terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Carta aos meus filhos #25



Cresci com acesso à terra. [Nas férias, ia mesmo para a terra. A terra. Ir para a terra. A terrinha da avó.] Cresci de joelhos na lama, cheguei a tombar sobre roseiras e a emergir dos seus ramos com as pernas crivadas de espinhos. Cresci debruçada sobre formigueiros. Cresci a suster a respiração para segurar urtigas entre o indicador e o polegar. Cresci a colher jarros-de-leite. Cresci a descobrir ninhadas de gatinhos abandonados, que depois acolhia e vingavam ou pereciam. Cresci a pular muros. Cresci a contemplar as rosas brancas bravas. Cresci a regar as couves do canteiro. Cresci a colher folhas de lúcia-lima para o chá da avó. Cresci a misturar detritos de tijolos com água e a chamar-lhes “colorau”. Cresci a acender fogueiras no quintal e a fazer sopa nelas; arruinava os tachos e os ingredientes surripiados da dispensa. Cresci a desarrumar o quintal todo e a fazer casas para as bonecas com as pilhas de cassetes que já ninguém via. Cresci a caminhar pé ante pé sobre os telhados das vizinhas. Cresci a mexer em carochas. Cresci a apanhar joaninhas e a depositá-las no meu vasinho de sardinheiras. Cresci com um cágado, pombos, peixes, coelhos, duas gerações de hamsters, galinhas anãs, uma tartaruga, gatos e, de vez em quando, até alguns cães se hospedavam no nosso quintal durante algum tempo. Cresci a admirar o movimento lânguido dos bichinhos da seda na caixinha dos sapatos. Cresci a jogar ao berlinde com bichinhos de conta. Por causa do Balu do Livro da Selva, cresci a passar a língua em degraus e sei até que as formigas são picantes. Cresci com a avó a seguir-me com a água oxigenada para evitar que voltasse a aleijar-me antes mesmo de cuidar do rasgão que acabava de abrir nos cotovelos. Cresci a marcar o corpo com cicatrizes; cada uma reconta um episódio de audácia mal calculada. Cresci a descer a minha rua de skate e a rasgar as mãos no alcatrão. Cresci a ouvir a expressão “Maria-rapaz” a cada meia hora. Cresci a dividir o escasso espaço da bicicleta com o meu irmão, e a implorar-lhe que não fizesse cavalinhos quando eu tinha o queixo sobre o guiador. Cresci a pendurar-me nos tubos suspensos do telhado de chapa do quintal, qual macaco a balançar num galho, e a ouvir os gritos da avó à distância.  [Na terra da avó corria a Rua Direita, pavimentada a granito, descalça, e poucas sensações se comparam à pedra morna, a meio da tarde, sob a planta do pé. A avó guinchava, da janela lateral da casa, que toda a gente ia pensar que não tínhamos dinheiro para sapatos. Volta aqui Célia, ó Célia estás surda??? Volta aqui! Nunca mais te trago.]. Cresci de pés no chão e quase sem fôlego, num recanto do mundo onde a natureza ainda se imiscuía com facilidade. É tudo o que desejo para vocês.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Carta aos meus filhos #24



Como vou encontrar o caminho de volta a mim mesma? Não sei quando saí, nem há quanto tempo tenho estado fora. Não sei ao certo onde estou nem que estrada me trouxe aqui. Não tenho qualquer ideia do que fazer para recuperar o trilho que tinha, tão firme, sob os meus pés.
Meus queridos, a mãe supõe que seja habitual sentirmo-nos perdidos. Contudo, foram raras as vezes que não soube quem era nem o que estava a fazer. Uma conjugação de factores soprou-me para a berma do carreiro e agora, por entre os musgos e as silvas, sinto que rastejo.
Só sei que sou uma casa vazia, e os pensamentos ecoam nas minhas paredes e reviram-se nos meus tectos. Como um ciclo que me adoça os lábios e me tinge as noites. Por muito vazio que o espaço esteja, há uma espécie de humidade que se prende às paredes; medo. A mãe tem medo. Primeiro tinha medo de perder o elo de fragilidade por quem era responsável. Depois esse pesadelo tornou-se real e o gato desapareceu, levando grande parte do misticismo e do conforto do meu quotidiano. Em seguida tinha medo da distância. E a distância interpôs-se. Quando comecei a viver, a distância duplicou, até atingir a dimensão de oceanos. Duas pessoas como dois lagos de água tépida, de pés no cimo de duas montanhas.
A mãe passa os dias de olhos postos no horizonte. Os mesmos ardem e o futuro não se deixa vislumbrar. A mãe encolhe-se um pouco mais no escuro. Foi desprovida de quase tudo. Tudo aquilo que parece oferenda, milagre, tem para a vida o mero propósito de poder voltar a despojar-me de algo que me aqueça.