domingo, 18 de maio de 2014

Carta aos meus filhos #34

Mes amours,

Hoje falo-vos dos desencontros da vida. A mãe já se tinha apercebido disso, mas de repente sente-se capaz de verbaliza-los. Talvez haja mais pessoas que tenham experienciado isto, ou talvez seja toda a minha vida desencontrada a estender-se perante os meus olhos.
Sintomas de uma vida desencontrada:

- a tua casa de sonho está numa pequena aldeia da Beira Interior, mas tu tens de investir (muito mais) numa que se encaixe melhor no teu quotidiano. A tua família está aqui, o teu emprego está aqui;
- o homem que te quer bem, que te beija os dedos quando róis as peles em redor da unha, que te humedece os lábios com a própria língua quando dizes que os tens secos, que te ajeita as sobrancelhas numa paragem de autocarro, vive a três mil quilómetros de distância e não podes viver de ser acarinhado;
- gostas do teu emprego, o que o transforma numa âncora. Adoras os teus amigos; outra âncora. És incapaz de te separar dos teus avós e dos teus irmãos;
- o lá e o cá não podem ser conjugados, queres demasiadas coisas dispersas, mas quere-las com a determinação de quem sabe quem é. Contudo, por comodidade, sabes que ficarás a vida inteira onde estás e que nunca terás um quintal com flores para plantar, limoeiros e morangueiros.
E é isto uma vida desencontrada. Quando o emprego, a família, a casa de sonho, a pessoa que poderia animar-nos a existência, se encontram em diferentes latitudes. Significa viver de abstinências quanto àquilo que mais se quer, e ainda ter de se ser grato àquilo que se tem.
Pena que só tenhamos uma vida, ou eu seria tanta coisa…! Iria a tantos lados…!

Escolham bem, queridos. Porque muitas das decisões que tomamos significam caminhos sem retorno.

PS - Durante muitos anos (uma percentagem significativa da idade que tenho) a mãe achava que amar significava fazer bem a outrem. Queria fazer o objecto do seu amor feliz. Amortecer-lhe as quedas, escudar-lhe as dores. A mãe achava-se disposta a fazer qualquer sacrifício para o ver bem, e, estivéssemos alguma vez estado juntos, ter-lhe-ia aceite todas as decisões, ainda que isso me levasse para longe do caminho que queria abraçar na minha vida. (Em parte partilhávamos certos ideais; um certo amor ao interior e à terra, um certo desprezo pelo supérfluo e o dispensável). Agora a mãe só consegue encantar-se por quem lhe faz bem. Por quem quer vê-la feliz. Por quem se desviaria do seu caminho para ingressar no meu e ver-me realizada. É um amor mais egoísta, pois é. Mas é o único modo de ser-se feliz em plenitude. Também isto julgo que já vos havia dito: escolham quem vos quer bem em vez de se retorcerem por alguém que vos considera um acidente de percurso enquanto não aparece alguém melhor.

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