Parte VII
Siena
Porque 7 é um número místico, o dia foi consagrado à beleza incontornável da
arte, foi também um dia de grandes reflexões. Ontem à noite cheguei a uma
difícil conclusão – não entendo porque me soa tão estranho, e ao mesmo tempo
tão natural. Nunca me senti atraída por uma mulher, embora sempre tenha dito
que um dia isso poderia vir a acontecer. A minha frase é “o amor não é uma coisa de
género, mas de alma”. Ainda que a alma esteja encarcerada num corpo, creio que
te prendes à alma. Claro que o corpo tem algum dizer nisso, mas na minha
opinião não tem de ser limitador de ligações. Engraçado que seja Itália a
mostrar-me estas coisas, que se calhar sempre estiveram em mim e só agora vi.
Depois de ontem ter sofrido a subir e descer escadas com os malões perante a inutilidade do
sexo masculino – posso estar a ser um pouco injusta aqui -, entendi que as
pessoas mais fantásticas que conheço são mulheres. Entendi que a maior força
está dentro das mulheres. Que quando a mulher chega a algum lado é porque lutou
mais. Que quando a mulher se preocupa com o mundo, além de que com a casa, é
excepcional, mas é também quase natural. Que quando dói à mulher, dói mais e
mais silenciosamente. Quando a mulher faz mil e uma coisas, e uma milésima
segunda coisa ainda, deve ser aplaudida. E só as mulheres podem aplaudi-la. De
algum modo, algures entre vestir o pijama e lavar os dentes, olhei para mim ao
espelho e entendi: é possível que um dia me apaixone por uma mulher. Não estou
nem a pensar no corpo, estou a pensar em tudo o resto. Houve uma mulher em
particular que me trouxe essas ideias, a de que preciso de alguém que cintile a
meu lado, e ela era jovem, interessada das coisas do mundo, falava línguas
diferentes, o cabelo goza de suprema liberdade e o queixo empertiga-se
quando sorri. Depois veio a dúvida: mas e a família, que é tudo o que quero da
vida? E com a pessoa certa (seja mulher, homem, índio, paraplégico ou autista,
anão ou gigante, engenheiro ou artista e circo) não há como não se ter uma
família. Então assustei-me, porque me pareceu tão verdade e tão claro, e
perguntei-me quantas mulheres admirei, e quantas dessas, se usassem calças e
tivessem barba, teriam sido para mim um homem digno de me ver perder a cabeça.
E entendo que se me mantiver nesta linha (a quadrada) quem sabe o amor e a
família não me passem várias vezes ao lado na vida, sem que eu saiba.
Lesbicismo à parte, a parte intelectual conta muito, e tenho-me cruzado com
mulheres admiráveis. Mas entendi que o que tanto acarinhei num grande
amor, por ser tão sólido nele e tão raro nos homens de agora, é tão airoso e
tão recorrente nas mulheres que vou conhecendo. O confronto não seria o mesmo,
embora a capitulação mudasse?
Voltando ao lado simples das coisas: hoje estive
perante Bernini e Donattello. Tudo na maravilhosa e única catedral de Siena.
Cheguei-me à bilheteira e vi que o bilhete geral (para maiores de 26 anos,
bolas, passei do prazo há uns dias!) custava 8€. Havia uma série de
dependências a acrescentar, entre elas uma livraria, “A Porta do Céu”, um
baptistério e o museu da catedral. Pedi apenas bilhete para a catedral, em
italiano como sempre. A senhora mal me olhou. Pediu-me 2€ e vi que a livraria
estava incluída. Não entendi porquê, porque mesmo o desconto para jovens daria
em 4€. Só se paguei como estudante. Não pensei muito nisso: saí dali a sorrir e
a pensar que o universo tem modos estranhos de fazer circular os favores. Quem
sabe os 6€ que poupei aqui não tivessem destinados ao pequeno-almoço do mendigo
de domingo? Quem sabe tivesse eu virado as costas ao homem e hoje pagaria 8€
como era devido? Nunca se saberá, mas é mais reconfortante pensar assim. Fui a sorrir toda contente, porque estou a três anos dos trinta mas ainda me acham uma estudante com direito a desconto sem pedirem a identificação.
O Duomo de Siena é uma obra do século XIV (espero não
me enganar, lembrai-vos que isto é escrita de memória e de opinião, e não um
tratado jornalístico), e o próprio chão foi ali posto entre 1300 e qualquer
coisa e 1500 e qualquer coisa. A cada passo pensei: este chão tem mais de
quinhentos anos. Doeu-me o pescoço de tanto que admirei o tecto. É azul, pleno
de estrelas pintadas de dourado. Em torno da nave principal e do altar
principal há uma série de cabeças debruadas na pedra a olhar-nos cá para baixo
com os olhos e a boca meio esbugalhados. Pensei “serás julgado”. E não tenho
dúvidas que sim. Os católicos dizem que é Deus que julga. Há quem lhe chame karma. Estou certa de que há um cordão
que nos une e que circula, faz ajustes de contas. Chamem-lhe como quiserem.
Fui admirar o São João Baptista do Donattello, em
bronze, à esquerda no transepto. Várias vezes me perguntei: como se dá valor a
um artista? Como se eleva Donattello acima de todos os outros que também
esculpiram estátuas com o seu cinzel? É a energia. Entra-se na capela e seja a
organização do espaço seja a excelência da obra atrai a vista para as formas da
estátua. É evidente que se está perante uma coisa de maior. Tudo se dissipa
perante isso. Não vale a pena discutir. Quanto a Bernini, no lado direito do
transepto, esculpiu em mármore. Esculpiu a Praça de São Pedro, e é isso que
vejo naquela estátua. Melhor é o sol a brilhar no centro da abóbada, rodeado de
azul.
Quando terminou a volta à igreja, quase deserta de
turistas, dirigi-me à livraria Piccolomini e fiquei de queixo caído. Tão
esmagadora quanto a Capela Sistina, embora em menor escala. Falta o brilho do
génio, mas todas as cores se encontram lá, bem conservadas e a cintilar. Sentei-me
um bom bocado a admirá-la, e depois continuei a passear pela cidade.
Consegui comprar o Não te movas, da Mazzantini. Amanhã tenho comboio para Florença,
espero começar a lê-lo e entender alguma coisa.
Tive uma conversa franca com um novo amigo. Falámos
de auto-estima, de ser-se feliz sozinho. Diz que nunca viajou sozinho. Não
consegue ir ao cinema sozinho. Eu não estou a fazer-me de forte ou de digna
quando digo que sou feliz sozinha. Não é fácil libertarmo-nos dos outros. Não é
fácil irmos ver o filme que queremos quando os outros amigos querem ir ver
outro. Não é fácil irmos para um destino de férias quando os amigos querem ir
para outro. Ou ler um livro quando os amigos querem ir sair. Ou escrever um
livro quando os amigos te convidam para a praia. Ou comer bacalhau com natas na
noite de Natal quando a avó sempre fez bacalhau cozido. Gerir isso faz parte da
vida em sociedade, e nem sempre a sós nem sempre acompanhado é o segredo para a
vida em pleno. O concerto de Scorpions
com os amigos, a Madame Butterfly
sozinha. Eu sozinha numa sala de cinema a ver um filme cor de rosa, enquanto a
amiga igualmente habituada a estar sozinha via ficção científica noutra. E por
muito que precisemos uns dos outros, e sejamos criaturas sociáveis por
natureza, acho que a sociedade do século XXI está muito afastada de si mesma. A
solidão é vista como um risco, uma doença. Coitadinha da pessoa que almoça
sozinha e ao seu ritmo, e que pede o que quer sem pensar que terá de dividir a
conta ou que terá de esconder que comeu o triplo do que se prestaria a comer à
frente de alguém. Coitadinha da pessoa que viaja para onde quer, que se ouve a
si próprio, que caminha sem pressas porque só tem de se preocupar com as suas
necessidades, e que numa cidade medieval como Siena vira para a viela que mais
lhe atrai os sentidos. Seria trágico se
a pessoa precisasse de outros para cultivar a sua própria natureza. Os amigos
podem ter interesses em comum, mas não são decalques da nossa vontade. Das
nossas aspirações.
Há um tempo para se estar com esses amigos, ou com a
outra pessoa. Mas e o tempo para nós próprios? Para nos sentarmos a analisar os
outros? Nunca teria conhecido a estudante de literatura se estivesse com os
meus amigos, porque iria focada neles. Nunca teria passado o meu aniversário
sozinha em Veneza e a sentir lágrimas nos olhos de tanta emoção, porque teria
ficado na cidade de sempre na esperança de um telefonema, um beijo e um abraço.
De que adianta o espectáculo se sabemos perfeitamente quem está lá para nós?
Quebrar-nos-ia a relação irmos para salas de cinema diferentes e sairmos juntos
à mesma hora, cada um a comentar o seu filme? Já fiz isso e foi libertador.
Quebrar-nos-ia sair do que é o nosso papel num grupo e ir descobrir o que somos
nós para o estranho que se senta no banco da frente do comboio? Como nos
apresentamos? O que é importante mencionar e o que preferimos omitir? Isso faz
de nós o que somos agora, e não o que nos moldámos para ser perante as pessoas
de sempre. O que me assusta é que tudo isto que vivi, tudo o que foi
investimento meu em mim própria – dos livros lidos aos escritos, às horas na
biblioteca, a estas férias em Itália quando podia estar a embarcar para
Portugal em dois dias, para ir beber café ao sítio de sempre e ser a mesma de
sempre – uma estranha, uma companheira de gargalhadas, uma indesejável, uma
confidente, uma inconveniente, uma pessoa que escreve coisas, uma melhor amiga,
uma miúda com voz de desenho animado, a gaja que queria que me deixasse em paz
mas não desgruda, a miúda que entende um bocado de História, a que voltou agora
de Itália -, é que perfeito seria que encontrasse, quando a hora chegar, porque
a hora há-de chegar, alguém que tivesse vivido tão livre quanto eu, para daí
podermos entrelaçar-nos respeitando a liberdade do outro. Que teria para dar se
nunca me tivesse sentado num restaurante sozinha? Se nunca tivesse feito algo
só porque me apraz, ou se só fosse para o ginásio se tivesse lá algum amigo? Aconselho
toda a gente a procurar-se a si própria – o ginásio que lhe dá jeito, e não
aquele onde o amigo já é sócio. A sair sozinho, de olhar atento. A descobrir se
gosta mesmo do bar para onde o arrastam todas as sextas. Da cor que os colegas
de casa escolheram para a parede da sala – uma mais pequena, mais afastada do
centro, mas lilás, não será melhor? Se gosta mesmo do restaurante que os
colegas escolhem para irem almoçar. Se gosta mesmo da alcunha que lhe dão, se é
mesmo isso que dizem que é. Se realmente quer dormir com aquela pessoa, a única
que está disponível e que não move um dedo na sua direcção, que nunca responde
quando precisa de uma palavra de amistoso conselho ou que nas horas que selam o
seu entendimento se recosta para trás e fica a observar enquanto tens de
encarnar tu o papel de sedutor e nunca, nem por uma vez, o de seduzido. Será
que tem de ser crónica a minha incapacidade de me impressionar com as pessoas,
e a minha previsão raio-x de que a
pessoa não está à altura dos desafios não estará deslocada? Ou não será
perpetuada por essa busca obsessiva que todos têm uns dos outros? Ultimamente
tenho visto pessoas habitualmente dignas a arrastarem-se por ter alguém.
Usou-se a palavra “desespero” na descrição. Não quero que esse venha a ser o
meu retrato: quero que as viagens e os livros me valham sempre.
É preciso alguém que esteja no café se quisermos sair
para conversar. Mas não é preciso alguém no café se quisermos sair para beber o
café e respirar a estação.
Aborrece-me que o médico de família, que afinal é
psiquiatra mas não teve equivalência no nosso país, me tenha olhado nos olhos e
dito: “Falta alguma coisa na sua vida. Você sabe o que é, mas não quer admitir.
E é isso que a mete doente”. Não é companhia, que me falta. É amor – e a minha
definição de amor haveria sempre de incluir uma boa dose de liberdade e de
vontade própria. Falta-me viver tudo isto e depois ir dar ao mesmo troço do
caminho-de-ferro com aquela pessoa excepcional que tem sido livre, ou que
começará a ser a partir de amanhã, e que se baterá tanto quanto eu pelo direito
a fazer as coisas à sua maneira, e por estar onde quer estar.
E com isto tenho de ir a cada dez minutos à janela,
porque se ouvem risos, gritos, estrondos e vozes exaltadas na rua. Vou vendo se
já se mataram ou se continuam a celebrar a vida, os malucos dos italianos lá em
baixo…
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