Parte IV
Verona-Trento
A primeira vez que sorri hoje foi
quando passaram por mim, no centro histórico de Verona, dois homens a
cantarolar. Reconheci logo a música e não pude parar de cantá-la o resto do
dia. “Parlami d’amore Mariù, tutta la mia vita sei tu…Gli occhi tuoi belli
brillano…”. Já ontem estacionei o carro numa praça em Brescia junto a uma
fachada de onde, a partir das janelas abertas, me chegou a voz de uma cantora
de ópera em ensaio. Depois, junto ao Duomo de Verona, um senhor de idade
apertava o casaco no pescoço enquanto cantava ópera. Sozinho, no seu caminho,
mas a cantar. Os nossos olhos cruzam-se, faz um sorriso e continua a cantar. E
hoje estes dois, lado a lado, a cantar Achille Togliani. Pego no telemóvel e
que se lixe a bateria. Tenho de ouvi-la. Vou a sorrir o resto do percurso. Como
o mercado de Natal se estende por toda a cidade, com os miúdos a celebrá-lo de
gorro e com gritos histéricos, compro uma ciambella com creme de ovo e dois Baci
e vou a lambuzar-me alguns metros, desde a Piazza Erbe à casa da Giulietta. Um
corredor de acesso está totalmente coberto por marcadores e post-its a
prometerem amor eterno. O pátio onde está a suposta varanda é pequeno, e
algumas lojas também lhe dão acesso. Uma das lojas vende lembranças de Natal e
promete uma vista fantástica da varanda a partir do seu primeiro andar. Eu
busco refúgio debaixo de uma varanda, ao cimo de uns poucos degraus. Estão a
cair uns chuviscos de água a caminho de se tornar neve. Estão dois graus e a
atmosfera tem uma neblina branca. Estou muito consciente de que há montanhas
por perto. Como a ciambella que a senhora insistiu em aquecer para mim. Sabe-me
pela vida, e ainda mais porque, mais interessante que a janela da Giulietta são
as pessoas que se apinham por baixo, a tocar na sua estátua de bronze. Ambos os
seios já demonstram desgaste. Parece-me absurdo que esteja ali uma peça com
tamanha elegância, tamanha dignidade no amor, e que as pessoas cheguem de
telemóvel em punho para a apalpar e pôr a língua de fora ou fazer bico de pato
para as fotos. Incomoda-me de tal modo que não me detenho por mais de dez
minutos. Apanho uma Giulietta loira na varanda com a minha Canon e sigo o meu caminho. Custa-me
pousar o pé direito no chão. Ontem doía um pouco, mas hoje dói mais. Devo ter
torcido ao descer do autocarro. Ao final de tantos anos finalmente preciso do
cartão europeu de saúde, mas desconfio que ficou em casa. Cada passo dói cada
vez mais, e entendo que deveria estar quieta. Mas não posso: não vou deixar de
ir admirar a Arena. Lá a encontro depois de muito indagar, porque todos os
restaurantes e tabacarias a mencionam, mas não se vê a estrutura em parte
alguma. A Arena não é mais que outro Coliseu, mas neste há o festival de Ópera
de Verona. O meu maior sonho artístico é poder ouvir ver Turandot lá, em Agosto. As fotografias prometem uma atmosfera de
conto de fadas. Custa a imaginar os italianos em silêncio, mas suponho que
durante as duas horas que dura a composição do Puccini, consigam.
Quando dou por mim é hora de
partir para Trento. Não é difícil encontrar o “binário” de onde parte. Vou a
ler um romance cor-de-rosa o caminho todo, chego em menos de nada e nem tenho
de ligar à Giuliana, porque está mesmo ali, de sorriso nos lábios e parka prateado à minha espera. Abraçamo-nos e deixo-a mostrar-me o centro de Trento.
Estamos rodeadas de montanhas e de fontes que prometem um alívio do impiedoso
calor estival. Nesta altura, ao invés, há aldeias de Natal em toda a parte, com
neve falsa nos telhados, renas à porta, miúdos a gritar, pinheiros verdadeiros
iluminados, ciambelle à venda, e ainda azeite, charcutaria, queijos, licores,
sabonetes naturais e decorações de madeira para as árvores de natal.
Mostra-me o Duomo, que tem duas
escadarias enormes em cada lado da nave central, e que exibe, sobre a pedra
cinzenta do interior, pinturas medievais. Um instante antes de sair reconheço
Maria com o filho no colo, de manto azul-celeste. Comemos um strudel trentino e
bebemos um café. Como é Itália, o emprego não se contenta com "um café", e fica a olhar para mim de bloco em punho. Olho
em redor: em nenhuma mesa há dois cafés iguais em quantidade, cor, ou adições.
Uns têm espuma branca, outros devem ter leite, outros natas, outros licor,
outros são expressos e outros são cafés longos. Digo-lhe que seja criativo.
Traz-me aquilo que seriam três bicas portuguesas numa chávena alta, mais fraco
que o nosso café mas menos aguado que o Americano. Todos sorriem, são simpáticos,
falam alto, dizem “Salve”, desejam boas festas. A Giuliana cruza-se com uns
quantos amigos. A dado momento falava-me da avó. A propósito de nada. Diz-me
que a avó morreu quando tinha oito anos, mas que lhe foi tão especial que,
apesar de já ter metade da família no céu, é sempre a ela que recorre em
preces. Deixa-me à porta da Igreja de San Lorenzo e que, se tiver tempo, devo
entrar. Entretanto tenho meia hora para agradecer ao Ricardo, a voz que me
salvou a pele ontem ao cancelar a reserva do hotel de Trento sem custos. Diz
que está no bar da estação de comboios e que vou reconhecê-lo porque está a
escrever num portátil. Como não vejo bar nenhum, na estação, pergunto a um
velhote. O velhote pergunta-me que tipo de bar quero. Estou só a usar o
vocabulário que o Ricardo havia usado na sms. Digo que vou encontrar uma pessoa
que me disse que estava no bar. Ele aponta o sítio e é tão simpático que estico
a mão para agradecer. Segura-ma, afaga-me os dedos e pisca-me o olho. Vejo-lhe
um espasmo no lábio e pergunto-me: será que?... E então diz que, se estou a
mentir e preciso só de encontrar o bar, sem que ninguém lá me espere, ele pode
levar-me a outro bar que conhece onde podemos aquecer-nos os dois. Ri-me.
Tratei-o como se fosse meu avô. Vou-me embora a rir e de facto vEjo de imediato
o homem ao computador. Tem uma página do word aberta com inúmeras coisas
escritas. Chamo o nome dele, assente e ri-se. Então pergunto na brincadeira se
é escritor. Sim – mete o computador na mala e saímos dali com aquela facilidade
com que os “latinos” têm em dar-se. Andamos cinquenta metros até à Igreja de
San Lorenzo, que lhe digo que quero visitar. Pelo caminho diz-me que está a
escrever um romance sobre o tráfico de crianças durante a guerra dos balcãs.
Fico impressionada. Dentro da igreja de San Lorenzo, vêm-me as lágrimas aos
olhos. É românico puríssimo, à excepção do tecto que está caiado de branco-pérola
e raiado de estrelas. Faz sentido, porque penso em toda a gente que me salvou
do carro como estrelas. Ele entre elas. Tinha-lhe comprado uma estrela de
madeira no mercado de Natal e dei-lha. Era o momento certo. Explico porquê. Já
estamos de saída, estava a haver missa e não podemos falar. Passaram-se dez
minutos desde que o cumprimentei no bar da estação. Pergunta-me onde quero ir.
Digo que nos podemos sentar um bocadinho num banco no jardim, por entre os
azevinhos e as cabaninhas de madeira cheias de criançada. Explico que o meu
comboio é regional e daí a vinte minutos, mas que se o perder posso apanhar
outro regional com o mesmo bilhete. Então sorri-me sem ponta de vergonha e
diz-me que conhece um sítio ali perto onde podemos aquecer-nos. Respondo que
acabei de beber café. Diz-me que não era bem a isso que se referia. Que era o
destino, que era um romântico e que devíamos aproveitar para estar um bocadinho
a sós. Com graça, disse que era melhor ir apanhar aquele comboio porque estava
a ficar de noite. Tinham-se passado quinze minutos no total. Leva-me ao comboio
mas diz de imediato que tem de voltar para o hotel, está muito complicado de
reservas nesta época do ano. Fico aliviada e volto ao livro. Não demora muito
até que uma menina vestida de elfo me cumprimente. A mãe conta logo que a filha
acabou de sair da escola dos elfos com distinção. Reparo nas orelhinhas no
barrete. O comboio vem e a penúltima personagem importante do dia foi o
revisor. Vê o meu bilhete e engraça com o meu nome. Pergunta de onde sou. Fica
extasiado quando falo em Portugal. Diz que esteve lá com a mulher e que amou,
acrescentando que muitos amigos estão a ir para lá depois da reforma. Falamos
um bocado e uma vez mais o desejar felicidades (e um aperto de mãos sem maldade
mas com muita cordialidade).
- Última pergunta, Célia – diz. –
Como é que uma rapariga de um país lindo como Portugal anda com uma sweatshirt
a dizer Irlanda? Ma come mai?
Damos uma risada e ele vai-se
embora, diz “boa tarde” em português e “obrigado”. O nosso riso tinham ofuscado o das crianças por um bocado. Então, quando volto a atenção para o livro, começo
a ouvir as brincadeiras dos bimbi. Os pais dizem três, quatro, cinco vezes “Basta,
Alice!”, mas a Alice e a amiga continuam aos risinhos e aos guinchos por meia hora. Toda a carruagem estremecia com as suas passadas no corredor central, conforme jogavam à apanhada e escalavam aos bancos vazios. Não dei por saírem, mas um velhote vira-se do banco da frente e sorri-me. Diz “acho
que as crianças já saíram”. Damo-nos todos conta do silêncio na carruagem e há
uma risada colectiva. Depois conta que tem uma neta de dez anos e que corre
como um “capretto”. Ainda não fui ver o que é, mas entendi que seja um caprino.
Amorosos, os italianos… ainda que um bocado rebarbados.
Estou tão feliz. E amanhã… oh,
amanhã!
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