segunda-feira, 19 de maio de 2014

Carta aos meus filhos #35

«Will you stay with me, will you be my love?»

Sabem em que instante a mãe entendeu que o italiano não poderia ser o vosso pai? Porque a imagem deste homem terno e elegante, que fala tão bem a sua língua materna quanto inglês, a brincar convosco… é tão enternecedora quanto ilusória. A mãe não chegou a perder muito tempo a imaginá-lo de mangas de camisa dobradas até aos cotovelos para vos erguer acima da cabeça, porque algo me dizia que ele estaria ausente. Ele diz que os pais foram ausentes, cresceu com a avó. A mãe dedicou-se à excelência de um piano que ainda hoje a arrasta em diversos eventos culturais e o pai… já não me recordo o que fazia o pai. Sei apenas que não estavam por lá quando ele precisava deles.
Ser a miúda de um workaholic… Experienciei-o algumas vezes. A pergunta existencial é se há wi-fi no hotel. Se há rede na serra. Depois sucedem-se as visitas fortuitas à caixa de e-mail, não vá o mundo estar a acabar por falta de uma palavra dele. Depois os telefonemas; os que faz, porque são urgentes, e os que são urgentes e que não pode ignorar. A mãe olhava pela janela enquanto chovia na Avenida da Liberdade. Quando o olhava, enrolado numa toalha, ou com uma meia por calçar, ou a brincar com a chave do quarto na mão a um passo da saída quando estávamos todos aprumados, ele piscava-me o olho. Erguia o indicador; só mais um minuto.
Pede-me perdão. Enquanto esperamos pelo almoço, pede-me perdão. Diz que tem mesmo de ser. Que em breve é todo meu, para falarmos do que eu quiser. Dos gatos, da casa, dos nossos países, do espanhol que ele tem enferrujado e que eu me recuso a articular. Enquanto o táxi nos leva ao Cabo da Roca, vai a trocar mensagens com um indiano. Mais trabalho. A paisagem passa-lhe ao lado. Não consigo evitar fechar o rosto, lamentar a certeza de que tanta coisa lhe passa ao lado enquanto dedilha o ecrã do iPhone com os dedos bem cuidados, de unhas rentes, de pele macia que, quando já não é hora de ninguém ligar, me acariciam o cabelo até eu adormecer. E, quando finalmente vê o oceano, esta criatura estranha do Adriático, tão fascinante quanto letal, sorri como uma criança. E eu deixo-me fascinar por ver-lhe os olhos a cintilar. Damos as mãos, tiramos fotos, aproveitamos a meia hora em que o taxista espera por nós. E entretanto é hora de partir, de voltar ao táxi. Falo com o taxista sobre os vinhos de Colares enquanto ele volta aos e-mails urgentes do emprego. Aperta-me a mão direita com a esquerda e responde a tudo com a outra. Mas não está lá, está no escritório a tratar de ser o melhor, de ganhar mais, de fazer tudo bem feito.
Na Catedral de Toledo, a mãe deu voltas no deambulatório, pendurou-se nas grades do cadeiral, desistiu de usar os audio-guias, bufou. Durante todo esse tempo ele falava ao telefone com a chefe.  Sentado num dos bancos da igreja, sorridente, parecia que estava na própria sala, e não numa catedral por visitar e com um comboio para apanhar daí a quarenta minutos. Falava de vinhos, fazia piadas. Eles são sedutores, sabem? Os italianos são sedutores como tudo. Mesmo a falar com a própria avó conseguem ser sedutores. Então, depois de meia hora a circular sozinha, o meu ar de frete não o convenceu a desligar o telefone. Fui sentar-me atrás dele. Fiz beicinho. Lá está o sorriso, o piscar do olho, o indicador erguido; só um minuto. Inclinou-se para mim, beijou-me por entre “ahams” para a patroa. E eu pensei que tinha reparado em mim, que ia despachá-la, dizer, quem sabe, que lhe dedica trezentos e sessenta dias e que cinco são dele para os passar com quem quiser. Mas ele desmanchou-se numa gargalhada para a chefe e de repente estavam a falar da tradição das bruxas na terra dela. Quando desligou a chamada era hora de irmos. Pouco ou nada vimos.
Em Paris temos uma hora. Metade desse tempo é passado a ligar para todo o lado. A mãe, registando o forno a lenha do restaurante, observando os campanários da Notre Dame através da janela, lamentando-se em silêncio ao Sena, dá-se conta de que já o sabia. Não pode chorar por um amor fadado a fracassar. Resignada, sorri-lhe com tristeza. Ele fala ao telefone, sério, ergue as sobrancelhas, sorri. Enquanto o telefone está em espera, surrura “You look gorgeous”. Digo-lhe que o nariz está ressequido de tantas fungadelas primaveris. Diz-me que o meu pequeno nariz está perfeito como sempre. Sabe bem ouvir, derreto-me um bocadinho ao ver-lhe a doçura morna dos olhos castanhos a sorrirem-me com tanta meiguice. Mas no instante a seguir esses mesmos rios estão longe, são frios. Alguém atendeu do outro lado. Ali trata-se a sagrada matéria laboral. Eu sou infantil. Sou carente. Sou incompreensiva. Mas não estou iludida. Não penso que um homem assim mude depois do casamento. Não penso que um homem que só tira plena satisfação do trabalho venha a correr para casa para fazer amor com a sua mulher. Não penso que um homem assim passe mais tempo em família por ter um, dois, três filhos. Ele evocaria a santíssima trindade do amar é sustentar e educar. Amor traduzido em tempo, tempo convertido em dinheiro. Para fraldas, para ténis, para amas, para escolas particulares, para actividades extra curriculares, para jantares fancy, para relógios de marca e fatos italianos, para o telemóvel da última geração, para uma universidade no estrangeiro, particular. É assim que este homem pensa. “Quero dar ao meu filho as oportunidades que puder, para que ele tenha o mundo à sua disposição se o quiser agarrar”.
Eu não quero arcas frigoríficas de peixe congelado para os meus filhos. Quero um pai que se sente com eles à beira rio e os ensine a pescar. Um pai que saboreie com eles, à mesa do jantar, a frescura de um peixe suado por eles (quase decerto estragado pelas minhas fraquíssimas capacidades culinárias). Quero um homem que fique comigo cinco minutos a mais na cama, de manhã. Um homem que me atrase. Que me despenteie. Que suje o punho no café e ainda assim não troque de camisa.
Se calhar nunca seríamos ricos, mas seriamos tão felizes!
E foi ali que tudo acabou. Olhando nos olhos dele, vendo as potencialidades do nosso futuro à minha frente... Sorrindo perante a solenidade do seu profissionalismo, desejei-lhe sorte e alegrias. Vi o que seria feito de mim se insistisse em nós.
- O telefone dele a assombrar-me de novo a meio da noite;
- A chefe dele a dizer para ele não me deixar "consumi-lo" demasiado;
- Ele a dizer que lhe faltam dez anos até ser pai, para depois continuar a adiar;
- Eu a precisar dele e ele a precisar de trabalhar;
- A tragédia de me ver em segundo lugar na vida da única pessoa para quem a minha felicidade deveria vir em primeiro;
- Eu a desconfiar que ele me trai;
- Eu a chorar no chuveiro (já aconteceu);
- Eu a ponderar traí-lo;
- Eu a chorar no meu canto da cama (já aconteceu);
- Eu a chorar, ele a dizer que não entendo o quão importante é o trabalho dele para nós;
- Eu a sair.
Assim vislumbrei apenas aquele que será somente o futuro dele …  Que elegante que será, quando for a um jantar de amigos com a mulher pela cintura. Ela será bonita, de seios pequenos, gosta de vermelho e arranja as sobrancelhas. Faz dieta. Fazem amor duas vezes por semana e são ambos felizes assim. Ela entende o que é pôr a carreira em primeiro lugar. Filhos? Só depois dos trinta e cinco, e dois, porque número ímpar é caótico. Cão? Nem pensar, demasiado fora de controle. Gato? Enche-lhe os Armani de pêlos. Máquina de café? Só Nespresso. E ele será sempre um homem charmoso. E eu nunca deixarei de me sentir um bocadinho movida por esse seu charme inato. 
Mas o meu papel seria sempre esse, de mulher que se arranjou, que fez as sobrancelhas, que se pintou, que deu um jeito ao cabelo indomável, apenas para descobrir que lhe é invisível. Que o olhar dele foge com discrição para o relógio a cada vez que me passa a palavra. Que, para ele, eu estaria bonita de qualquer maneira, porque ele viu-me uma vez, guardou essa imagem e vive disso. De me ver bem mesmo quando não estou. De ignorar as sombras por detrás dos meus sorrisos. De me pedir perdão, mas tem de atender este telefonema, é mesmo importante.
O que importa na soma dos dias são as horas bem aproveitadas. Não quero viver de ausências impostas. Estou farta de analisar quadros na parede de restaurantes e padrões de toalhas de mesa.
 Tudo isto apenas para a mãe vos dizer que não quer ser a miúda de um workaholic, por muito adorável que ele seja, por muito puro que seja o coração que lhe bate no peito. Se o vosso pai for um workaholic que nunca vos ensinou a andar de bicicleta, por favor atirem-me isso à cara sem escrúpulos. Vá lá, permito-vos isso. Só desta vez.

Quando encontrar o vosso pai vou-lhe perguntar:


 Will you stay with me? Will you be my love?

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