domingo, 27 de novembro de 2016

Carta aos meus filhos #102

A mamã sente-se fraca e desinspirada. Costumo viver de paixões e nenhuma me tem pulsado nas veias. Fui à ópera e estremeci. Foi um pouco de emoção num coração hibernado. É-me involuntário. Madame Butterfly é de uma beleza que dói na alma. Se se tiver uma, os pelos da nuca eriçam-se todos quando os dois amantes cantam a Notte Serena. Só para depois ele a levar ao suicídio.
Não me apetece escrever. Mas tenho sempre e a todo o instante de manter a cabeça ocupada. Por isso vejo filmes. Consegui avançar um pouco n"A Campânula de Vidro" da Sylvia Plath. Mais famoso que o livro que ela escreveu é o modo como, dois meses depois de o publicar, meteu a cabeça no forno a gás. Estou na parte em que a depressão da sua personagem principal - Esther, depressiva, vai começar a fazer terapia com choques eléctricos. Esther inventa um pseudónimo quando começa a escrever o seu livro. Elaine. É-lhe importante que mantenha o mesmo número de letras do seu nome. Seis. Sylvia. Esther. Elaine.

A mamã faz vinte e sete anos daqui a uma semana. Vou estar sozinha. Nunca se sentiu mais sozinha na vida. Mesmo quando estava sozinha no passado, sabia que nào estava sozinha. E a mamã procurar por estar sozinha a vida toda. Mas não só. E o abandono momentâneo só se compara ao de ver a mãe a sair pela porta da avó, com um irmão pela mão e outro pela anca, enquanto eu ficava a dizer adeus no corredor e a avó me puxada para dentro e dizia que não havia dinheiro para pagar a conta da luz. Às vezes ia até ao patamar vê-los desaparecer na esquina. A mãe tinha um blusão de cabedal. O irmão também, e tinha os cabelos compridos e encaracolados, apesar de ser um rapazinho. A mamã está num momento em que tudo me parte o coração. As lágrimas têm surgido, mas como consolo. Enquanto forem alívio a mamã fica satisfeita. Aceito qualquer coisa que me alivie as dores.
A mamã vai ficar dezoito dias sozinha. Foi uma escolha minha, mas agora parece-me que vou ter que lidar com coisas maiores que eu. Como conduzir e estacionar. Pior que seja num país onde nada se respeita na estrada. A mamã nunca teve medo de nada. Mas agora tem. Por enquanto consegue deitar o pé à embraiagem e sacudir esse medo. No outro dia, viajando no banco de trás de um uber, o motorista diz que, a nível pessoal, fez Ponte Vasco da Gama/Marina de Vilamoura às oito da noite em quarenta minutos. A família esperava-o, mas podia ter chegado só o telefonema do Inem e o funeral de caixão fechado.
A mamã tem medo. Gostava que vocês estivessem cá para ser forte por todos. Mas a mamã jã não tem porque ser forte. A mamã ...
Está desinspirada. O médico de clínica geral que me atendeu a propósito da faringite leu o título do livro que ando a ler. Perguntou-me porque ando a ler coisas sobre uma mulher depressiva. Leu a minha ficha no computador. No final disse que é psiquiatra e para não acreditar na totalidade em mal-estares psicológicos apenas baseados em questões fisiológicas. Ele disse "falta algo na sua vida". E a mamã dizia que está tudo bem. E ele dizia "não, falta algo e você não quer dizer o que é se não desmancha-se em lágrimas, mas sabe bem o que é".
A mamã tinha esperança que houvesse cura sem felicidade. Porque assim podemos travestir a nossa realidade como quisermos. Mas se me exigem uma jóia verdadeira para que tudo fique bem, eu não posso. Não depende de mim e eu não posso depender de outrem.
Tudo acontece por um motivo. A mamã não sabe se vai escrever mais livros. Do momento onde estou, parece-me que se olhar para o futuro não vejo mais livros. Não vejo mais amores. Não vejo filhos. Não é que a mamã esteja triste ou no escuro. Às vezes da luz vê-se melhor. A luz traz a escuridão. Como um grande amor pode trazer só desgostos.
A mamã precisava de um planeta novo, onde se exilar. Por enquanto vou para Itália, e apelo à civilidade dos condutores e ao universo para que me devolva a chispa da inspiração. A partir daí acredito que possa construir uma estrada de tijolos amarelos e, quem sabe, escapar-me daqui.

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