sábado, 14 de setembro de 2013

Carta aos meus filhos #11

Hoje foi um dia estranho (e triste),

A mãe tinha posto o despertador para as 06:00 da manhã, mas o mostrador vermelho que foi sempre consultando durante o sono – já de si agitado – fez-me saltar dos lençóis às 05:58. Enquanto tomava banho dei-me conta de que o alarme do telemóvel não tocou e já eram 06:20. Isso porque estava pré-programado para só tocar durante a semana e hoje era sábado. Ou seja, deu-se o primeiro acaso do dia: se não tivesse tanto medo de dormir sozinha nesta casa, e se dormisse um sono profundo e descansado, não teria visto as horas, o despertador não teria tocado e eu teria perdido o autocarro das 08:30 para Berlim.
Que fui eu fazer a Berlim? Ora bem, estando a 280 km da capital, a três horas de autocarro ou duas de comboio, considerei um desperdício não visitar o outrora coração do Reich III. A viagem foi longa, não podia cruzar as pernas que a circulação parava de imediato nem dormir confortavelmente. A somar a isso, assim que meti um pé no metro em Richtweg, entendi que me tinha esquecido dos phones em casa. E, nessa mesma manhã, sem vontade nenhuma de sair da cama para ir visitar Berlim, convenci-me que não podia morrer sem ouvir a Wind of Change junto a um pedaço do muro. Assim sendo, palpitou-me que o dia ia correr mal.
Não depus nenhuma expectativa em Berlim, guiava-me apenas uma certa suspeita de que não gostaria da cidade. Por isso, a capital estava livre para me impressionar pela positiva. Aconteceu o exacto oposto, e vi-a sob um sol de torreira que me queimou a cara e me fez arrotar 2,00€ por uma garrafinha de 0,5L de água e quase o mesmo valor por um muffin.
O autocarro deixou-me em Kaisercamm. Gravei o nome dessa estação de metro no braço e no inverso do bilhete de metro (2,60€, válido por duas horas). Desci em Potsdamer Platz e era suposto mudar de linha, mas aparentemente o dito cujo Brandenburg’s gate era logo ali. Caminhei ao longo de uma vasta avenida (tudo é grande, em Berlim), e passei por uma qualquer comemoração de uma comunidade italiana. Os italianos foram os meus amigos aqui da Alemanha, sem dúvida. Quando eu perguntava “fala inglês” e eles, tristes, respondiam “no, italiano”, eu deitava os braços ao céu e dizia “grazie a Dio”. Quando vislumbrei a tal porta da cidade – o símbolo de Berlim – fiquei decepcionada com o seu tamanho reduzido. Imaginava algo em grande, mas à luz das dimensões monumentais de Roma, pareceu-me tacanho. O facto de estar a haver um evento político – com direito a discursos em alemão e uma grande multidão apinhada – não ajudou a bloquear a minha mente para os acontecimentos da II Guerra Mundial. Imaginava o terceiro Reich a propor-se a conquistar a Europa a partir daquela pequena praça. Também a águia alemã – um símbolo retro muito à século XX, me perseguiu nalgumas esquinas.
Comprei um cachorro quente – sem batata palha, estes tipos nem sabem fazem cachorro quente! – e uma cerveja, para não repetir a inexperiência quanto à Guinness, que nunca cheguei a provar enquanto estivemos na Irlanda. O cachorro foi cinquenta cêntimos mais barato que a cerveja, e o destino desta última foi, após o primeiro golo, uma queda livre para a vala mais próxima sob o testemunho do Brandenburg’s gate. Pedi a um estranho que me tirasse lá uma foto – para vos mostrar, um dia, que a mãe era muito emancipada aos vinte e três anos – e prossegui viagem. A Catedral de Berlim não aparecia em canto algum e comecei a olhar ansiosa para as horas, isto porque tinha cinco horas para fazer o  city break mais stressante de sempre. Quando a Catedral finalmente apareceu, junto à ilha dos museus, pensei: ora finalmente cheguei à parte mais bonita da cidade, talvez ainda vá a tempo de redimir-se. Qual quê. Procurei ângulos para uma fotografia decente dos museus – nada, são enormes, mas de bonito pouco têm. Mega estruturas de inspiração neo-clássica que me parece até tosca quando comparadas com as italianas. Nem entrei na catedral, subi as escadas ao som do bramidos de uma cigana romena contra o filho (que estava de birra, como também me apetecia estar) e voltei a descê-las após espreitar para o interior.
Next stop, Alexanderplatz. Supostamente um dos hot spots da cidade. Estive nela sem poder acreditar que aquilo fosse a famada Alexander Platz. Cheirava a subúrbio, falta de sentido estético e sobrevalorização aguda. Uma coisa tão banal (mas grande, e eles classificam os monumentos como “a maior praça da Alemanha”), que já tinha prosseguido o meu caminho quando me obriguei a voltar atrás. Ninguém acreditaria em mim quando dissesse que a Alexanderplatz é um embuste. O que resta a Berlim se tudo me pareceu medíocre? Voltei atrás para tirar algumas fotografias que justificassem o meu exaspero. Nem tive de me esforçar por encontrar um mau ângulo – ângulos bons, não os há. A Canon gemia de frustração. Três horas de viagem prometiam qualquer coisa de grande.
Desisti do centro de Berlim e pensei que ainda me faltava ir à parte que realmente me interessava, o último ponto da viagem, a East Side Gallery. Quando desci da estação dei por mim num ermo facilmente comparável a um Fogueteiro, só que com uma mega estação no meio. Ao menos é feio mas é em grande. Já me tinham avisado que não se trata da zona mais bonita da cidade, mas depois de ter desgostado de tudo o resto, julguei que poria o pé fora do comboio, espreitaria para o exterior e apanharia o primeiro U-bahn back to Kaisercamm.
Como a sinaléctica é inexistente, quase me perdia durante mais um bocado até lá chegar. Não há quaisquer indicações em inglês, não há qualquer direcionamento para o turista. A língua não é propriamente fácil e não há assim tantos cidadãos a dominarem o inglês. A cada vez que uma palavra em germânico pautava as suas indicações, a receita para mais deambulações sem rumo estava encaminhada.
O muro tem um significado que teria gostado de percepcionar a ouvir a tal música dos Scorpions que mencionei. Contudo resumiu-se a uma longa caminhada junto a uma parede colorida com bonitas mensagens e ilustrações, lado a lado com uma cidade que mal podia esperar para deixar para trás e para fazer “check” na lista dos locais a conhecer. A Alexanderplatz surgia lá ao fundo (aquela torre que nem tive tempo de investigar a que se deve, posto que decidi numa tarde ir a Berlin e planear o que ver/fazer). Caminhei até ela. Penso que o percurso tenha durado de tinta a quarenta e cinco minutos. Isto porque não se conhece realmente uma cidade sem lhe termos impresso parte da sola de uns sapatos. Quando finalmente passei por um Photoautomaten, uma daquelas cabines de fotografia de rua que te devolve vários rostos e ângulos de ti próprio a preto e branco (o prometido), julguei que a cidade queria redirmir-se. Ia entrar e desembolsar 2,00€ de boa vontade quando reparei que… bem, como é que posso coloca-lo sem utilizar a asneira que me vem à mente? Já sei, utilizando a asneira. Merda. Merda humana a repousar comodamente no assento, rodeada dos insectos que a adoram e a afastar-me de vez de Berlim a sete pés.
Voltei para casa noutro inferno de três horas em que nem podia cruzar as pernas a perguntar-me se terá valido a pena. O dinheiro certamente valeu, porque paguei pouco mais de trinta euros por uma ida a Berlim, mas e o resto? O calor, os preços inflaccionados, a fealdade geral? 
Cheguei a Richtweg às 22:00. Sabia que me esperava outra noite de receios. A mãe nunca foi medricas mas, ultimamente, tem medo do escuro. Medo do escuro e doutras coisas que não sabe nomear. Aquela casa fazia barulho. Todas as casas fazem mas, num bloco vertical com quatro pisos e lanços de escadas em madeira, nem o alcatifado garantia silêncio absoluto. Primeiro houve a situação das tais vozes, tipo televisão ligada, que escolhi assumir que foi mesmo a televisão do vizinho a causar tal susto. Em seguida, à noite, mantinha-me estranhamente alerta, e eu até tenho facilidade em me abstrair. Há duas noites, quando estava mesmo, mesmo a cair no sono, mesmo com os dois pés a escorregar para o outro lado, ouvi um ruído na madeira das escadas. Suficiente alto para me acordar, relampejou-me na ideia a impressão de que um corpo transferia o peso dum último degrau de madeira para a alcatifa cá de cima. Por muito que precisasse de dormir, porque ia acordar cedíssimo, quem me convenceria a adormecer sob tais condições? Mantive a minha vigília enquanto pude. Não me lembro de adormecer. Além disto parece que a casa… respirava. Isto é, às vezes parece que estranhas massas de ar reequilibravam as energias no seu interior. Punha-me a olhar para um sítio fixo sem que daí adviesse nada, mas a minha percepção e a minha visão pareciam desencontradas. Ontem à noite a torneira da cozinha lembrou-se de pingar. Desci as escadas com à vontade, a fim de fechá-la melhor. A parede das escadas dá directamente para uma sala cheia de carpetes e mantas onde nunca cheguei a sentar-me. Tive de parar abruptamente porque me pareceu que algo se estava a mexer na sala ao lado. Algo respirava e ouvia-lhe, com o mexer dos lábios, o revoltear da saliva. Não estou louca, pensei. Todos os meus sentidos gritavam que estava ali alguém. Tinha de estar ali alguém. Sabem quando sentem alguém se aproximar das vossas costas? Olham sobre o ombro e é um amigo. Os meus sentidos diziam-me que estava lá alguém. Mas nada. Subi e encolhi-me num canto, já esquecida da torneira. Pouco depois reuni coragem suficiente para ir lá abaixo, com uma pequena faca em punho, inspeccionar. Atrás do cortinado parecia que havia um volume. Eu não me lembrava de como tinha deixado os enormes cortinados opacos que vão do tecto à alcatifa quando, nessa mesma tarde, me tinha ajoelhado nela para fazer as malas. Tive de suster a respiração e afastar os cortinados. Como dormiria eu se não verificasse? Nada. Mas aquele canto tinha ficado como que preso ao chão, então voltei a puxar os cortinados. Nada. Continuava a haver um volume estranho na forma como os mesmos se rearranjavam, e puxei uma terceira vez. Nada. Por último, sem puxar, olhei simplesmente lá para trás. Nada. E o receio eclipsou-se por um momento. Mas não por demasiado. A cada vez que a madeira das escadas estalava ficava em pânico. Desliguei o computador à pressa a fim de me fechar no quarto e tentar dormir um pouco. Duas das vizinhas ainda tinham as luzes acesas e isso passava-me algum conforto.
A mãe, como disse, nunca teve medo de coisa alguma. Só da solidão e da incompreensão. E agora tem medo do escuro e doutras coisas mais. Na realidade, nas últimas semanas sentiu por mais de uma vez que passou ao lado de uma grande desgraça. Na auto-estrada quase sentiu um anjo negro de asas distendidas a passar ao lado do carro. Ficou desconfortável e, uma vez mais, estranhamente alerta. Depois sucedeu qualquer coisa de mal. Em seguida uma senhora com intenções duvidosas ofereceu-se para cuidar da mãe em Hamburgo. Estava tão farta de procurar casa que aceitei as suas ajudas e quase me meti na boca do lobo. Depois em Berlim, senti-me constantemente ameaçada e pensava que uma viagem só termina bem quando pomos o pé em casa. A prudência foi como um manto sobre os meus ombros, a tal ponto me achei sortuda por não me ver desgraçada que já pensava que, se me levassem só a Canon, era justo.
E assim concluí que sou uma mulher muito abençoada, e senti-me religiosa. Tenho sido muito protegida, ultimamente mais do que nunca, por uma estrela anónima. Ainda assim, sinto qualquer coisa de negro a rondar, como uma sombra que me tolda os movimentos e me mantém constantemente em vigília.
E antes de me deitar ainda recebi uma notícia má que me pôs a pensar na vida, nas partidas, no que está para lá disso e na sorte tremenda que tenho tido. O destino continua a lançar os seus dados – e eu continuo no sítio aonde tenho que estar – porque marquei a viagem para casa a tempo de ir reencontrar a minha vida e abraçar quem precisa.
Para concluir Berlim e me deixar de assuntos que só suscitam dúvidas retóricas:
A experiência não foi das melhores, em parte porque também viajar sozinho é desafiante, mas não tão gratificante quanto julguei que fosse. Considerei a capital da Alemanha a cidade mais feia que visitei até hoje, e olhem que estive em Milão (cinzenta, superficial, sem espírito artístico), Dublin (industrial e plain) e Hamburgo (pouco homogénea, a mistura do antigo com o moderno não funciona bem). Bremen, em contrapartida, tem o encanto de uma fábula – e a mesma se insinua a cada esquina. Foi este pequeno cantinho que salvou, perante os meus olhos de curiosa, a Alemanha.
O Italiano da Sicília dizia, enquanto me prepara um spaghetti ai funghi, que os países do Norte têm dinheiro – as senhoras passeiam-se com saquinhos da Dior e malinhas da Louis Vuitton – mas não fazem ideia do que é a beleza e a alegria. A beleza não pode ser planeada, ou sai gorada. A beleza não pode ser aleatoriamente plantada no centro de uma praça, porque não depende apenas de uma fonte destaca-la. A Fontana di Trevi bem no meio da Alexanderplatz morreria. A Piazza Navona por entre a solidez obtusa daqueles monumentos sufocaria. A beleza está no espaço, mas o espaço é algo de amplo. A beleza está na musicalidade de uma língua, na compleição dos rostos que a cantam, nos gestos das gentes e nos modos das crianças.
A Berlim falta o senso estético da beleza. Da beleza que jorra em cada esquina de Lisboa, algo de tão complexo que é mais do que mera obra humana; é um conjunto de circunstâncias felizes. Aquele senhor, por acaso, decidiu construir uma casa naquela esquina que, por acaso, dá para nascente, e à sua disposição só tinha aquela pedra, que, por acaso, capta essa mesma luz de modo especial. A mulher estendeu nessa manhã, por caso, os lençóis coloridos da cama do filho de ambos e o padrão dos mesmos sobressai no amarelo da fachada. Sendo por acaso primavera, as sardinheiras acabaram de florir na varanda. Por acaso ao lado da sua casa ergue-se uma pequena igreja, por acaso o sino está a tocar quando vamos a passar. Por acaso há outras casas por entre as ruas casualmente sinuosas desse pequeno bairro e, quando por lá circulamos, têm as janelas todas abertas e toca uma voz melodiosa que fala dessa palavra tão portuguesa – a saudade. Por acaso mais adiante prepara-se o fogareiro para assar a sardinha e, logo além, as crianças gritam e pulam e enxotam os gatos vadios. Por sorte lá em cima há um miradouro e, depois de uma refeição inesquecível (e barata), onde não faltou um bom vinho, afastamo-nos do eléctrico para aceder à balaustrada e debruçamo-nos. E de lá vemos as andorinhas esvoaçar sobre a superfície espelhada do Tejo, mesmo porque entretanto é quase verão, e ao longe o cacilheiro. Os jacarandás explodem em lilás por toda a parte e a cantiga da cidade despede-se sem deixar de nos desejar um boa viagem, volte sempre.

E é por isso que a mãe voltou para o sítio ao qual pertence.

No fundo, sempre soube que o vosso pai não seria alemão.

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