segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Carta aos meus filhos #13

Queridos,


A vida complica-se diariamente. A mãe acha-se sempre muito crescida e muito sabida das coisas, mas a verdade é que, a cada dia que passa, se descobre mais ignorante. Uma coisa é certa; quando as pessoas estão dispostas a entender-se, há pouca coisa que as separe. Quando estão apostadas em não se dar, qualquer coisa é motivo de desentendimento. E a mãe tem-se esforçado por pertencer ao primeiro grupo.

Tantas vezes na vida o caminho desemboca numa bifurcação - two roads diverging on a yellow wood -, e eu, sendo apenas uma viajante, sou obrigada a escolher. Há uma tendência geral para as minhas escolhas - o fraco em prol do forte, o necessitado em prol do abonado, o injustiçado em prol de quem causa a injustiça. E tudo isto é simples quando é absoluto. Mas a mãe diz-vos que, aos vinte e três, já entendeu que pouca coisa na vida é absoluta. Tudo sofre influências da lei da relatividade. A mãe é injusta. A mãe magoa. A mãe esquece quem mais precisa que ela dele se recorde. A mãe põe para debaixo do tapete, porque também a mãe, que se acha tão íntegra, é incapaz de lidar com as coisas incómodas. Uma coisa são as coisas difíceis, outra são as coisinhas pequeninas, e a mãe odeia-as acima de todas as coisas. Cada dia é uma lição. Uma lição de perseverança e de resistência. Talvez uma hora difícil anteceda sempre uma hora mais fácil. E a mãe não rodopia no centro do furacão, mas sente-se tão fraca, tão vulnerável, tão em baixo por uma vez. A mãe sabe que, no seu âmago, não precisa realmente de ninguém que olhe por ela. Sempre fez um óptimo trabalho nesse campo. Contudo, por ora, queria que a levassem no colo e lhe contassem histórias. Que a entretivessem sem que ela tivesse de o pedir, que lhe mostrassem coisas bonitas a partir do conforto de um assento de carro. A mãe não tem forças para descer nesta paragem, ou em nenhuma outra. As cartas voltaram a chamar-me. A mãe obrigou-se a acreditar. A mãe tem receio do que as cartas querem dizer. Não consultá-las será sinónimo de força e fé ou de receio de enfrentar as suas suspeitas? Não, a mãe acredita. Porque ser-se positivo torna o dia mais luminoso.

A mãe não consegue dormir. Está rodeada de pessoas com problemas a sério, pessoas sem tempo, pessoas a precisar realmente de tempo, pessoas afastadas de casa, pessoas cujos entes queridos partem, pessoas que planeiam a sua vida, pessoas que casam e essas mesmas vidas mudam, pessoas com filhos, crianças que, sem compreender, são levadas pela mão para longe daqueles que amam. Mas a mãe é que não consegue dormir. Crianças que são levadas pela mão pela rua, ao cair da noite, e que olham para trás, os olhinhos tristes sob a aba do boné, e acenam uma vez mais adeus àqueles que o abandonam. Abraçada a si própria, à porta de casa, a mãe fica até que a esquina nos separe. A mãe já não chora. Em tempos choraria, agora convenceu-se de que nada muda. Tudo piora. O que não piorar, melhor; acomoda-se dentro de nós e ergue paredes de granito. Abraçada a si própria à porta, no primeiro dia deste Outono, a mãe pensa; tenho de escrever a história da minha vida. É-me essencial não esquecer. A vida da mãe - penso "a vida da mãe", e não "a minha vida" - foi sempre mais ou menos isto. Uma criança pela mão a ser arrastada para longe daqueles que mais ama. Uma criança que olha para trás e acena, esperançosa. Talvez da próxima fique. Talvez da próxima possa ficar. Talvez da próxima me deixem ficar. Uma criança triste a acenar um adeus àqueles que a abandonam. Por vezes a mãe foi a criança triste. Outras vezes, foi a mulher que se abraça à porta e que sorri à criança triste. A vida da mãe resume-se a isso; uma vida é quanto mais vida quanto mais se insere nas tempestades e nos dias solarengos de uma família. E a família da mãe é isso. Uma criança triste...

A mãe sonhou com um emigrante. Um emigrante desconhecido que vinha atirar-lhe pedras à janela durante a noite. Queria um lenço, um lenço vermelho. A mãe já o tinha escorraçado quando um transeunte se abeirava da janela e me dizia: minha senhora - será que ele me chamava senhora? Às vezes já me chamam senhora - aquele senhor é um emigrante. Aquele senhor tem saudades da sua terra. Na sua terra bebe-se qualquer coisa de tradicional sobre um lenço vermelho dobrado. Antes de você morar nessa janela, morava aí uma senhora que, fosse à hora que fosse que ele viesse pedir-lhe ajuda, lhe emprestava um lenço vermelho. E a mãe procurava discernir o vulto do emigrante na rua deserta. Ele fora-se. Fora-se - gordo, baixo, corado, quase careca, num pranto. Fora-se em prantos, pois. Tenho lenços doutras cores, quis gritar-lhe. E ele fora-se. E a mãe engole as lágrimas. Antes de ouvir o que o pobre homem tinha a dizer, disse-lhe que desaparecesse, que a ela só lhe interessava dormir em paz.

A mãe não dorme, já vos disse? A mãe acorda muitas vezes durante a noite e tem sonhos ora muito bons, ora estranhamente perturbadores. Não maus, nunca maus. Não voltou a ter sonhos maus. Mas tem sonhos que a intrigam como contos sul-americanos. Hoje a tia Cláudia disse que eu ressono. Deve ser do cansaço, quero pensar. Nunca ressonei. Diz-me que faço um ruído estranho, como se "comesse" os meus dentes. Já mo tinham dito antes. O dentista não deu por nada no esmalte desses mesmos dentes massacrados durante a noite. A tia Cláudia ainda disse:
- Esta noite levantaste-te, foste à cozinha e comeste uma clara de ovo cru. Deixaste a gema.
A mãe recorda-se de ter acordado durante a noite e de ter ido beber água. Estas coisas que a tia diz são loucura. A mãe não é louca. Parecem histórias de bruxas. A mãe não comeu clara nenhuma. A mãe bebeu água e chamou o gato da janela - o gato não veio. A mãe voltou para a cama e adormeceu. Que estranha esta sensação de que a vida da mãe se está a tornar no enredo de um livro de surrealismo sul-americano...





A mãe não está triste nem magoada em local algum do seu ser. A mãe só está exausta, estranhamente incompleta. A meio gás. E não sabe porquê.


Quadro: Katherine Fraser

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