segunda-feira, 12 de maio de 2014

Carta aos meus filhos #33

Filhos,

Criar-vos é bem mais difícil do que parece. Bem dizem que só quem os tem dá valor ao difícil que é. A mãe ainda não tem filhos, mas criar as irmãs tem sido bem mais amargo do que recompensador. Apesar dos inúmeros momentos bonitos, e daquilo que a mãe vai fazendo com q.b. de sacrifício e q.b. de gosto, há sempre algo que falha. Um quê de ingratidão vs será que fiz mesmo as coisas mal feitas?
Hoje a tia Cláudia disse, no calor do momento, uma coisa muito, muuuuito feia à bisavó. Como tanto eu como a bisavó estávamos a discutir com ela, fiquei com a impressão de que o dissera para mim. Voltei para trás e perguntei-lhe, com a voz fria de incredibilidade, se era para mim a sugestão. Ela disse que não, que era para a avó, o que de repente tornou tudo pior aos meus olhos, mas melhor para a Cláudia. Porque se fosse para mim, eu teria de me defender e ela não ia gostar. Sendo para a avó, fiquei furiosa mas deixei que a avó exigisse respeito por si. Em simultâneo, ela entendeu logo que dissera algo muito grave e recuou, pediu desculpas à avó sem que ninguém lho pedisse. Contudo, cinco minutos depois estavam as duas contra mim. A tia Cláudia e a tia Ana, esclareço.
A Cláudia lembrou-se de dizer que eu lhe batia quando ela era pequena, diz que lhe dava bofetadas. Só me recordo de uma bofetada, mas recordo-me que ela a mereceu. Disse à Cláudia que quando ela nasceu eu era pequena e ainda assim assumi muitas vezes o papel de sua educadora, por demissão voluntária dos pais nesse cargo. Mas ela diz que eu teria catorze ou quinze anos, idade que de facto teria, e lhe batia.
A Ana achou que era boa hora para dizer que também se lembra de eu lhe bater. Lembro-me bem de todas as vezes que dei palmadas nas palmas da mão da tia Ana e das vezes que lhe pedi que se virasse para lhe aplicar a colher de pau nas nádegas. Nunca fui bruta, nunca tive o objectivo de a magoar. Talvez quisesse vexá-la um bocadinho, para que o espírito se lhe vergasse e fugisse do que estava errado. Uma vez não queria comer. Outra vez bateu na avó com a colher de pau. Outra vez atirou comida ao chão. Outra vez fechou os punhos e bateu-me nos joelhos, julgando tratar-se da Cláudia. Mas era eu, e não poderia deixar passar em branco.
Nunca tirei qualquer prazer desses episódios educativos, nunca as vi magoadas por causa de mim. Vi-as sim a comer o peixe até ao fim e a ter respeito (ou medo, como queiram) a alguém que só tinha de abrir-lhes os olhos.

Quando a tia Ana nasceu, eu fui a primeira pessoa que lhe deu biberão. Discuti com a enfermeira para que lhe trouxesse mais um quando ela sorveu o primeiro com sofreguidão. Mudei-lhe fraldas. Noite dentro, quando ela chorava e a mãe não ouvia, era eu que ia ajeitá-la no berço, repor-lhe a chucha. Sujámo-nos as duas quando lhe dei a primeira papa. Na fotografia que partilhei delas ontem, reconheço que a roupa que trazem vestida foi por mim escolhida e paga. 
E de repente estão as duas de lágrimas nos olhos e voz quebrada a acusar-me de as espancar.
Eu bem dizia que era a única pessoa que se interpunha entre elas, que se julgavam princesas, que eram tratadas como princesas, e o grande mundo que espera por abocanhá-las. Quis que soubessem que há limites, que há barreiras, que nem todas as portas estarão abertas, que nem tudo é aceitável. Mas tenho feito tanto pelas tias, e temos tido momentos tão bonitos… e faço-lhes a vida tão mais fácil do que a que eu própria tive, também com sovas mas indiscriminadas e que me souberam a injustas, que não entendo.
Não entendo nem sei lidar com ingratidão. A mãe pode perdoar muita coisa, mas custa-lhe a engolir que não se reconheça quem nos faz bem.
As duas deram-me as costas e foram-se embora. A mãe ficou aqui sozinha a perguntar-se se realmente foi má, se de facto foi cruel. Mas para isso teria de ter tirado algum prazer perverso das lágrimas delas, e nunca tirei, pois não?
Ainda assim, a tia Cláudia disse uma coisa feia hoje. E a mãe pensa que, se não fossem metade das “crueldades” a que a submeti, ela nunca teria voltado atrás de livre vontade para pedir perdão à avó. Por isso… Ainda que me custe ter sido sempre a má da fita, alguma coisa certa devo ter feito.

E terei de viver apenas disso, até que talvez um dia elas entendam.

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