sábado, 21 de fevereiro de 2015

Carta aos meus filhos #74

Não cheguei a falar-vos da antiga loja de têxteis para o lar que havia numa adjacente à D. Nuno Álvares Pereira. Não tivesse fechado e não teria nada a dizer: mas fechou. Quando era pequena, passava em frente dela e lia religiosamente os nomes de crianças impressas nas toalhas e nas mantinhas de lã. Atravessava a estrada, que me parecia tão grande, para poder ler esses nomes eternizados no tecido. Dizia que, se o nome dos meus filhos, escolhidos desde sempre, estivessem la, então é porque acabaria por ter-vos um dia. Agora a loja fechou, a montra está empoeirada e no interior nem cartões, nem contas acumuladas. Nada. Algures, num armazém, o espólio de toalhas e lençóis bordados que não serão para ninguém. 
Vim a um bar diferente, junto à Avenida da Liberdade. Uma vez, no Terreiro do Paço, beijei o meu amor. Ele era tímido e não gostava de demonstrações públicas de afecto. Mas eu expliquei-lhe como a praça é importante para a história do meu país e, consequentemente, como era importante para mim beijá-lo aí. 
Mas falava-vos da Avenida da Liberdade, com o seu desfile de marcas internacionais. Desde que nasci nunca a vi tão bonita como agora, nem tão inalcançável. Já fiz amor na Avenida da Liberdade. Mas agora, estou apenas num bar abrigado das estrelas, sendo que as mesmas rodopiam, no tecto lilás, enquanto tocam os ditos clássicos desta geração.
A mamã ficou de coração partido quando viu a loja fechada, e toca a karma police, durante tanto tempo a minha música. A vida segue e a mãe tem de correr, ou fica para trás. O vosso pai não me quer. A mãe não o quer. Ainda não. Mas esse não nos querermos corrói a mamã por dentro. Em breve a mãe desfaz-se em cinzas. As pessoas entram e saem das nossas vidas, raras vezes deixam algo de bom. É mais uma sensação agridoce quando desaparecem e, através da imobilidade lhes adivinhamos as vivências vazias, vazias como as nossas. For a minute there I lost myself. A mamã sabe que o seu coração, em vez de ter expandido, só tem encolhido por conta dos desaires de amor e desamor. Amor e ódios tão íntimos que se distorcem no espaço exímio dos ventriculos. A mamã não tem mais forças. Nem para amar, nem para odiar, nem para se tentar entender, e muito menos para se explicar. 
Hoje vim sair para um bar onde nunca tinhamos vindo e, quando se amou alguém que se teve, a pessoa é como um fantasma, um expectro que caminha a nosso lado, que vem connosco aos sítios onde fomos felizes, que se despede de nós nas estações onde um dia nos separámos, onde um dia contámos as moedas e pelejámos por quem pagava a viagem. Uma vez vi-me reflectida na janela de um comboio, e ele ia sentado à minha frente. E eu olhava o nosso reflexo na janela, a noite caía lá fora, e ele olhava para mim. E eu, que tola, pensei que quando alguém nos olha assim, nunca mais deixa de querer olhar-nos de um modo qualquer. Por isso vos digo agora que a loja onde um dia vi os vossos nomes bordados em turcos coloridos fechou. E um dia abracei e beijei o meu amor no Terreiro de Paço. 

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