sexta-feira, 18 de julho de 2014

Carta aos meus filhos #53

Às vezes, a mãe só quer sumir-se.
Duvida, até, que jamais tenha forças para viver todos os dias, dia a dia, até chegar a vocês.

quinta-feira, 17 de julho de 2014

Carta aos meus filhos #52


Ontem a mãe portou-se muito bem.
Foi ao Hospital dos Capuchos a pé e regressou a pé. Percurso Chiado, Rossio, Restauradores, Avenida da Liberdade por ali acima. Depois Avenida da Liberdade por ali a baixo, Restauradores, Rossio, Baixa, Praça do Comércio, Rua do Arsenal, Cais do Sodré. Pelo caminho admirou as montras, e não só. Sofreu três tentações às quais resistiu heroicamente. 
Primeiro uma montra enorme, ao lado dos CTT dos Restauradores, anunciava livros com 50% de desconto. Entre eles A Queda dos Gigantes, do Ken Follett a quem a mãe se recusa a render-se. O que a tentou mesmo foi “O Inverno do Nosso Descontentamento”, do Steinbeck, a 7€ e pouco. Um clássico a esse valor, as páginas branquinhas e perfumadas a exigir ser lidas... Que força de vontade que é preciso ter para abandonar assim um livrinho indefeso.
Já no caminho para baixo, a Sea Side anunciava descontos mirabolásticos. Na realidade a mãe não entrou na loja para ver sapatos, mas sim porque uma cigana a abalroou com falsificações de óculos Ray Ban. “Olha aqui linda, olha aqui minha linda. Vê só…põe só… não usas óculos, linda? Há uma primeira vez para tudo!” e a mãe deu meia volta nos calcanhares e enfiou-se na Sea Side do Rossio. Lá estavam elas. As sandálias com as quais a mãe andava a sonhar desde que as viras na loja da Sobreda. “Mint”, nº 36. Último par. A um preço equivalente ao PVP habitual de um livro. E a mãe a pensar “tão baratas, e tão bonitas”. Sim, calcei-as e fui ver-me ao espelho. Que saltinho dourado tão perfeito… Passei em revista, mentalmente, a série de vestidos que ficariam a matar com essas sandálias. Pensei nas que tenho e nas que destruí em Fátima graças a um pontapé numa pedra… Sim, Fatinha, é verdade que não acendi as velas que prometi, mas sou boa pessoa e não merecia que me arruinasses as sandálias novas! Depois devolvi-as à caixa e ao seu lugar perto da montra. Respirei fundo e enfrentei uma nova ronda de assédios da cigana.
O objecto que me custou mais foi um vestido cor de café com leite perfeito. Designer brasileiro. A minha loja favorita da Rua Augusta, única, com peças sem igual. Uma golinha de missangas, um tecido leve que ficaria bem na minha pele e melhor ainda com um batom vermelho. É o género de vestido que faz uma mulher como a mãe – estilo chinela, t-shirt e calça de ganga - parecer uma princesa composta. A mãe acariciou-o, tirou-o do cabide. Preço? Uma toalha de rosto. Um par de chinelas. Dois almoços no McDonald’s. E a mãe desistiu dele. Sentiu-se liberta e frustrada ao mesmo tempo.
A mamã desistiu do lindo vestido num primeiro andar, ao cimo de umas escadas sonhadoras de madeira envernizada, e saiu da loja.
Não comprou nada.
As minhas obrigações agora são para com a casa.
São para com o vosso futuro.

terça-feira, 15 de julho de 2014

Carta aos meus filhos #51

Não é que a mãe sinta qualquer tipo de ansiedade. Se for honesta, não é bem isso que sinto. É mais uma inquietação - mínima -, mas um vazio.

As cartas costumam responder, mas para isso é preciso que se queira. O futuro é escrito por nós, pelo bater das nossas asas enquanto borboletas. As asas da mãe pouca poeira levantam. O futuro está estagnado.

As cartas não me respondem.
Elas não sabem para onde vou.
Eu não sei para onde quero ir.

domingo, 13 de julho de 2014

Carta aos meus filhos #50

A mãe acordou às seis da tarde de Sábado, após uma sesta de quatro horas, e foi ver o vosso bisavô. Por esta altura – e para sempre – ele precisa de estar na cama ligado ao oxigénio. Sempre e para sempre. As ninharias de que depende a vida… quase tantas quanto as de que depende a felicidade. O bisavô estava a ver um filme com a família toda ao redor. A avó estendida ao lado, a tia Cláudia enrolada entre ambos, a tia Ana ao fundo da cama. E, no centro, estendidas, a Valentina sob as mãos da Cláudia e a Josefina cá em baixo, que ela não gosta de grandes atenções ao seu redor.
É um bonito quadro de família. Mas a mãe está a perecer. A mãe mudou e ainda não retomou as rédeas da sua vida. Nem as rédeas de si própria, para dizer a verdade. A prometida energia que as tais infusões trariam, mantém-me sonolenta o dia inteiro. A mãe continua sem vontade de fazer nada. Ou melhor, a mãe tem vontade mas é incapaz de se concentrar em algo durante muito tempo. Dá-lhe sono a meio dos filmes, não posso escrever muito de cada vez, nem tão-pouco ler. Não há dia em que não boceje a todas as horas, e é raro chegar a casa do trabalho e não me deitar a dormir.
Quanto ao trabalho é outra história… A mãe sente-se puxada para ele de tal maneira que até lhe custa passar os fins-de-semana sem ir adiantar coisas. Por gosto, porque são tarefas que começo e acabo e que termino. Ao contrário de todo o resto, onde me falta motivação.
A mãe sente falta do vosso pai. Dormi pela primeira vez na minha cama sueca 200 x 140. Parece uma nave espacial. Cabiam quatro pessoas com a estrutura da mãe ou três de estrutura comum. O vosso pai poderia dormir à vontade no cantinho dele, partilhar comigo essa viagem nocturna na nave espacial.
Quero que saibam que nem tudo são rosas. Para a mãe, ter uma casa e uma dívida de tantas décadas ao banco é um bocadinho sufocante. Por vezes é até assustador. E a mãe sabe que a casa estará sempre paga, mas o resto assusta-a. As contas empilham-se. Temos que ser os grão-mestres da gestão para que tudo funcione sem sobressaltos. E os sobressaltos sucedem-se… A mãe não tem muito dinheiro mas também não está desgraçada financeiramente. Contudo as preocupações acumulam-se e a mãe tenta estar presente em todas as frentes. Para o mês que vem tem de esterilizar a sua gatinha. Tem de ser… o custo é o equivalente a metade do sofá, 1/3 do esquentador ou três cadeiras para a mesa da sala. Mas o amor é assim. E a mãe ama-as.
Já está na hora de o vosso pai aparecer. Era bom que me mantivesse acordada o dia inteiro, que eu quisesse viver por ele também e me recusasse a cair na inanimação. Escolhi as cores das paredes a pensar nele. Já está na hora de ele vir para nos sentarmos um bocadinho no sofá à noite. A mãe precisa de pousar a cabeça no ombro dele. Precisa de cheirá-lo, de sentir-se amparada. Já está na hora de irmos jantar fora, descobrir restaurantes juntos – a mãe gosta tanto de comer! – e de tirar fins-de-semana algures. Já está na hora de explorarmos o mundo juntos, de nos irmos conhecendo, adaptando, sintonizando. Por enquanto eu ainda tenho avós para lhe apresentar, e sei que o bisavô choraria se eu alguma vez me casasse. E que seria louco de paixão pelos meus filhos. Talvez esteja a ser demasiado ambiciosa… não chegarei a isso. A vida é cruel, ingrata e irónica.
Anda para casa, amor. Está na hora de eu aprender a cozinhar os teus pratos preferidos.

segunda-feira, 7 de julho de 2014

Carta aos meus filhos #49



Meus queridos,

A vida está terrivelmente complicada, ultimamente. A mãe sabe que usou dois advérbios de modo seguidos, mas tem sido assim. Erros conscientes atrás de erros não tão conscientes. Mas a mãe está consciente; isto porque toma umas infusões de racionalismo. Umas coisas que secam lágrimas e anestesiam corações. Se o vosso pai estivesse ao meu lado agora, duvido que pudesse vê-lo. Teria, quem sabe, uma leve agitação na boca do estômago, o instinto a contorcer-se e a implorar-me que me levante do torpor e olhe. E que, olhando, veja. Mas a mãe pouco ou nada vê. Pouco ou nada sente, além do que é básico a todos os humanos.
A mãe sofre de insatisfação – e outras coisas – crónica (s). Também tem uma inclinação auto destrutiva que não passa por cigarros nem droga; é algo mais a fundo, mais íntimo. Ainda que o corpo sobreviva, a alma perece. Os tecidos, por dentro, rasgam, engelham, esfarripam-se. A mãe tem as fibras enrodilhadas nos dedos das mãos. A cada vez que procura o peito, que tacteia em busca de coração, retira a mão com mais farripas. Agulhas, no lugar do peito. A lembrança recente de que me doía a vida – onde a vida latejava em mim, doía. E, sendo tão jovem, doía tanto… Mas antes um peito de pano retalhado do que um peito descarnado.
Sem essas infusões a mãe estaria acabada. A mãe sente que está ligada a máquinas. Life support, apoio à vida, algo que sustém a vida. Se desligar a máquina, a mãe tomba da flutuação para uma fogueira de consumação.
Estar-se consumido; preocupado, inquietado, angustiado. Ser-se consumido; ser-se engolido, ingerido, aniquilado, gasto até à extinção.
A mãe deveria estar a gozar um estado de graça na sua existência. Tem um lar para montar, uma amiga que está na mesma situação. Combinamos idas à Feira da Ladra e trocamos conselhos sobre recheio do lar. A casa dela está um mimo de criatividade e imaginação. E a da mãe já vinha formatada, e a mãe queria tudo ao seu gosto, mas não vai dar. A mãe não sabe fazer-se feliz.
Perante um homem quebrado, como a mãe é uma mulher quebrada, só pode haver infelicidade. Se o homem for obscuro, marcado, amargo, frio, se tiver cicatrizes… poderia ele curar-me e eu curá-lo? A mãe costumava achar que sim. Que era um bálsamo para as feridas dele, e ele para as minhas. Mas não; somos álcool, petróleo, benzina, qualquer coisa inflamável que deita fogo ao outro. Magoamo-nos. E ainda assim, bem no fundo, a acenar, o afecto está lá. Mas a mãe não o sente; vê-o, mas não o sente. Pode ver-se um sentimento e não o sentir?
A mãe magoa todos e todos me magoam com facilidade. A mãe não sabe o que se passa consigo. Há quase um ano que não se reconhece. A vida complica a cada esquina, e a cabeça da mãe está cada vez mais incapaz de resolver puzzles.
As pessoas não valem nada. As pessoas valem tudo. Distingui-las é o problema. As que não valem nada amam-nos. As que valem tudo desprezam-nos. A distância é melhor. Jogar pelo seguro é melhor. Silenciar amores e ódios é melhor. A inconstância é melhor. Voltar atrás; arrependermo-nos, envergonharmo-nos é melhor. A mãe está a viver sem moral. Há um conflito aberto entre quem sou e quem quero ser.
Não amar é melhor.
A mãe sente que está a ser sugada para um grande ralo. A mãe é cada vez mais pequena e o ralo é cada vez maior. Só espero que, do muito de mim que está a desaparecer, não desapareça a escrita. Sem isso a mãe é uma mera carcaça.
Em “Uma Mulher Responsável”, a Leonor Sanches escreveu uma carta de alto teor erótico ao objecto dos seus desalentos. O Victor há-de chamá-la ordinária e desavergonhada. Talvez seja isso que ela é.  

domingo, 6 de julho de 2014

Carta aos meus filhos #48

A mãe tentou ter uma fase de escritora perturbada.
Não funcionou.
Mas a perturbação ficou.