Cresci
com acesso à terra. [Nas férias, ia mesmo para a terra. A terra. Ir para a terra. A terrinha da avó.] Cresci de
joelhos na lama, cheguei a tombar sobre roseiras e a emergir dos seus ramos com
as pernas crivadas de espinhos. Cresci debruçada sobre formigueiros. Cresci a
suster a respiração para segurar urtigas entre o indicador e o polegar. Cresci
a colher jarros-de-leite. Cresci a descobrir ninhadas de gatinhos abandonados,
que depois acolhia e vingavam ou pereciam. Cresci a pular muros. Cresci a
contemplar as rosas brancas bravas. Cresci a regar as couves do canteiro.
Cresci a colher folhas de lúcia-lima para o chá da avó. Cresci a misturar
detritos de tijolos com água e a chamar-lhes “colorau”. Cresci a acender
fogueiras no quintal e a fazer sopa nelas; arruinava os tachos e os
ingredientes surripiados da dispensa. Cresci a desarrumar o quintal todo e a
fazer casas para as bonecas com as pilhas de cassetes que já ninguém via.
Cresci a caminhar pé ante pé sobre os telhados das vizinhas. Cresci a mexer em
carochas. Cresci a apanhar joaninhas e a depositá-las no meu vasinho de
sardinheiras. Cresci com um cágado, pombos, peixes, coelhos, duas gerações de hamsters, galinhas anãs, uma
tartaruga, gatos e, de vez em quando, até alguns cães se hospedavam no nosso
quintal durante algum tempo. Cresci a admirar o movimento lânguido dos
bichinhos da seda na caixinha dos sapatos. Cresci a jogar ao berlinde com
bichinhos de conta. Por causa do Balu do Livro da Selva, cresci a passar a
língua em degraus e sei até que as formigas são picantes. Cresci com a avó a
seguir-me com a água oxigenada para evitar que voltasse a aleijar-me antes
mesmo de cuidar do rasgão que acabava de abrir nos cotovelos. Cresci a marcar o corpo com cicatrizes; cada uma reconta um episódio de audácia mal calculada. Cresci a descer a
minha rua de skate e a rasgar as mãos
no alcatrão. Cresci a ouvir a expressão “Maria-rapaz” a cada meia hora. Cresci
a dividir o escasso espaço da bicicleta com o meu irmão, e a implorar-lhe que
não fizesse cavalinhos quando eu tinha o queixo sobre o guiador. Cresci a
pendurar-me nos tubos suspensos do telhado de chapa do quintal, qual macaco a
balançar num galho, e a ouvir os gritos da avó à distância. [Na terra da avó corria a Rua Direita,
pavimentada a granito, descalça, e poucas sensações se comparam à pedra morna,
a meio da tarde, sob a planta do pé. A avó guinchava, da janela lateral da
casa, que toda a gente ia pensar que não tínhamos dinheiro para sapatos. Volta aqui Célia, ó Célia estás surda???
Volta aqui! Nunca mais te trago.]. Cresci de pés no chão e quase sem
fôlego, num recanto do mundo onde a natureza ainda se imiscuía com facilidade.
É tudo o que desejo para vocês.
terça-feira, 28 de janeiro de 2014
sexta-feira, 3 de janeiro de 2014
Carta aos meus filhos #24
Como
vou encontrar o caminho de volta a mim mesma? Não sei quando saí, nem há quanto
tempo tenho estado fora. Não sei ao certo onde estou nem que estrada me trouxe
aqui. Não tenho qualquer ideia do que fazer para recuperar o trilho que tinha,
tão firme, sob os meus pés.
Meus
queridos, a mãe supõe que seja habitual sentirmo-nos perdidos. Contudo, foram
raras as vezes que não soube quem era nem o que estava a fazer. Uma conjugação
de factores soprou-me para a berma do carreiro e agora, por entre os musgos e
as silvas, sinto que rastejo.
Só
sei que sou uma casa vazia, e os pensamentos ecoam nas minhas paredes e
reviram-se nos meus tectos. Como um ciclo que me adoça os lábios e me tinge as
noites. Por muito vazio que o espaço esteja, há uma espécie de humidade que se
prende às paredes; medo. A mãe tem medo. Primeiro tinha medo de perder o elo de
fragilidade por quem era responsável. Depois esse pesadelo tornou-se real e o
gato desapareceu, levando grande parte do misticismo e do conforto do meu
quotidiano. Em seguida tinha medo da distância. E a distância interpôs-se.
Quando comecei a viver, a distância duplicou, até atingir a dimensão de
oceanos. Duas pessoas como dois lagos de água tépida, de pés no cimo de duas
montanhas.
A
mãe passa os dias de olhos postos no horizonte. Os mesmos ardem e o futuro não
se deixa vislumbrar. A mãe encolhe-se um pouco mais no escuro. Foi desprovida
de quase tudo. Tudo aquilo que parece oferenda, milagre, tem para a vida o mero
propósito de poder voltar a despojar-me de algo que me aqueça.
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