domingo, 25 de janeiro de 2015

Carta aos meus filhos #71

A mamã está bem, mas está confusa.
Aos vinte e cinco anos, sente-se simultaneamente velha e rejuvenescida. Decidiu que talvez seja a hora de fazer um trabalho de jovem, uma vida de estrada. Por vocês – posto que o meu estado natural é na minha cidade, nos braços dos meus amigos, com a minha comida no estômago e o gato no regaço.
Consegui dedicar-me a um bom livro, O Deus das Moscas, que no entanto me recorda da absoluta insignificância que é a bondade no mundo. Também estou por dentro dos meandros das minhas personagens de Uma Mulher Respeitável, pelo que, em termos criativos, não tenho como queixar-me.
Regressei agora de uma viagem de três dias a Londres, satisfatória a tantos níveis…! Não foi apenas partilhar uma sala com doze pessoas; escoceses, britânicos, noruegueses, catalões, franceses, lituânios, polacos, alemães e italianos. Foi o assombro de me ver à vontade, de representar Portugal e de me orgulhar da minha prestação. E de sentir laivos de carinho e compreensão pelas pessoas que me rodeavam. E de sentir que deveria fazer parte de algo maior… deveria ser cidadã do Mundo.
Estive, pela primeira vez, fora do país com a minha querida amiga V. As pessoas conhecem-se melhor sob pressão, ao final de um dia de longa caminhada, de horas de jejum, do amasso de um voo. E superar essas provas e ainda assim sorrir, abraçar, cuidar, é algo de extraordinário. Foi uma nova experiência.
Londres apresentou-se solarenga, mostrou-se menos tímida, mais bonita desta vez. Picadilly refulgiu de vida, Green’s Park apresentou esquilos a brincar com pedaços de tronco de árvore, cisnes tão belos quanto agressivos, a bufar, um lago gélido e paisagem com resquícios de outono. Três amigas num banco a dividir um lanche perante a superfície gelada do lago e o ondular rítmico dos patos. O português a dançar-nos na língua e um mundo tão maior do que o da nossa aldeia, tanto por ver…
Os portugueses emigrados, logo na ida, na fila para o controlo de passaportes à entrada do UK. Queridos, a mamã não é racista. Não contra os negros, não contra os ciganos ou qualquer outra minoria. A mamã tem mãe negra, primos muçulmanos (se bem que o islão não é nenhuma minoria) e amigos ciganos. Mas a mamã odeia quando o estereótipo e a realidade se encontram e, à chegada ao aeroporto de Londres, foi isso que testemunhou. Uma negra horrorosa, magra, olheiras fundas, cabelo lambido por gel, rodeada de crianças barulhentas e mal-educadas, uma provável filha de gorro no alto da moleirinha e cabelo entrançado até à cintura, a encostar o rosto a uma branca inofensiva. Digo uma branca inofensiva, porque há brancas que não o são. Distorceu grotescamente o rosto na direcção da moça, que duvido que falasse português, e deve ter-me nascido um esgar de repulsa na boca. Que nojo. Que vergonha dos meus portugueses que são aquilo!
E o amor? O amor deixa a mãe a cada dia. É um sopro cada vez mais ténue, que ora regressa em ondas de calor, de sacrifícios prometidos, ora me abandona de todo e me diz que a vida é assim; um caminho a percorrer-se sozinho. Por vezes, nas encruzilhadas, alguém surge e caminha a nosso lado por um bocado. Dá-nos a mão, estendemos-lhe a mão. Por vezes traz-nos torrões de açúcar, outras o amargo das lágrimas. E prosseguimos, sós. A mamã perdeu-a: perdeu a capacidade de amar incondicionalmente. Não foi intencional, mas quando deu por ela já se punha a si em primeiro lugar. Já nada existe entre mim e o meu amor próprio. Nenhum homem, nenhum expectro. Nenhum medo.
A mamã nada teme. Tem um plano c) sólido.

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