domingo, 16 de novembro de 2014

Carta aos meus filhos #65

A mamã está a aprender a viver um dia de cada vez, com toda a carga boa e má que isso implica. Na sexta-feira acordei às sete, comecei a trabalhar às oito. Às cinco saí para comprar um roupeiro velhíssimo, que cheirava a casa de velhota com dez gatos mijões. Combinei a entrega e fui dar aulas. A minha sala de aulas está a rebentar pelas costuras. A mamã está a adorar os jogos que jogamos. Chamam-me professorinha e trouxeram-me dois marcadores. Uma vez em casa, às sete e meia, peguei na lixa, na chave de fendas e na lata de tinta e deitei mãos à obra. Lixei o guarda-fato todo e dei-lhe uma camada de tinta por dentro e por fora. A bisavó Norvinda ajudou. Ajuda sempre mais do que lhe peço, tenho de insistir para que se sente e beba um chá, veja um pouco de tv, mas ela vive de ajudar os outros, por isso molha uma vez mais o pincel na tinta e continua a arrepiar caminho nas pinturas. Um dia pode ser que vocês herdem este guarda-fato. Vão achá-lo feio e demodé, mas foi pintado a quatro mãos. No final, até a Ana Filipa puxou lustro aos cantos para salientar o verde. É por isto que a mamá será sempre apegada a ele.
A mãe foi para a cama às tantas tanto na sexta quanto no sábado. Sem falar que, nesta semana, recebi dois alemães lá em casa e fiquei a lavar loiça até às duas da manhã. São coisas que a vida põe no nosso caminho. Os alemães no metro, perdidos, e a mamã a julgar que eram jovens de 20 anos numa espécie de interrail, e a explicar-lhes o que poderiam ver em Almada, e a deliciar-se com as exclamações deles perante as vistas de Lisboa. A mamã deve algo à Alemanha, sabe disso. Por isso convidei-os para jantar. Chamei as amigas e recebi-os. Dei-lhes toalhas e um secador para secarem os pés. Pareciam estupefactos, diziam que era algo impensável na Alemanha, jamais aconteceria. E a mãe gostava de ser daquelas pessoas que marcam pontos de viragem na vida dos outros; de agora em diante, talvez as pessoas confiem mais. Talvez os alemães se dêem mais. Não sei, são pequenas esperanças que me fazem feliz. Ofereceram-me bombons Merci, um anjinho a dizer que sou eu a iluminar-lhes o caminho e rimos muito. Fizémos-lhes bacalhau com natas, pusémos pimba português e descobrimos uma nova faceta dos alemães ao conhecermos o pimba deles também.
Exausta, não pude limpar a casa no sábado, que é o ritual habitual.
Continuei nas pinturas do roupeiro, com ajuda de um par de mãos extra. Limpei a casa toda no domingo, depois de acabar as pinturas do roupeiro. Pu-lo no sítio e fiquei maravilhada com o resultado. Depois foi arrumar a roupa. Tanta tralha insignificante que uma pessoa acumula em quase vinte e cinco anos de existência!
Tudo terminou com um concerto inesperado de James Blunt no domingo, a vida a fazer das suas...
A mamã ama. Ama sem ilusões, ama muito. Contudo atingiu a paz de alma que sempre almejou. A certeza de que não é possível e de que devemos tirar o melhor de cada situação.
A mamã é feliz. No sad goodbyes, no tears, no lies, just going in separate ways. And God knows it is hard to find the one.
A mamã...
Um dia conto-vos.

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