segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Carta aos meus filhos #100

A mamã está a tentar. De certo modo, está até a conseguir. Apesar das intempéries, estou numa boa fase. Posso entrar numa livraria e comprar o livro que quiser. Posso comprar chocolates na bomba de serviço. Posso ouvir a música que quero. Estou sozinha - e é uma solidão agridoce. A mãe não sente falta de outro corpo cá em casa. Nem consigo imaginar como seria dividir o sofá com outra pessoa. Talvez seja bom, ou talvez te anules e passes a ser só um apêndice do outro. A mamã sente que a gravidade da Terra puxa os corpos para se tornarem apêndices de outros. A mamã acha até que as pessoas não sabem o que fazer de si próprias, nem consigo próprias. É vital que haja outro, um outro, que nos arranque a nós e nos leve a sair. É vital que te moldem para fora daquilo que és. A mamã vê pessoas que não têm qualquer interesse na vida, nem garra, nem paixão. Pessoas que andam ao sabor da maré ou das sms e da agenda de outro alguém. A mamã esforça-se para que isso não lhe aconteça, e para que a minha vontade, os meus desejos, aquilo que eu sou, e que amo, e que me dá alento, permaneça sobre todo o resto. Só me apaixonam as pessoas completas. As pessoas que não se acomodam no que é confortável, as que têm planos, corações em erupção, sopros de inspiração. A mamã está farta de pessoas desinspiradas. A mamã vê que caminhamos nas ruas empedradas de Lisboa em horas pouco recomendáveis, mas que os nossos corações, por falar em corações, deambulam no firmamento. Divagam, iludem-se, entregam-se a quem apresentar mais obstáculos. Adoramos que nos digam que não. Adoramos que nos deixem à espera. Quando acontece, e disso estamos certos, há-de saber melhor. Há-de saber a conquista. Estamos enganados. Até isso sabemos, se tivermos coragem de ver melhor para dentro de nós. Tudo é temporário, tudo começa ao balcão de um bar e termina nas redes sociais. Tudo se resume ao quão fácil é escrevermos uns aos outros, sem que nada se diga e sem que nada de nós se dê. É fácil prometer-se o que se sabe que não se vai cumprir. O coração da mamã está aninhado e não se quer mexer. Não é bem preguiça. Se surgir alguém que valha a pena, sei que consigo que se mexa. Talvez não queira. Talvez seja uma escolha. É o caminho mais difícil, sabem? Em cada esquina está alguém. A mamã não consegue dar dois dedos de conversa a ninguém sem que se sinta de férias de si mesma.
A mamã vai voltar a sítios que me são muito importantes. Vou ver arte - e a arte alimenta-me o espírito como nada mais. Observo a escultura e sou esculpida por ela. Admiro o vermelho do Raffaello e sou tingida por ele. A mamã quer essa vida, que abracei por me trazer tantas satisfações: a dos livros, do jazz, das viagens, da boa comida e do vinho. A mãe gosta de se reinventar, sem abandonar tudo o que já foi. A mamã gosta de ter planos e de ser ela a traçar rumos. Não me importo de seguir a escolha dos outros, se for também a minha escolha.
A mamã não costuma beber chá, mas peço e faço muitos chás. Há uma janela ínfima de tempo em que o chá está no ponto. Entre o estar muito quente e o estar frio, há cinco minutos em que me dá prazer beber chá. O resto sobra. Ando sempre a lavar anéis de cafeína das minhas chávenas esquecidas na secretária.
Só sei que é uma época de conciliação. Se calhar é uma época de conquista, em que somos todos estrategas e queremos saber até onde podemos ir com as armas que temos. Somos todos cavalos selvagens nesta idade, as crinas ao vento e um coice a cada sobressalto. Podemos correr até ao horizonte, e para lá dele. E ao invés ficamos dentro da cerca, unidos uns aos outros, ou à silhueta dos outros, à distância, ou à sua sombra, depois de partirem.
Filhos, não se tornem o objecto de consolação ou a arma de arremesso de alguém. Apostem no que querem fazer, e que vos deixa de coração em sobressalto. A cada vez que a mamã pega num microfone, no autocarro, perante cinquenta italianos, a mamã tem medo, mas a mamã vence. Há dois dias tive três sinais de que estava onde tinha de estar:
Primeiro perguntei a uma senhora de onde era: é de Verona. Depois perguntei a outra senhora do grupo de onde é: também de Verona. Disse que vou lá passar o meu aniversário. Perguntou-me qual era o dia. É o dia do aniversário dela, também. Depois o motorista disse-me que Veneza é a sua cidade favorita, aquela onde regressa sempre com o mesmo entusiasmo. Desta vez, e não sem receio, a mamã vai partir a toda a velocidade para lá da cerca. E sem apêndices para trás: serei eu, a arte, a aventura, os livros.

O único inconveniente é o cheiro dele no colarinho da camisa. Fora isso, não há abalos no meu equilíbrio.

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