quinta-feira, 17 de julho de 2014

Carta aos meus filhos #52


Ontem a mãe portou-se muito bem.
Foi ao Hospital dos Capuchos a pé e regressou a pé. Percurso Chiado, Rossio, Restauradores, Avenida da Liberdade por ali acima. Depois Avenida da Liberdade por ali a baixo, Restauradores, Rossio, Baixa, Praça do Comércio, Rua do Arsenal, Cais do Sodré. Pelo caminho admirou as montras, e não só. Sofreu três tentações às quais resistiu heroicamente. 
Primeiro uma montra enorme, ao lado dos CTT dos Restauradores, anunciava livros com 50% de desconto. Entre eles A Queda dos Gigantes, do Ken Follett a quem a mãe se recusa a render-se. O que a tentou mesmo foi “O Inverno do Nosso Descontentamento”, do Steinbeck, a 7€ e pouco. Um clássico a esse valor, as páginas branquinhas e perfumadas a exigir ser lidas... Que força de vontade que é preciso ter para abandonar assim um livrinho indefeso.
Já no caminho para baixo, a Sea Side anunciava descontos mirabolásticos. Na realidade a mãe não entrou na loja para ver sapatos, mas sim porque uma cigana a abalroou com falsificações de óculos Ray Ban. “Olha aqui linda, olha aqui minha linda. Vê só…põe só… não usas óculos, linda? Há uma primeira vez para tudo!” e a mãe deu meia volta nos calcanhares e enfiou-se na Sea Side do Rossio. Lá estavam elas. As sandálias com as quais a mãe andava a sonhar desde que as viras na loja da Sobreda. “Mint”, nº 36. Último par. A um preço equivalente ao PVP habitual de um livro. E a mãe a pensar “tão baratas, e tão bonitas”. Sim, calcei-as e fui ver-me ao espelho. Que saltinho dourado tão perfeito… Passei em revista, mentalmente, a série de vestidos que ficariam a matar com essas sandálias. Pensei nas que tenho e nas que destruí em Fátima graças a um pontapé numa pedra… Sim, Fatinha, é verdade que não acendi as velas que prometi, mas sou boa pessoa e não merecia que me arruinasses as sandálias novas! Depois devolvi-as à caixa e ao seu lugar perto da montra. Respirei fundo e enfrentei uma nova ronda de assédios da cigana.
O objecto que me custou mais foi um vestido cor de café com leite perfeito. Designer brasileiro. A minha loja favorita da Rua Augusta, única, com peças sem igual. Uma golinha de missangas, um tecido leve que ficaria bem na minha pele e melhor ainda com um batom vermelho. É o género de vestido que faz uma mulher como a mãe – estilo chinela, t-shirt e calça de ganga - parecer uma princesa composta. A mãe acariciou-o, tirou-o do cabide. Preço? Uma toalha de rosto. Um par de chinelas. Dois almoços no McDonald’s. E a mãe desistiu dele. Sentiu-se liberta e frustrada ao mesmo tempo.
A mamã desistiu do lindo vestido num primeiro andar, ao cimo de umas escadas sonhadoras de madeira envernizada, e saiu da loja.
Não comprou nada.
As minhas obrigações agora são para com a casa.
São para com o vosso futuro.

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