Filhos,
Talvez a mesa de centro de madeira
virgem, rendilhada, se encontre ainda lá por casa. Talvez a primeira cama de
ferro que a mãe comprou, aquela de cabeceira branca, tenha sido entretanto
herdada por um de vós. Talvez a mãe tenha escrito dois bestsellers (ou dois fracassos) na secretária que ontem arrastou
para o quartinho de trás. Talvez a casa já nem seja a mesma, quando vocês
chegarem, mas talvez ainda tomem os cereais nas tigelas cor de beringela que a
mãe distribuiu pelos armários da cozinha.
A mãe está a construir um lar, uma casa
onde vai aprender a valer-se e a valer aos outros domesticamente. A mãe vai pôr
uma televisão na cozinha, porque tem dificuldade em fazer apenas uma coisa de
cada vez. Picar cebola a fitar os azulejos soa a tortura para a mãe. Por isso
vou ligar a televisão, abrir os livros de receitas e aprender todas aquelas
receitas que um dia vos farão felizes. Já tenho jarros, vazinhos e flores frescas.
Escolhi cores de parede, interruptores e
tomadas eléctricas, candeeiros e móveis de casa de banho, um faqueiro. Lavei
chãos, janelas, paredes. Levantei pesos que me achava incapaz de conseguir
mover, e tenho sido um gigante na construção da primeira coisa na vida que
sinto de minha. Escolhi detergentes e toda a casa cheira a lavanda e a amoníaco.
É um projecto tão grande que de vez em quando tenho de suspirar
e absorver melhor o ar para me mentalizar de que é real. A mãe, finalmente, tem
paredes e tectos seus. E tem vinte e quatro anos. E tem duas lindas
gatinhas que nunca vão deixar que me sinta sozinha.
Em todos os outros campos afectivos, a
mãe sente-se estranhamente vazia. Costumava sentir-se uma donzela à espera de
resgate. Agora tenho unhas e, quando o príncipe chegar à torre, eu já terei
derrotado o dragão e partido há muito.
Cá vos espero.
Cada vez mais perto :)
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