segunda-feira, 2 de junho de 2014

Carta aos meus filhos #37



Filhos,

Talvez a mesa de centro de madeira virgem, rendilhada, se encontre ainda lá por casa. Talvez a primeira cama de ferro que a mãe comprou, aquela de cabeceira branca, tenha sido entretanto herdada por um de vós. Talvez a mãe tenha escrito dois bestsellers (ou dois fracassos) na secretária que ontem arrastou para o quartinho de trás. Talvez a casa já nem seja a mesma, quando vocês chegarem, mas talvez ainda tomem os cereais nas tigelas cor de beringela que a mãe distribuiu pelos armários da cozinha.
A mãe está a construir um lar, uma casa onde vai aprender a valer-se e a valer aos outros domesticamente. A mãe vai pôr uma televisão na cozinha, porque tem dificuldade em fazer apenas uma coisa de cada vez. Picar cebola a fitar os azulejos soa a tortura para a mãe. Por isso vou ligar a televisão, abrir os livros de receitas e aprender todas aquelas receitas que um dia vos farão felizes.  Já tenho jarros, vazinhos e flores frescas.
Escolhi cores de parede, interruptores e tomadas eléctricas, candeeiros e móveis de casa de banho, um faqueiro. Lavei chãos, janelas, paredes. Levantei pesos que me achava incapaz de conseguir mover, e tenho sido um gigante na construção da primeira coisa na vida que sinto de minha. Escolhi detergentes e toda a casa cheira a lavanda e a amoníaco.
É um projecto tão grande que de vez em quando tenho de suspirar e absorver melhor o ar para me mentalizar de que é real. A mãe, finalmente, tem paredes e tectos seus. E tem vinte e quatro anos. E tem duas lindas gatinhas que nunca vão deixar que me sinta sozinha.
Em todos os outros campos afectivos, a mãe sente-se estranhamente vazia. Costumava sentir-se uma donzela à espera de resgate. Agora tenho unhas e, quando o príncipe chegar à torre, eu já terei derrotado o dragão e partido há muito.
Cá vos espero. 
Cada vez mais perto :)

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