não está desfigurado e tem forças
para ir agradecendo pelo que lhe foi oferecido.
Profere tudo isto com humildade, um brilho
nos olhos e uma mão no peito. E diz-me; não
é minha missão tentar converter-te, mas quando chegares a casa e tiveres dois
minutos, podes tentar ler sobre o islão. Depois acrescenta que imagina que
eu receie as pessoas da sua religião pelo que se ouve em todo o lado, e eu
contei-lhe a minha aventura com um iraniano em Roma. Saliento que me perdi e
apenas fui jantar com o rapaz, nada aconteceu nem nenhum romantismo se
insinuou. Ele ouve com atenção e no final diz-me, pacientemente: foi um erro, Deus pode desculpar-te uma, duas, três imprudências, mas chegará a vez
em que algo de mal te acontecerá. Podia ser agora, aqui neste café, podia ser
eu o mau.
E di-lo com tanta bondade no olhar que é como
um pai a falar com um filho, e não uma ameaça dissimulada. Ainda não foi dessa
vez que tentei a sorte e ela me atirou ao chão. Digo-lhe que sei reconhecer uma
boa pessoa quando a vejo. Ele diz-me o mesmo.
Quando me despedi dele, estendi-lhe a mão. Eu
tinha meia hora até ao comboio e ele meia hora até à próxima oração. Pediu-me
perdão por não poder apertar-me a mão e explicou-me uma última coisa: um
muçulmano pode apertar a mão (ou beijar o rosto) de mulheres da sua família com
quem não possa casar-se. Uma irmã, tia, cunhada, mãe. Mas não pode fazê-lo a
nenhuma mulher com quem possa casar-se.
Por isso pede-me perdão pela recusa, diz que lhe seria mais fácil apertar-me a
mão do que debitar-me uma explicação. Acrescenta que não é porque tenha nojo de
mim ou me ache feia ou indigna, mas o Deus dele pede-lhe que não o faça e ele
prefere respeitá-lo. E eu fui-me embora com a certeza de que aquela conversa
estava à espera de vir ter comigo.
E, com a decisão que acabara de tomar, já
fazia sentido estar na Alemanha, dormir na casa número cinco e ir a Bremen.
Quando o autocarro finalmente parou, o
mercado de flores já tinha fechado. A mãe atravessou a estrada já familiar e
desceu para o metro que tinha de apanhar.
Nunca duvidei realmente de que a vida me
trouxesse aonde preciso de estar. É só ter fé e acreditar.
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