Meninos,
O gato ainda não voltou a
casa. Ontem, à luz do aeroporto de Fiumicino, na fila para embarcar para Bari,
a mãe sentiu que a sua pele era translúcida. Se súbito, teve vergonha da rede
de veias e articulações que lhe cruzam a pele. Sentiu-se embaraçada por causa
das olheiras, da brancura excessiva da pele, que em certas luminosidades foge
para verde, azul, roxo. A mãe sentiu que, se olhassem para mim, se alguém se
voltasse ou olhasse sobre o ombro, ver-me-ia como eu sou.
O guia turístico que nos tem
levado a calcorrear as ruas de Lucera tem uma luz especial. É a pessoa
diferente; a mãe encanta-se sempre pela pessoa mais normal do mundo, mas no
contexto errado. Os italianos falam alto e usam muito as mãos, riem e dizem
piadas de olhos cintilantes. Este italiano fala um inglês cuidado e usa
vocabulário específico que a mãe reconhece mas não está certa de que
conseguiria reproduzir com tanta fluência. Por sabê-lo tão metódico, por o ver
tão direito de pasta na mão enquanto, a seu lado, a guia local explica tudo em
italiano risonho e gesticulado, e por lhe registar o timbre pacífico e as piadas que profere sem que se lhe altere a expressão do rosto, a mãe tem dificuldade em desviar os olhos
dele.
Quando ele repete as
explicações da italiana, que a mãe entendeu, acrescenta sempre qualquer
pormenor interessante. Quando está perto de mim a explicar, não consigo impedir os cantos da boca de se curvarem num sorriso. Oiço na sua voz que também lhe nasce um
sorriso nos lábios, que é rapidamente controlado.
Quando a mãe chegou,
apresentou-se-lhe como um furacão: chegara há uma hora e já conseguira perder a
mala com o computador, o telemóvel e o BI. Ele fez tudo para os recuperar.
Se isto fosse Portugal, a
mãe diria que poderia ter encontrado o vosso pai. Não é que tenha o coração
completamente desocupado, mas acabou de encontrar lá um espaço. Não foi o
italiano que abriu esse espaço; o espaço estava lá, a mãe não sabia e ele foi
lá meter-se. E isto não importa para coisa alguma, porque daqui a cinco dias,
quando nos separarmos, a mãe sabe que não voltará a dedicar-lhe um pensamento.
Mas é bom saber que não
morri, embora aceder a essas portas me cause uma náusea imediata, um mal-estar semelhante ao que um animal deve sentir quando os grilhões de uma armadilha se lhe espetam na carne. É bom descobrir que, passado o cataclismo, o meu coração começou a regenerar e se eleva, por fim, das cinzas.
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