segunda-feira, 30 de junho de 2014

Carta aos meus filhos #47

Meus queridos,

A mãe demorou demasiado tempo a aprender a gostar de si. Nomeadamente, da cor do seu cabelo. Quando comecei a gostar de ser magra, depois de tanto ter querido engordar, engordei. Agora não sei como perder o peso. Para dizer a verdade, nem quero dar-me ao trabalho. Quando finalmente decidi deixar de pintar o cabelo de ruivos-desgostos-amorosos e pretos-vou-pôr-me-de-pé-e-não-preciso-dele-para-nada, surgem-me os cabelos brancos. Já são quatro ou cinco, e surgiram todos no último ano. Não vou disfarça-los, para já. Mas gostava de ter tido mais tempo para gozar a glória de um tom de cabelo natural.
Estou feliz porque estou a conseguir escrever um novo livro a todo o gás. Chama-se “Uma Mulher Respeitável”. Está a sair com um carácter mais racional do que emocional, mas talvez seja por isso que é o momento certo para escrevê-lo. Preciso de calculismo e de racionalidade. Nervos à flor da pele não combinam com esta personagem.
De resto, a mamã está vazia.
Uma folha ao vento, sem sequer exibir as impressões digitais das folhas.
A mãe é uma folha de um desenho de criança - não o suporte, mas o objecto da ilustração. Só forma e verde.
Não faz sentido.
Não sabe que é uma folha.
É só um borrão numa folha branca, outrora parte de algo maior.
Outrora árvore.
Agora uma sombra; um desenho.

Neste momento, a melhor forma de descrever o que se passa na cabeça da mãe, no background da cabeça da mãe, é isto:


zzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz

sábado, 28 de junho de 2014

#Carta aos meus filhos 46

A mãe nem chega a estar confusa. Não sabe sequer o que deveria saber. Acha-se apenas mais ignorante do que nunca acerca de si própria.

Agarra-se a uma ténue esperança de um vinho e um sorriso. Daqui a muitos meses, quem sabe, um novo abraço.

domingo, 22 de junho de 2014

#Carta aos meus filhos #45

Três Histórias de Amor, Parte II

Uma delas acabou, ponto final. O respeito não é algo que se recupere após um enxovalhamento público.
A outra acaba de sofrer a imposição da distância. Os dois apaixonados reúnem a tecnologia, o plafond dos cartões de crédito e a vontade de se reencontrarem para prometer que se voltarão a ver. Que, num mundo tão vasto, os seus rostos voltarão a estar frente a frente.

 E a mãe? Sim, a terceira história de amor é a da mãe.

Se calhar fui injusta. De falta de tempo todos os homens parecem sofrer ultimamente. O que importa é quando ele estava comigo por inteiro. E é disso que a mamã sente falta, hoje. De uma pessoa que queira estar comigo tão insanamente que, quando nos virmos, não tenhamos bem a certeza de quem foi ao encontro do outro e de quem o abraçou primeiro. Era assim comigo e com ele. Ele via-me, ao longe, sorria-me. Depois abria-me os braços e segurava-me contra o peito durante tanto tempo que eu julgava que acabaria por sufocar. Quando me afastava, estava a sorrir. Caminhávamos lado a lado, com ele a abrir-me o caminho, a esticar-me a mão quando eu ficava muito para trás. Aquelas mãos perfeitas cujos gestos aprendi a conhecer.
E os olhos? Não há palavas para descrever a doçura nos olhos dele quando me via. Ou a forma como me provocava para descobrir se o meu mundo fora igualmente arrancado dos eixos e se eu estava estúpida de felicidade por o ver. Por estar ali com ele; ali, num sítio qualquer, mas com ele. A dançar, com ele. A caminhar na rua, com ele. A entrar em dez lojas de sapatos, está bem, odeio, mas com ele. A apanhar um comboio com ele, a adormecermos de mãos dadas e cabeças apoiadas um no outro. A dividir uma cookie com ele e a fingir que não quero mais para vê-lo deleitar-se ao comer. A dividir tudo, na realidade. A acordarmos lado a lado, em simultâneo, e a sorrirmos com cara de zombies um ao outro. É uma pessoa tão completa, meus queridos. Tem um coração tão grande, tão mole, por vezes… As horas que esse homem perdeu a secar-me as lágrimas, e nunca o afugentei, nunca se enojou, nunca me negou uma palavra de carinho e compreensão nem se deixou intimidar pela imensidão do meu desespero.
A mãe sonhou com ele esta noite. Sonhou que estava longe, em trabalho, como está, mas que, em pequenos sinais – uma fotografia aqui, uma citação ali – me dava a entender que pensa em mim e que ainda se preocupa comigo. Sonhei que ele me havia pintado a sala e que eu era uma mal agradecida. Tudo se resume a isso, ele não me pintou a sala, nunca chegou a conhecer-me a sala. Porquê? Porque a mãe é uma besta e o expulsou da sua vida antes que ele pudesse vir e dar-me palpites acerca de tudo. Porque ele se interessava por tudo o que tivesse a ver com a mamã. Iria perscrutar as pilhas dos meus livros e entender quantos deles já lera. Iria dar conselhos sobre a cor das paredes e a incidência do sol nos cómodos. Iria dizer-me onde encomendar lâmpadas LED. Iria dizer, com toda a naturalidade, “quando eu for aí levo-te x”. Porque ele queria vir. Ele queria tanto vir…
O coração da mamã apertou-se. Saiu-me a lotaria e eu deitei fora o bilhete. É o que sinto.
Porque é que dói tanto? Pergunta a segunda voz.
Porque, num mundo de pessoas desencontradas em que nem sempre (os amigos, a família, os amores) nos querem tanto quanto os queremos a eles, é um milagre encontrar uma pessoa cujos braços se abrem assim para nós. E dói libertarmo-nos desses braços, privarmo-nos deles. Principalmente porque sabemos que a outra pessoa também sofre por não nos ter lá.
Mas a mamã, é uma promessa que se faz, não voltará jamais a sofrer por alguém que não abra os braços quando a vê.


Across my heart, and hope to die.

Carta aos meus filhos #44

A mãe hoje está acabada de saudades e de arrependimento.

Fiz as escolhas erradas.

Não nos víamos há três meses. Desci a rampa das chegadas com a mala e o coração na boca. Bum, bum, bum.
E sei que o coração dele estava igual. Sorriu-me e, só esse sorriso, sabia a "bem-vinda a casa, Célia". Abraçava-me durante tanto tempo que eu sufocava, e só quando nos separávamos é que me dava, finalmente, o beijo pelo qual eu tinha esperado tantos meses.

Onde quer que ele estivesse, sabia a casa. A mãe foi burra por não ter entendido isso antes.
Deveria ter entendido que, a cada vez que ele me recebia de braços abertos, eu estava a chegar a casa e à única pessoa que faria tudo para nunca me ver magoada e para nunca sair do meu lado, durante os cinco minutos de que dispunhamos.

A mãe tem um dedo podre para tomar decisões.

I miss you like hell, D.
Come back, come back to me.

terça-feira, 17 de junho de 2014

Carta aos meus filhos #43


No verão de 2014 a mamã falhou a Feira do Livro. Nem foi nem comprou nenhum livro.
Hoje a mamã está morta por umas migas com entrecosto, um polvo à lagareiro, uma posta bem grande de bacalhau, bem grossa e bem temperada de sal com batatinhas cozidas. Ai, a mamã matava por um arroz de pato bem feito.

Mas não pode.

No centro da parede da minha cozinha, faltam três azulejos.
O cano foi furado, como vos disse.

Valores mais altos se alevantam.

domingo, 15 de junho de 2014

Carta aos meus filhos #42

O dia hoje foi longo. Começou com a mãe a despertar pela primeira vez na sua casa. Esteve muito calor, tanto que a mamã se refugiou na casa nova o dia inteiro. Antes entre a frescura dessas paredes, a trabalhar, do que estendida e a amolecer, como se derretesse em banho-maria, na casa da bisavó.
Foi um dia sem fim, em que dei por mim a esfregar chãos, pintar janelas, tectos, a dispensa. Sentada no último degrau do escadote, com uma lata de tinta no colo, a mãe sentia os salpicos da tinta branca caírem-lhe nas mãos, nos braços, na cara, no cabelo. O meu rabo-de-cavalo ficou cheio de pintas brancas, que espero que saiam com facilidade. Enquanto pintava o tecto a ouvir as músicas da Smooth Fm I’ve got you, under my skin, e etc., a mãe sentiu-se muito capaz. Já no topo do escadote percebo que não tenho medo de alturas. Não tenho medo de me sujar. Não tenho medo de estragar as unhas. Lido bem com esquemas de tentativa e erro, e apesar do investimento na tinta, a mãe gosta de ir cuidando das coisas por si mesma.
Convenço o avô a furar a parede da cozinha para pendurar uma calha que servirá para os escorredores de loiça. Qual a minha surpresa quando, pouco depois de ouvir a broca a funcionar, oiço o equivalente a um repuxo na minha cozinha. O jacto de água ia de uma ponta à outra da cozinha, atravessando-a em largura. Muito bem, muito bem. Muito bem, furámos um cano. Acontece a todos, certo? O avô ficou chateado. Diz que o cano é de plástico, dos modernos, porque se fosse de ferro, sendo a broca para pedra, teria era queimado a ferramenta. Temos que tirar azulejos - haverão iguais? E temos de reparar o cano. Ele baixou a cabeça e queixou-se do azar que tem. A mãe ouviu os risinhos das tias Ana e Cláudia, para quem tudo tem solução fácil, porque são meras espectadoras e não intervenientes. A mãe sentou-se nos ladrilhos da cozinha a fazer cálculos mentais. É capaz de ter enterrado a cabeça nas mãos por um bocado. O avô pergunta porque estamos para ali prostradas, umas a rir e outras sem reacção, porque não vamos buscar a esfregona e damos conta do problema imediato, que é o chão encharcado?
A mãe não pode permitir que isso a deite abaixo. Pôs-se de pé e foi acabar de pintar a despensa. Não pode permitir que isso a deixe em baixo. Mas preciso que saibam que foi difícil. É difícil ter meia dúzia de tostões na conta a meio do mês quando trabalhamos tanto e nos parece que trabalhamos desde sempre. É difícil precisar de ir ao médico mas pôr a casa à frente. Daqui por diante será assim. 
Quando fechei a porta de casa e vim embora para o forno que é o primeiro andar da bisavó, observei o chão riscado da sala, os pedaços de cimento e areia que arranquei com a espátula ao tecto da marquise, os ladrilhos pintalgados de tinta branca no corredor, o furo de onde jorra água (caso a mesma não tivesse sido fechada), a cozinha prenhe de chaves philips e chaves de fendas, espátulas, latas de tinta, lixas, buchas, parafusos e pregos, lençóis de plástico pintalgados de tinta. Parece tudo mais caótico do que nunca e a mãe prestes a começar uma nova semana, isto é; sem tempo de endireitar as coisas.
Tudo isto são degraus. Cada problema a seu tempo. A mãe resolve – sobe – um a um. Até chegar a vocês.

sexta-feira, 13 de junho de 2014

Carta aos meus filhos #41

A mãe está a dar por ela maluca por uma semana de férias com sol, sombra, um livro, campo e uma piscina bem grande.

Deve estar a envelhecer.

quarta-feira, 11 de junho de 2014

Carta aos meus filhos #40

Pequenos,

Dei por mim a entender o significado de ter-se fé. Ter fé; acreditar em algo que não se vê, do qual não se tem certezas, sobre o qual não há explicações, mas que nos é vital. Ter fé é ser-nos vital acreditar em água. A fé sustém-nos, mantém-nos suspensos no ar. É o milagre de que os pés nos permitam andar. É o milagre do equilíbrio e das proporções, a fé.
Hoje fez-se luz na minha casa. Não sei se virão a conhecê-la, mas a 11 de Junho de 2014, a mãe escreveu uma sms onde dizia “na minha casa”. E o electricista iluminou-me os cómodos. À noite, a mãe tinha planeado levar o portátil para a nova secretária e escrever alguns capítulos do novo romance, que não desenvolve. Contudo, a tia Cláudia e a tia Ana quiseram estrear a electricidade com um filme. Pensámos muito bem no filme a ver, o momento era solene. Então optámos pela primeira longa-metragem animada da história do cinema; A Branca de Neve e os Sete Anões. Rimos todas e arrepiámos-nos com a malvadez daquela bruxa. Poucas coisas na vida são assim. Poucas nos penetram na alma, poucas não descolam. Como um filme que, mesmo conhecido de trás para a frente, ainda gera emoções. Ainda irrita, ainda encanta, ainda indigna, ainda causa medo.
A Josefina está ao meu lado, sentada na minha cama a observar a rapidez dos meus dedos a escrever estas palavras. A mãe não vos sabe explicar amor. Acha que é uma questão de fé. Olho-a e não vejo apenas uma gatinha com casca de tartaruga. Imagino-lhe os pensamentos e as opiniões. É como se o meu espírito crítico, assustadiço e curioso, vivesse fora de mim e ocasionalmente recuasse as orelhas e semicerrasse os olhos quando confrontado com a bazófia humana. A mãe não se sente sozinha quando elas estão comigo, e é-me essencial ter fé de que são mais do que carne e necessidades. Elas também vos ficarão para a posterioridade. Um dia a mãe estará a debater-se sobre o final a dar a estes animais. Desaparecerão? Ficarão doentes? Terão uma daquelas doenças dos humanos? Um cancro? Uma insuficiência renal? E a mãe terá de decidir se deve abatê-los ou não. E vocês verão as carcaças velhas de algo que significa muito mais do que um corpo frágil daqui a dez ou quinze anos. Estes dois animais levantaram-me do buraco. Permitem-me amar. Amar é um entregar de armas, e os animais não as usam de volta contra nós.
Pensam que amar é algo livre de opressões? É algo bafejado de suprema liberdade? Estão enganados, meus queridos. As dores da vida obrigam-vos a cerrar o peito. A conter o dique. A amar para dentro; ou seja, a amar não amando. Não demonstrando. Não saboreando o bom do amar. O bom do querer, o bom do alívio que é o ser-se amado de volta. A mãe não pode abrir o peito para ninguém – nem para ela mesma. Isto faz algum sentido? Mas a mãe não pode. Não se deixa. A decisão é já da hierarquia superior, dificilmente tenho acesso a essa chave. Está fora do alcance do meu consciente. A mãe não pode amar [se não às gatas]. Não pode chorar se não as gatas; que ficam doentes sem que a culpa lhes diga respeito, que se perdem porque deixei a janela aberta, que por vezes me concedem a honra de virem sentar-se no meu colo. Não posso chorar se não a estes seres a quem devo protecção, mesmo que não me dêem nada. Porque não posso permitir-me, jamais, voltar a amar e a esperar amor de retorno. Não posso eleger um poço como o único que pode fornecer-me água.
Ia morrendo de tanto ingerir petróleo no passado, numa tentativa patética de matar a sede.
Hoje a mãe esteve sentada com as tias a comer pistachos, a comer nachos e a ver a Branca de Neve e os Sete Anões.
A mãe queria saber a opinião do vosso pai. Queria saber se ele se sentaria no chão comigo, de costas numa almofada por estrear, e se me deixaria pousar a cabeça no seu ombro. Depois no colo. Gostaria de saber se ele aceitaria passar uma noite comigo num chão de uma casa vazia, que cheira a verniz e a tinta por secar e a amoníaco e a benzina. Gostaria de saber se ele consideraria esse recanto de chão o nosso palácio. A mãe vive de fé. Da fé de que um dia vai poder acordar ao lado dele, com todos os meus defeitos e os dele. E que esses defeitos sejam o porquê de nos amarmos. Tenho uma sala vazia e um gira-discos. O vosso pai dançaria comigo no eco dessas paredes ao cair da noite? Dançaria comigo a By Your Side? Seria eu capaz de prometer que nunca o deixaria, quando dei por mim a quebrar recentemente essa promessa que fiz a alguém? Seria eu capaz de acreditar, de olhos fechados, que ele estaria lá sempre para mim? A mãe não tem resposta para estas perguntas. É uma pessoa quebrada, em construção.
A mãe sente-se diferente. Ultimamente perdeu controlo da sua mente e do seu corpo. Uma coisa ligada à outra, mal me reconheço. A mãe parece estar a deformar-se a um ritmo demasiado rápido para assimilar. Mas tenho fé – ou cairia – de que voltarei a ter mão em mim. De que voltarei a amar-me e a ter orgulho em mim. De que voltarei a poder valer a alguém, como valho à Josie e à Valentina.
A mãe tem medo de querer muito. O confortável é menos letal.

segunda-feira, 9 de junho de 2014

Carta aos meus filhos #39



A mãe hoje está triste.
As pessoas entram e saem das vidas umas das outras.
Quando as esquecemos, é triste. Quando nunca seremos capazes de as esquecer, ainda pior. A mãe está triste porque ainda viveu pouco, não sabe se, quando se deseja uma pessoa um dia, a desejamos para sempre ou se, numa manhã, a pessoa deixa de ser objecto de desejo. O desejo, (mesmo o amor), por vezes adormece em nós. A mãe ainda não sabe se um dia acordará de novo.
Por isso, quando alguém que foi importante na nossa vida deixa de o ser e passamos pela pessoa como se fosse um vizinho a quem apenas dirigimos “bons dias” e “boas tardes”, é triste. Mas quando passamos pela pessoa e o nosso estômago se embrulha, e o nosso coração acelera, e a nossa boca seca, é ainda mais triste. É triste esquecer e é triste não esquecer. É triste lembrar das promessas sussurradas a meio da noite, quando tudo é mais sincero e mais cru. Mas é ainda mais triste tê-las soterrado em nós e passarmos-lhes ao largo.
A mãe viveu pouco.
Precisa de aprender.

terça-feira, 3 de junho de 2014

Carta aos meus filhos #38

A mãe sente falta do vosso pai. Não sabe onde ele está, com quem possa estar, que lingua fala nem se gosta de animais. Não sei se sabe cozinhar e se rasgou os joelhos a jogar à bola quando era pequeno. Espero que não fume. Espero que aceite as minhas gatinhas.
Espero que me veja como uma parceira, ombro a ombro, e que não assuma que devo lavar-lhe as meias (embora eu possa lavar-lhas). Não sei se nos conhecemos já, se nos temos valido. Quem sabe nos tenhamos beijado já. Quem sabe ele entre pela minha vida no momento em que eu menos o espere. Sei que é bom, que tem um grande coração, e que vos traz às cavalitas. Todo o resto é uma incógnita. Mas a mãe hoje vai sentada no táxi com o cão preto, e precisava mesmo, mesmo dele.

segunda-feira, 2 de junho de 2014

Carta aos meus filhos #37



Filhos,

Talvez a mesa de centro de madeira virgem, rendilhada, se encontre ainda lá por casa. Talvez a primeira cama de ferro que a mãe comprou, aquela de cabeceira branca, tenha sido entretanto herdada por um de vós. Talvez a mãe tenha escrito dois bestsellers (ou dois fracassos) na secretária que ontem arrastou para o quartinho de trás. Talvez a casa já nem seja a mesma, quando vocês chegarem, mas talvez ainda tomem os cereais nas tigelas cor de beringela que a mãe distribuiu pelos armários da cozinha.
A mãe está a construir um lar, uma casa onde vai aprender a valer-se e a valer aos outros domesticamente. A mãe vai pôr uma televisão na cozinha, porque tem dificuldade em fazer apenas uma coisa de cada vez. Picar cebola a fitar os azulejos soa a tortura para a mãe. Por isso vou ligar a televisão, abrir os livros de receitas e aprender todas aquelas receitas que um dia vos farão felizes.  Já tenho jarros, vazinhos e flores frescas.
Escolhi cores de parede, interruptores e tomadas eléctricas, candeeiros e móveis de casa de banho, um faqueiro. Lavei chãos, janelas, paredes. Levantei pesos que me achava incapaz de conseguir mover, e tenho sido um gigante na construção da primeira coisa na vida que sinto de minha. Escolhi detergentes e toda a casa cheira a lavanda e a amoníaco.
É um projecto tão grande que de vez em quando tenho de suspirar e absorver melhor o ar para me mentalizar de que é real. A mãe, finalmente, tem paredes e tectos seus. E tem vinte e quatro anos. E tem duas lindas gatinhas que nunca vão deixar que me sinta sozinha.
Em todos os outros campos afectivos, a mãe sente-se estranhamente vazia. Costumava sentir-se uma donzela à espera de resgate. Agora tenho unhas e, quando o príncipe chegar à torre, eu já terei derrotado o dragão e partido há muito.
Cá vos espero. 
Cada vez mais perto :)